Ando a beber piscinas. Sem álcool, piscinas sem álcool.
Não é que ande cheiinha de sede.
É que a minha balança avariou fixando-se num número que se situa uns poucos de quilos (friso poucos) acima do que tinha antes. Simultaneamente, os pares de calças onde me costumo encontrar quando não estou a dormir adelgaçaram. Portanto há que tomar medidas.
Fui buscar a fita métrica à caixa de costura e pus-me a ver que tal. Resultado: lindo serviço e grávida não estou.
Será da idade?
Perguntei na farmácia se é da idade. Olharam-me em modo de avaliação vertical e horizontal que não me agradou por aí além e deram-me um frasco pesadíssimo com um líquido pastoso feito de guaraná, licor de ovelhas, aloé vera, óleo de fígado de pescada (o bacalhau já era), ginseng, cera de abelhas dos prados, cola, pó de caroço de nêspera (não é daquele com que limpam peças de aviões, esse é de alperce), e mais umas coisas em letras que uma pessoa não consegue ler e ainda não usa óculos de ver ao perto (toma lá esta que não é da idade). Tudo isto, diz a farmacêutica toda fofinha para mim, tudo isto para drenar. É juntar uma porção desta poção (hum) que é mágica e que adora água, muitos litros, beba pelo menos oito litros por dia com vinte mililitros disto por cada litro e meio.
E não lhe apetece dar-me também a raíz quadrada de nabo seco do Algarve que sempre me dava para fazer menos contas, não?
Mas isto eu não lhe disse, saí cabisbaixa da farmácia com o frasco pesadíssimo da mistura que não vou repetir, espero não me ter esquecido de nenhum ingrediente.
Tenho portanto como dever alertar a sociedade que se esta situação não desencadear um problema de seca a acrescentar ao aquecimento global na península ibérica vou ali e já venho.
É que esta porcaria sabe à água da piscina da praia das maçãs, que disso lembro-me eu bem.
E passados os primeiros dias do embate, estou pr'aqui toda drenada e a balança continua avariada.
(se houver rimas inconvenientes neste texto é porque as palavras me andam a gozar)
Fui.
30/04/2014
29/04/2014
Antes de acordar
Caminho apressada debaixo da chuva miudinha que cai sem ruído. Chego ao edifício, é este o número.
A porta envidraçada está entreaberta, parece sussurrar-me. É aqui, entra.
Entro. Dentro, o ar é outro, está suspenso. O silêncio tem uma consistência musical e eu com a mão ainda na porta, devolvo-a à posição em que a encontrei.
A energia que paira neste lugar abraça-me imediatamente a existência ou estarei a sonhar? Aqui fala-se uma língua de sons mudos e cheia de significados que vêm de todos os quadrantes e que eu ainda não entendo. Falam todos ao mesmo tempo. Em silêncio.
- Em que posso ajudá-la?
A empregada da loja é uma mulher sem idade porque não traz a pressa vestida. Exibe um sorriso da cor da paz e a sua voz soa a violino, amacia-me os sentidos. Devo ter feito uma cara desajustada, desenterrada à rua e à chuva, acabada de perder a pressa, estou amputada e estou tão bem, ela continua a sorrir e eu sim, devo estar a sonhar.
- A porta. Estava entreaberta - disse por fim - vai já fechar?
- Não, não vou fechar.
As paredes estão revestidas de prateleiras com livros até ao tecto. O chão em meu redor e em todo o lado está povoado de caixas cheias, uns são novos outros velhos. Eu deito-lhes o olho, encho a vista nos mais que posso, vejo-lhes as cores das lombadas, as espessuras, os comprimentos, os títulos, que falam ao mesmo tempo, estão-me a sorrir, eu também estou, quase lhes toco, esperem, eu hei-de voltar.
Torno a encarar a elfa que habita esta floresta de silêncio e de histórias, e eu não quero acordar.
- Venho buscar um livro, deve estar aí um livro para mim.
Estavam dois. Meti-os na mala onde tinha trazido a pressa.
- Obrigada, muito obrigada.
