As nuvens já se haviam anunciado com os aviões a aterrar para o outro lado há dois dias mas hoje, pela hora de almoço, notei que aqueles entretanto voltaram ao sentido habitual, que é darem o trem de aterragem a quem circula pela badalhoca da segunda circular, porém que não nos safámos duma fabulosa trovoada, não safámos. A reunião começou bem na hora em que os trovões concordaram com os relâmpagos em virem ao mesmo tempo. O trovão completamente ensurdecedor, traaummmm, mas ficou lá fora, já o relâmpago, essa descarga de energia elétrica abrindo um caminho mais curto da ordem para aí das dezenas de milhar de volts, ou centenas, entrou por uma tomada na parede da sala. Fez kscsercsksksrscscscsrrscsksks muito alto como se também estivesse na ordem de trabalhos. Por sorte estava agarrado à tomada apenas um cabo de computador portátil que por causa de ter ali por alturas do meio comprimento um agradável transformador muito computer-friendly em trovoadas do género, o respetivo computador praticamente não deu por nada e lá se safou de fritar as eletronicazinhas bastante delicadas que ele tem, com o raio tresmalhado. Ora a meio da tarde de trabalho a trovoada já tinha saído e a minha cliente disse que estava na altura do nosso café e estava mesmo. Levantou-se e, enquanto eu pus os óculos de ver melhor ao perto para ler uma folha que ela acabou de me estender, foi tirar dois cafés à máquina que trouxe para a sala. Tendo a máquina ficado portanto com menos dois cafés, de maneira que é fazer as contas.
Quanto ao texto, pergunta-se: o que trouxe a minha cliente para a sala?
(este é um post cem por cento unissexo ou como se há de melhor dizer, para toda a gente e... certo, certo, não se fala mais nisso)
28/08/2017
26/08/2017
O bem que me soube ler isto
Tal tem sido a indignação geral atual quando se revelam diferenças de origem biológica entre os sexos das pessoas, que eu começo a temer que chegue o tempo de as autoridades obrigarem as mulheres a coser um pénis ao corpo e os homens uma vagina para que fiquemos finalmente, então sim, aleluia, todos muito cheios de igualdade.
(Outra coisa é igualdade de deveres e direitos. Outra coisa.)
(Outra coisa é igualdade de deveres e direitos. Outra coisa.)
25/08/2017
Macondo e depois dar um pontinho
Foi cá um dia de praia, este! Só do que eu não gosto na praia, arrumamos já isso, é o protetor solar mesmo que seja dos de
pulverizar. É tão aborrecido aquilo, o protetor adere a tudo e à areia, que na praia há muita, e depois arranha a espalhar, etc. Mas de resto
adoro. Adoro por exemplo ler na praia e logo me resolvi a levar uma leitura tão
principal como Cem Anos de Solidão: a verdade é que ainda não o tinha lido
nunca. Esta leitura de boa que é, faz-me ficar a oscilar entre continuo aqui no ripanço tremendo a ler
ou vou mas é dar um mergulho.
Mas quando fechei o livro para ir à água, fui. Estando um
bocado fria, embora não muito muito fria que fizesse doer os ossos, entro devagar.
Numa ondazinha que vem ter comigo parece que a dar-me as boas vindas, fazendo-se
verde-água (daí o nome) na crista, um verde-água a pôr-se ainda mais
transparente, vejo um peixe que até vou dizer um peixaço nesse dorso da onda, uma
beleza ali a passar, mesmo lindo. Algumas ondas depois já estava completamente
dentro do mar, toda molhada com o cabelo incluído, boiando a olhar o céu e a olhar as
nuvens, poucas, a deixar vir as ondas em crista, uma e depois outra, subindo
nelas, descendo na cauda, nas maiores elas por cima, nas menores eu.
De regresso à nossa instalação de chapéus, toalhas e a bola
de vólei que faz tipo parte da família, as minhas filhas estão completamente pretas
a vinte e cinco de agosto - é normal. É normal e é muita praia com elas mas não
comigo. Deito-me ao sol a usufruir do contraste com o mar que parece que trago dentro,
um frio que se quer quente, um filme de gelo derretido debaixo da pele,
falta-me aqui uma poesia para dizer aquilo que já toda a gente sabe mas ainda
assim falta-me. A verdade é que não há lá muitas coisas melhores que esta,
embora haja algumas. Estou por isso toda feliz, apetece-me a vida, e vejo pelo canto
do olho uma veraneante ali em biquíni e em pé a conversar num telemóvel, quando a noto tão branca em contraste, outro, com as minhas filhas
pretas, que comunico assim: aquela senhora está esverdeada de tão branca.