Quando me voltei para sair, a porta continuava entreaberta. Tentei escutar-lhe um sussurro, mas passou um autocarro na rua que me atirou com os travões à cara. Saí e tornei a deixar a porta na posição.
Um dia voltarei aqui. E ficarei a ouvir as histórias todas que os livros contam, uma de cada vez.
Depois, começo a contar a minha. Ainda antes de acordar.
A porta envidraçada está entreaberta, parece sussurrar-me. É aqui, entra.
Entro. Dentro, o ar é outro, está suspenso. O silêncio tem uma consistência musical e eu com a mão ainda na porta, devolvo-a à posição em que a encontrei.
A energia que paira neste lugar abraça-me imediatamente a existência ou estarei a sonhar? Aqui fala-se uma língua de sons mudos e cheia de significados que vêm de todos os quadrantes e que eu ainda não entendo. Falam todos ao mesmo tempo. Em silêncio.
- Em que posso ajudá-la?
A empregada da loja é uma mulher sem idade porque não traz a pressa vestida. Exibe um sorriso da cor da paz e a sua voz soa a violino, amacia-me os sentidos. Devo ter feito uma cara desajustada, desenterrada à rua e à chuva, acabada de perder a pressa, estou amputada e estou tão bem, ela continua a sorrir e eu sim, devo estar a sonhar.
- A porta. Estava entreaberta - disse por fim - vai já fechar?
- Não, não vou fechar.
As paredes estão revestidas de prateleiras com livros até ao tecto. O chão em meu redor e em todo o lado está povoado de caixas cheias, uns são novos outros velhos. Eu deito-lhes o olho, encho a vista nos mais que posso, vejo-lhes as cores das lombadas, as espessuras, os comprimentos, os títulos, que falam ao mesmo tempo, estão-me a sorrir, eu também estou, quase lhes toco, esperem, eu hei-de voltar.
Torno a encarar a elfa que habita esta floresta de silêncio e de histórias, e eu não quero acordar.
- Venho buscar um livro, deve estar aí um livro para mim.
Estavam dois. Meti-os na mala onde tinha trazido a pressa.
- Obrigada, muito obrigada.
Quando me voltei para sair, a porta continuava entreaberta. Tentei escutar-lhe um sussurro, mas passou um autocarro na rua que me atirou com os travões à cara. Saí e tornei a deixar a porta na posição.
Um dia voltarei aqui. E ficarei a ouvir as histórias todas que os livros contam, uma de cada vez.
Depois, começo a contar a minha. Ainda antes de acordar.
25/04/2014
A verdade
- Tire-me a pele ao frango, tira?
- A pele ao franguinho. Com certeza, minha senhora. E quer que corte?
A mulher ao meu lado pediu ao talhante para lhe tirar a pele ao frango. E sim, corte lá se faz favor. Ele começou a operação solicitada e eu fui buscar limões que ainda faltavam cinco números para a minha vez no talho do supermercado.
Passo pelo bacalhau a pensar que ao balcão do talho há uma tendência visceral (penso que aqui visceral não podia estar mais em casa) para tratar as peças pelas variantes diminutivas. Franguinho. Entrecostozinho. Bifinhos.
Com os limões, a barra de chocolate e a garrafa de azeite na mão, regresso à área que hoje está mesmo apinhada. Os talhantes são dois e trabalham depressa para atender os pedidos. Um deles está agora de costas para a frente de atendimento, a tirar a pele a uma perna gorda, penso que de peru, apoiada na bancada marcada com golpes e ensanguentada, nada a fazer quanto a isto. E diz:
- Estará calor lá fora, ó Dinis?
- Não sei, à hora de almoço estava - o Dinis responde enquanto estica o saco com o entrecosto à cliente.
- Deve estar calor - continua o primeiro, ainda de costas para a clientela, a terminar de livrar a carne da pele - hoje toda a gente pede para tirar o casaco aos frangos.
O Dinis ri-se e pergunta à cliente do entrecosto se é mais alguma coisa, minha senhora. Não era mais nada e chega então a minha vez.