- Qual senhora?...
- Aquela, em pé, a falar ao telefone.
- Ó mãe!! Tu estás muito mais branca do que aquela
senhora!!!
Portanto fechei o canto do olho e dediquei-me a sentir somente
o contraste térmico até me secarem as mãos e tornar a pegar no livro, reentrar
em Macondo e deixar-me ir.
À saída do dia, para rematar com uma cereja no topo deste
bolo tão macio e delicioso que foi a praia, nós equipadas com a instalação
desmontada e às costas, chapéus, cesto, toalhas, a bola de vólei debaixo dum
braço, subimos o areal. Antes daquele momento em que já é mesmo para calçar as
chinelas se não queremos espetar os pés em catos secos, pedras ou pauzinhos, está
um casal que já passou dos sessenta, ou sessenta e cinco, sentados à sombra dum
chapéu de sol de várias cores, cada qual na sua cadeira de praia. Ele observava-nos a nós,
creio, a subir com as tralhas, ela cosia qualquer coisa, dava um pontinho, como
dizia a minha avó, que gostava de se sentar a dar um pontinho. Eu olhei-os e, terá
sido recordarem-me a minha avó ou terá sido aquela paz de estar que eles me
ofereceram, sorri e ele viu. Então, para fazer um nadinha parte deles, eu disse:
- Assim não perde tempo! – apontando com um inclinar de
cabeça para ela, que estava concentrada a enfiar a agulha no pano às florzinhas, puxando a linha devagar.
Mas riram-se os dois e ele confirmou.
- Ai não perde, não!
Quando chegámos ao carro coberto de pó, já as minhas filhas tinham
ouvido o quanto a bisavó delas gostava de se sentar assim, concentrada, a dar um pontinho.
20/08/2017
Ah, o Algarve em Agosto...
Imprimi numa folha de papel branco que fica arroxeado quando
o sol lhe incide de viés à volta das três e meia nesta altura de
agosto, isto porque a impressora está sempre a postos com o papel metidinho no
alimentador dela e está à janela (ai que ia rimando), mas então imprimi numa folha um
quadrado preto com um A aberto a branco, porquê? Porque, devido à intensidade
com que uso o meu teclado (sem fios) para escrever o trabalho que é todo ele muito
de se escrever este trabalho, o A já foi e o S está para ir também (para onde não
sabemos). De modo que imprimi o quadrado e ando a ver de que modo o acomodo ('tá querendo
rimar) na tecla com jeitinho que é para não ficar sem tecla, que já uma
vez fiquei sem uma, mas não era o A, por causa de tentar arrancar uma migalha de
grande porte que estava um pedaço debaixo dessa tal tecla e outro pedaço
estendia-se num interstício a caminho de teclas vizinhas e eu torci o teclado
um bocado para incentivar a migalha a desalojar-se com a ajuda da gravidade, o
teclado de cabeça para baixo a abanar vigorosamente, claro, mas o que foi
acontecer foi que eu arranquei a tecla (e depois a migalha) e mesmo com vários vídeos tutoriais
visionados posteriormente sobre “Cuide do seu teclado: como reencaixar aquela tecla que se soltou!”, não foi possível repor a tecla, aqueles vídeos são uma treta tão boa como os cremes rejuvenescerem as mulheres (os homens não sei). Ela estava
disposta a encaixar só de um lado, a tecla, ou só de outro, só de um lado, ou só de outro, só de um lado, ou só de outro, mas como isso não
queremos, acabou dentro da gaveta de cima, num cantinho, no final do dia. Isto foi há dois
teclados atrás, no tempo em que eu comia bolachas e ainda não tinha incorporado
estes quatro quilos que agora não me largam e não são meus, são para devolver. Vou
tentar colar o A na tecla que perdeu o dela e
como, por um lado, o vizinho S também está de saída, o assunto dá em post.
Por outro, ainda não fui à praia.