- Um peito de peru para assar, por favor - digo, enquanto ponho o ticket com o número exibido a vermelho no quadro de chamada, no pequeno recipiente de plástico em cima do balcão.
- Está bem este peitinho, está? - o Dinis ergue o pedaço acima do vidro a fim de que eu possa avaliar a peça e concluir sobre a sua adequação ao meu propósito.
- Está excelente, vai esse.
- E como vai o peruzinho, minha senhora?
- Vai assim, com o casaco vestido.
Ainda com o braço no ar segurando o pedaço de peru que vamos comer amanhã, vira a cabeça para o colega, ó João a senhora ouviu-te.
- Pois ouvi. Ouvi e gostei.
E estive vai não vai para lhe comunicar que ia usar isto para o meu blogue.
O que eu nunca lhe diria é que não faço ideia do que tinha ele em mente ao perguntar-me como vai o peru.
Se não tivesse tido a deixa do casaco vestido, teria de lhe dizer a verdade.
Vai de carro.
- A pele ao franguinho. Com certeza, minha senhora. E quer que corte?
A mulher ao meu lado pediu ao talhante para lhe tirar a pele ao frango. E sim, corte lá se faz favor. Ele começou a operação solicitada e eu fui buscar limões que ainda faltavam cinco números para a minha vez no talho do supermercado.
Passo pelo bacalhau a pensar que ao balcão do talho há uma tendência visceral (penso que aqui visceral não podia estar mais em casa) para tratar as peças pelas variantes diminutivas. Franguinho. Entrecostozinho. Bifinhos.
Com os limões, a barra de chocolate e a garrafa de azeite na mão, regresso à área que hoje está mesmo apinhada. Os talhantes são dois e trabalham depressa para atender os pedidos. Um deles está agora de costas para a frente de atendimento, a tirar a pele a uma perna gorda, penso que de peru, apoiada na bancada marcada com golpes e ensanguentada, nada a fazer quanto a isto. E diz:
- Estará calor lá fora, ó Dinis?
- Não sei, à hora de almoço estava - o Dinis responde enquanto estica o saco com o entrecosto à cliente.
- Deve estar calor - continua o primeiro, ainda de costas para a clientela, a terminar de livrar a carne da pele - hoje toda a gente pede para tirar o casaco aos frangos.
O Dinis ri-se e pergunta à cliente do entrecosto se é mais alguma coisa, minha senhora. Não era mais nada e chega então a minha vez.
- Um peito de peru para assar, por favor - digo, enquanto ponho o ticket com o número exibido a vermelho no quadro de chamada, no pequeno recipiente de plástico em cima do balcão.
- Está bem este peitinho, está? - o Dinis ergue o pedaço acima do vidro a fim de que eu possa avaliar a peça e concluir sobre a sua adequação ao meu propósito.
- Está excelente, vai esse.
- E como vai o peruzinho, minha senhora?
- Vai assim, com o casaco vestido.
Ainda com o braço no ar segurando o pedaço de peru que vamos comer amanhã, vira a cabeça para o colega, ó João a senhora ouviu-te.
- Pois ouvi. Ouvi e gostei.
E estive vai não vai para lhe comunicar que ia usar isto para o meu blogue.
O que eu nunca lhe diria é que não faço ideia do que tinha ele em mente ao perguntar-me como vai o peru.
Se não tivesse tido a deixa do casaco vestido, teria de lhe dizer a verdade.
Vai de carro.
24/04/2014
Tudo concentrado
Depois de um dia de trabalho que quase me demoliu, arrasto-me para o ginásio na esperança de 1) a energia da música me elevar deste lodo pesado a pontos altos de vibração e dançar como nunca e 2) manter-me isenta das culpas que me teriam assaltado caso tivesse cedido à tentação de me estender no sofá.
À chegada sou informada que hoje é dia de alongamentos.
Dia de alongamentos... Bem, pode ser que saia daqui mais alta, sempre quis ser mais alta, gracejei. Ninguém riu.
Hm.
A música para alongar é muito zen. Sugere água a escorrer por pedras quentes e harpas tocadas por dedos de anjo. Tililim. Tililim. Céus azuis com nuvens brancas em forma de ovelhinhas, ou coisa assim. Tentei relaxar, esquecer o trabalho.
O primeiro bocejo segurei bem.
A perna para cima, braço ao tecto. Inspira.
O desequilíbrio a querer tomar conta de mim mas não, aguentei-me.
À frente, os braços. Agora abaixo, expira. Tililim. Devagar.
O bocejo seguinte vinha mais forte e saiu mesmo, não há elasticidade para o reter quando estou com metade do corpo alongado. Desculpem, estou cansada.
Olhar para o tecto e levantar as pontas dos pés, joelhos no chão. Tililim.
Parece difícil, mas de lado é pior.
Anca no chão, apoio no cotovelo, perna para cima, esticada, a outra também. Mais. Estou a ficar com frio, quem me dera dançar.
Deitada assim de lado, as pernas esticadas no ar, um braço ao tecto, estou a tremer do esforço para não rebolar, ou será do frio, como é possível isto?, a curvatura da anca de uma pessoa é coisa real. Argh!
Rebolei. Fico de barriga para cima.
As outras, as colegas, tão direitinhas e eu nisto. Tililim.
Num esgar de dedicação, apresso-me a regressar à posição impossível. Metade no ar metade apoiada na convexidade da anca, que entretanto já me dói.
A música tão zen, tudo concentrado e eu o que queria mesmo, meus amores, era isto:
À chegada sou informada que hoje é dia de alongamentos.
Dia de alongamentos... Bem, pode ser que saia daqui mais alta, sempre quis ser mais alta, gracejei. Ninguém riu.
Hm.
A música para alongar é muito zen. Sugere água a escorrer por pedras quentes e harpas tocadas por dedos de anjo. Tililim. Tililim. Céus azuis com nuvens brancas em forma de ovelhinhas, ou coisa assim. Tentei relaxar, esquecer o trabalho.
O primeiro bocejo segurei bem.
A perna para cima, braço ao tecto. Inspira.
O desequilíbrio a querer tomar conta de mim mas não, aguentei-me.
À frente, os braços. Agora abaixo, expira. Tililim. Devagar.
O bocejo seguinte vinha mais forte e saiu mesmo, não há elasticidade para o reter quando estou com metade do corpo alongado. Desculpem, estou cansada.
Olhar para o tecto e levantar as pontas dos pés, joelhos no chão. Tililim.
Parece difícil, mas de lado é pior.
Anca no chão, apoio no cotovelo, perna para cima, esticada, a outra também. Mais. Estou a ficar com frio, quem me dera dançar.
Deitada assim de lado, as pernas esticadas no ar, um braço ao tecto, estou a tremer do esforço para não rebolar, ou será do frio, como é possível isto?, a curvatura da anca de uma pessoa é coisa real. Argh!
Rebolei. Fico de barriga para cima.
As outras, as colegas, tão direitinhas e eu nisto. Tililim.
Num esgar de dedicação, apresso-me a regressar à posição impossível. Metade no ar metade apoiada na convexidade da anca, que entretanto já me dói.
A música tão zen, tudo concentrado e eu o que queria mesmo, meus amores, era isto:
23/04/2014
A primeira vez
Francisco bate-me no vidro da porta do gabinete.
- Ainda ficas? Já não está ninguém!
- Fico um bocadinho. Até amanhã!
Estou a terminar um relatório que não faz as minhas delícias, tenho os olhos secos de fixar as células da folha de cálculo, o ecrã nunca é suficientemente grande. Mas como a hora do ginásio já passou, não há pressa.
Simultaneamente (a natureza tem destes desvios à perfeição a que nos habituou em muitas coisa, flores, por exemplo), simultaneamente, dizíamos, está o meu organismo a solicitar com muita veemência uma visita à casa de banho que por sorte se situa próxima, é só uns onze ou doze passos, espera aí um bocadinho, deixa cá escrever mais este parágrafo a explicar as coisas dos cálculos e já vamos, não sei se me estou a contorcer ligeiramente, se não estou devia.