(um título da série "Ah, o Algarve em Agosto...", por causa do A, evidentemente, e de prometer uma coisa e depois não ser nada isso)
15/08/2017
Um bocado esquisito este post
Havia pousado em Lisboa há poucas horas quando torno a sair de casa lançando-me na
rua a pé ignorando o carro na garagem numa continuação já de muitos dias sem se
mexer, quero crer. Nem sequer o vou visitar, a garagem é um lugar tão feio. Há estes
momentos em que me chega um rasgo de vontade de não ter carro nenhum. Vou assim
nesta filosofia descartável à primeira necessidade, evidentemente, pelo meio do
agosto macio e quentinho, quase deserto, e vou com os pés a escorregar nas
sandálias que me estão um pedaço largas mas foram caríssimas e são mesmo lindas.
Já sabemos que sapato de mulher ou é lindo (e todo desconfortável, chegando
mesmo a proporcionar o desconforto de nos atirar ao chão se for preciso) ou é um
conforto muito doce mas parece sapato de homem, mesmo que cheio de purpurinas cor
de rosa, que isso não interessa. Então vou assim pela rua a escorregar nas
sandálias e a entreter-me com o meu telefone esperto, que anda todo queriduras
comigo não sei porquê, mas tipo talvez para fazer pirraça ao carro lá sozinho
no escuro e na companhia das caixas de caçar ratos. Hoje por
exemplo recebo nele uma mensagem muito linda sobre uma promoção a começar
amanhã numa espécie de loja e eu mesmo a precisar duma compra daquelas, ai jesus, logo eu que sou
contra promoções por causa dos nervos que me dá tanto lixo informativo. Este
post está um bocado esquisito, mas é posts destes que eu mais gosto de
escrever, que engraçado. É que a gente andando no carro vê um pior nas
pessoas, não vê? Eu mesmo a pé e a esforçar-me para continuar dentro das sandálias, vejo.
E vejo um automobilista a irritar-se imenso, imenso, imenso com um taxista ali
à frente porque este parou para largar duas passageiras que iam lá dentro e as
senhoras já não eram assim tão novas. O automobilista naquele excesso de irritado pespega-se parado ao lado do taxista a largar gritos incompreensíveis (felizmente) e
a seguir acelera para dentro do meu próprio bairro a uma velocidade para aí
quase o dobro do limite indicado na tabuleta. Portanto pensei no âmbito da
minha filosofia, ora cá está, ao volante a pessoa revela-se pior: este exemplar
histérico quer regras para o taxista cumprir mas para ele próprio não
é preciso nada disso, é primeiro parar na via a importunar enquanto larga a gritaria dele e segundo é acelerar para dentro do bairro feito autoestrada.
09/08/2017
O Steinway, a gola e o ferro
Anton veio jantar. Chegou com a habitual pontualidade que se
fosse britânica não seria mais exata. Ajudei-o a despir o casaco fino de verão, que
pendurei no vestíbulo. Entrou e, quando se sentou na cadeira que lhe estendi,
notei-o cansado.
- Estás cansado – verbalizei.
- Sim, um pouco – riu-se – estou a ficar velho –
acrescentou.
Nasceu em Amesterdão há noventa e seis anos e de vez em
quando diz que está a ficar velho.
- Hoje despedi-me dum cliente de mais de quarenta e cinco
anos – anuncia.
Eu tenho de traduzir os quarenta e cinco mentalmente, que em
holandês se diz ao contrário, cinco e quarenta.
- Quarenta e cinco - repeti.
- Sim. É um belo piano de cauda, aquele, um Steinway. Mas foi a
última vez.
- E sentes-te triste? – perguntei.
- Sim, claro. É triste. Agora cada cliente que visito é a
ultima vez.
Ainda trabalha no seu ofício de sempre, pianos. Mas desde há
uns meses anda a despedir-se: de cada vez que vai afinar um piano, comunica ao
cliente que já não volta.
Falámos ainda um pouco sobre o seu trabalho na fábrica de pianos, que
fechou há décadas. Fazia controlo de qualidade e arranjou no
chefe da produção um inimigo, ele queria
produzir muito, mas era preciso
rejeitar os pianos que não estavam bons, diz Anton.