Termino, envio o correio electrónico com as coisas que tenho de enviar a dar alegrias a toda a gente amanhã pela manhã se não ainda esta noite no aconchego do lar, para os mais empenhados, não eu, que trabalham em sessão contínua.
Ufa. Corro os onze passos alargados para a porta de salvação. Entro, fecho-a, estando sozinha não haveria necessidade, mas os automatismos que temos são assim e nunca se sabe se o Francisco ainda anda por aí.
Acto contínuo lanço a mão ao interruptor da luz. Que não responde. Estou às escuras a torcer-me, porta fechada por dentro, a fracção de segundo de atraso é nada mas a natureza nesta imperfeição que nos fez (à parte as flores, que são perfeitas) não contava com o interruptor cego, urge-me esta ansiedade, e agora, Francisco ainda estás aí?
Ele não responde, mas ainda assim. O quadro eléctrico.
O segurança já passou na ronda e, como faz sempre (grrr), e eu me esqueço sempre de lhe dizer para não fazer (grrr), desligou a merda da luz da casa de banho no quadro eléctrico.
Amanhã vou mais cedo para casa, vou vou.
(a aflição foi resolvida após um voo picado e orientado ao quadro eléctrico, situado não muito longe, a minha mão mergulha cirurgicamente no interruptor certo, alinhado no meio de alguns três mil oitocentos e trinta e nove outros interruptores uns para baixo outros para cima, mas já bem meus conhecidos, que isto não é a primeira vez, não é não)
- Ainda ficas? Já não está ninguém!
- Fico um bocadinho. Até amanhã!
Estou a terminar um relatório que não faz as minhas delícias, tenho os olhos secos de fixar as células da folha de cálculo, o ecrã nunca é suficientemente grande. Mas como a hora do ginásio já passou, não há pressa.
Simultaneamente (a natureza tem destes desvios à perfeição a que nos habituou em muitas coisa, flores, por exemplo), simultaneamente, dizíamos, está o meu organismo a solicitar com muita veemência uma visita à casa de banho que por sorte se situa próxima, é só uns onze ou doze passos, espera aí um bocadinho, deixa cá escrever mais este parágrafo a explicar as coisas dos cálculos e já vamos, não sei se me estou a contorcer ligeiramente, se não estou devia.
Termino, envio o correio electrónico com as coisas que tenho de enviar a dar alegrias a toda a gente amanhã pela manhã se não ainda esta noite no aconchego do lar, para os mais empenhados, não eu, que trabalham em sessão contínua.
Ufa. Corro os onze passos alargados para a porta de salvação. Entro, fecho-a, estando sozinha não haveria necessidade, mas os automatismos que temos são assim e nunca se sabe se o Francisco ainda anda por aí.
Acto contínuo lanço a mão ao interruptor da luz. Que não responde. Estou às escuras a torcer-me, porta fechada por dentro, a fracção de segundo de atraso é nada mas a natureza nesta imperfeição que nos fez (à parte as flores, que são perfeitas) não contava com o interruptor cego, urge-me esta ansiedade, e agora, Francisco ainda estás aí?
Ele não responde, mas ainda assim. O quadro eléctrico.
O segurança já passou na ronda e, como faz sempre (grrr), e eu me esqueço sempre de lhe dizer para não fazer (grrr), desligou a merda da luz da casa de banho no quadro eléctrico.
Amanhã vou mais cedo para casa, vou vou.
(a aflição foi resolvida após um voo picado e orientado ao quadro eléctrico, situado não muito longe, a minha mão mergulha cirurgicamente no interruptor certo, alinhado no meio de alguns três mil oitocentos e trinta e nove outros interruptores uns para baixo outros para cima, mas já bem meus conhecidos, que isto não é a primeira vez, não é não)
18/04/2014
Nevoeiro
- E porque precisas de comprar um biquíni novo?
- Não preciso. Quero. Precisar, preciso de muito pouco, mas querer... é muito que quero! Quero-te a ti, por exemplo. E este ano vou comprar um biquíni novo. Um que me fique bem. O último que comprei foi há cinco anos.
Subimos a serra envolta na noite e em nevoeiro cerrado. Serrado? As palavras metem-se-me pelos dedos como os gatos da família se enrolam nas minhas pernas a fazer gincanas tão suaves que não fosse eu gostar deles não os sentia.
- Há cinco anos? Mas não o tens usado muito, ainda deve estar novo.
Subimos a serra cerrada e da estrada só se vêem as linhas brancas que correm de cada lado nos troços onde foram retocadas recentemente. No resto do percurso nada, apenas este leite vaporoso, denso. O carro sobe muito devagar e eu vou a pensar no biquíni novo. Tenho de perder dois quilos. Depois lembrei-me da cegueira branca que o Saramago inventou e que até deu filme, tão boa foi a ideia.
- Na gaveta os biquínis estragam-se. Ficam a ver as outras peças de roupa entrar e sair, todas as manhãs, todas as noites, e eles nada. Achas que isto tem alguma graça? Não tem.
Vivo com a alma deitada em cama de palavras, quando descansa. Brinca com as letras quando não tem mais que fazer, serrar o cerro não pode passar de uma metáfora, mas cerrar a serra com nevoeiro, pode.
- Isso é uma desculpa para comprares o biquíni novo. De que cor vais comprar?
Branco como a cegueira que o Saramago inventou e que este nevoeiro copiou não dá, porque só depois de três semanas de sol à farta no Algarve é que começo a fazer contraste com o biquíni.
- Castanho ou preto com flores.
Um dia destes vi uma palavra, qual foi? Trocando uma letra virava o sentido ao contrário, mas arrumei-a. Onde a terei posto?
- Hum... com flores?
- Erik, eu estou a pensar em palavras e a tentar lembrar-me de uma tão boa e tu a falar em biquínis.
- Não fui eu quem falou, foste tu.
Bolas, não me lembro. Há-de voltar, se eu não pensar mais nela. Ou quando o nevoeiro se dissipar, quando eu estiver a morrer ou noutra altura qualquer. Devia tê-la escrito.
- Sabes o que quero?
- Já me disseste, um biquíni novo.
- Agora quero-te a ti. Podes encostar o carro?
- Não preciso. Quero. Precisar, preciso de muito pouco, mas querer... é muito que quero! Quero-te a ti, por exemplo. E este ano vou comprar um biquíni novo. Um que me fique bem. O último que comprei foi há cinco anos.
Subimos a serra envolta na noite e em nevoeiro cerrado. Serrado? As palavras metem-se-me pelos dedos como os gatos da família se enrolam nas minhas pernas a fazer gincanas tão suaves que não fosse eu gostar deles não os sentia.
- Há cinco anos? Mas não o tens usado muito, ainda deve estar novo.
Subimos a serra cerrada e da estrada só se vêem as linhas brancas que correm de cada lado nos troços onde foram retocadas recentemente. No resto do percurso nada, apenas este leite vaporoso, denso. O carro sobe muito devagar e eu vou a pensar no biquíni novo. Tenho de perder dois quilos. Depois lembrei-me da cegueira branca que o Saramago inventou e que até deu filme, tão boa foi a ideia.
- Na gaveta os biquínis estragam-se. Ficam a ver as outras peças de roupa entrar e sair, todas as manhãs, todas as noites, e eles nada. Achas que isto tem alguma graça? Não tem.
Vivo com a alma deitada em cama de palavras, quando descansa. Brinca com as letras quando não tem mais que fazer, serrar o cerro não pode passar de uma metáfora, mas cerrar a serra com nevoeiro, pode.
- Isso é uma desculpa para comprares o biquíni novo. De que cor vais comprar?
Branco como a cegueira que o Saramago inventou e que este nevoeiro copiou não dá, porque só depois de três semanas de sol à farta no Algarve é que começo a fazer contraste com o biquíni.
- Castanho ou preto com flores.
Um dia destes vi uma palavra, qual foi? Trocando uma letra virava o sentido ao contrário, mas arrumei-a. Onde a terei posto?
- Hum... com flores?