Hoje, por ser verão, vem sem gravata. A camisa de manga
curta tem gola de abotoar, mas noto que os botões estão fora das casas. Mentalmente
revejo a senhora baixinha, asiática, que lhe faz a limpeza do apartamento desde
que vive sozinho depois de ter enviuvado, há uns anos. Cruzei-me com ela uma ou duas vezes,
e agora lanço sobre ela a responsabilidade desta pequena falha que, num homem que usa
gravata todos os dias exceto quando o calor aperta um bocadinho, é uma considerável falha. Mas para não ser injusta com a senhora asiática nem sequer mentalmente, e
porque sei dizer passar a ferro em holandês, perguntei:
- Quem é que te passa a roupa a ferro, Anton?
- Eu mesmo.
Terei certamente aberto muito os olhos e levantado as
sobrancelhas, porque ele se chegou um pouco mais a mim e querendo talvez amenizar
a minha admiração, baixando a voz, confidencia:
- Mas não passo cuecas nem meias…
Lembro-me de já ter ouvido, a algumas pessoas com um terço
desta idade, dizer que não sabem passar a ferro. Tirando o
esquecimento de abotoar a gola, é possível aprender-se a passar
a ferro aos noventa anos. Caso se queira, evidentemente.
02/08/2017
Esgadanhei-me é tão feia
Quando eu era miúda, e durante uns anos, ia na “carrinha” do
colégio para casa, depois das aulas. Havia umas quatro ou cinco “carrinhas”
(daqui em diante designadas apenas por carrinhas) cada uma destinada à sua volta na zona da cidade que lhe fora atribuída. Aguardavam por nós, passageiras, no pátio traseiro do terreno
do colégio. A minha era a
da dona Efigénia. Cada carrinha tinha a sua dona e isto embora possa parecer,
não se trata dum café, repare-se que dona está a sair sem maiúscula se faz
favor. A dona Efigénia, vamos lá a ela, era muito feia e era má. Eu preferia ir
na carrinha da dona Glória, onde ia a minha amiga Ângela, mas essa não passava
pela minha casa. A dona Efigénia também não gostava de mim. Um dia foi dizer à
minha mãe, a estúpida, não sei como, já que a minha mãe nunca estava em casa
quando a carrinha chegava, foi dizer que eu era uma mosquinha morta. E porquê uma
mosquinha morta?! Porque era sempre a última a entrar na carrinha.
- Porque és sempre a última a entrar na carrinha, Susana?
- Porque fico à espera que as outras raparigas entrem.
- À espera porquê?...
- Porque elas dão empurrões e puxões e encontrões, todas
querem ser a primeira a entrar. E por isso eu espero.
Quando entrava, em último, havia lugares vagos de sobra, a carrinha era mesmo comprida. Sentava-me e ia olhando o caminho, que não era
curto. Como não tinha amigas nessa carrinha da dona Efigénia, olhava pela janela
sem falar. Quando passava pela casa em ruínas, uma casa grande e medonha que
havia no cimo de uma pequena colina ao lado da estrada, pensava que era ali a
casa do papão. Toda a gente sabia da existência do papão, que era tão mau e
perigoso como hábil a esconder-se. Mesmo que eu espreitasse muito para dentro
da casa em ruínas e virasse a cabeça para trás o mais que podia até a casa desaparecer ao longe, nunca o consegui ver.
Lembro-me que no dia seguinte àquele em que calhou o diálogo com a minha mãe acima reproduzido o melhor possível, pus-me à frente à porta da carrinha da
dona Efigénia, e mal a porta abriu, esgadanhei-me toda (esgadanhei-me é tão feia como a dona Efigénia) e fui a primeira a
entrar. Levei umas caneladas e cotoveladas, empurrões, mas ia preparada, retribui cotovelos com força e entrei. Desejei que ela me tivesse visto,
para perceber as coisas, mas não sei se viu. Depois, nos outros dias todos e
até conseguir crescer e livrar-me daquela carrinha odiosa, voltei aos meus
costumes e a ser a última a entrar. E não houve mais recados da dona Efigénia. A burra (claro que ela também era burra).
(Mas porquê isto agora? Porque estava a notar o meu blogue ainda
ali com o post de há imenso tempo, um post que desencadeou outros também
servidos em hashtag, muito bonitos, e depois todos esses outros autores já
escreveram mais coisas, várias, bastantes, boas, e eu ainda assim.)