- Erik, eu estou a pensar em palavras e a tentar lembrar-me de uma tão boa e tu a falar em biquínis.
- Não fui eu quem falou, foste tu.
Bolas, não me lembro. Há-de voltar, se eu não pensar mais nela. Ou quando o nevoeiro se dissipar, quando eu estiver a morrer ou noutra altura qualquer. Devia tê-la escrito.
- Sabes o que quero?
- Já me disseste, um biquíni novo.
- Agora quero-te a ti. Podes encostar o carro?
17/04/2014
Extractos
A radiação de fundo da sociedade está.
Está aqui, está aí, existe permanentemente, desliza através dos tempos, respira-se.
De vez em quando também a oiço. Ou vejo-a. Entra-me na existência de um momento e lima-me um bocadinho mais, esculpe-me. Constrói-me.
Às vezes dói. Parte uma ponta da minha alma que fica para reparar mais tarde, depois de chorar ou de pensar. Outras deixa-me a vibrar em ondas que me agitam de raiva ou de ternura.
Entrei no táxi no aeroporto. Sempre que aterro fora do horário do autocarro que me leva a casa, tomo um táxi.
O homem que me conduz pelas ruas da cidade pergunta-me se venho do frio ou do calor, se o voo vinha cheio, quer saber o que trago para dizer. E eu digo. Depois falamos da crise, que se mete na conversa, penso que vinha colada ao vidro que eu não abri.
- A crise, minha senhora, às vezes são as pessoas que a chamam, ora oiça. De vez em quando levo um rapaz ao centro da cidade. Ele diz-me que vai atrasado, vai sempre atrasado. E eu um dia perguntei-lhe: mas andas sempre atrasado, rapaz?
Faz uma pausa para me encontrar o olhar reflectido no espelho retrovisor, que com a penumbra da noite interceptada pelos candeeiros que passam à nossa velocidade, não mostra muito mas informa que sim, pode continuar.
- Diz que é de ir para a noite, para os copos, deita-se tarde. Anda na universidade, veja lá. E eu: mas vais para as aulas atrasado, rapaz? E sabe que mais? Vai atrasado é para o trabalho, que ele tem um trabalho! Ora, se vais trabalhar, deves chegar a horas, o patrão paga-te para estares a horas, não é?
- Com certeza, digo eu, pode entrar pela rua dos bombeiros que é mais directo, se faz favor.
- E sabe que me diz ele? Diz que a chefe é que ganha bom dinheiro e ela é que tem de trabalhar, não ele! Ah, minha senhora, e anda este jovem na universidade!
Dentro de um táxi ouvem-se extractos da radiação de fundo da sociedade.
De uma sociedade com gente que não quer trabalhar porque acha que ganha pouco dinheiro, mas gasta-o em táxis depois de noitadas nos copos.
Hoje ao almoço, o João perguntou-me se bebo café. E ia para lhe contar da radiação de fundo que se apanha nos táxis, mas em vez disso respondi-lhe. Sim, bebo, gosto muito de café.
Tanto, que depois é isto. Não tenho sono e ponho-me a escrever a história que não contei ao almoço.
Pode ser que o João a leia amanhã, no caminho para o trabalho.
Está aqui, está aí, existe permanentemente, desliza através dos tempos, respira-se.
De vez em quando também a oiço. Ou vejo-a. Entra-me na existência de um momento e lima-me um bocadinho mais, esculpe-me. Constrói-me.
Às vezes dói. Parte uma ponta da minha alma que fica para reparar mais tarde, depois de chorar ou de pensar. Outras deixa-me a vibrar em ondas que me agitam de raiva ou de ternura.
Entrei no táxi no aeroporto. Sempre que aterro fora do horário do autocarro que me leva a casa, tomo um táxi.
O homem que me conduz pelas ruas da cidade pergunta-me se venho do frio ou do calor, se o voo vinha cheio, quer saber o que trago para dizer. E eu digo. Depois falamos da crise, que se mete na conversa, penso que vinha colada ao vidro que eu não abri.
- A crise, minha senhora, às vezes são as pessoas que a chamam, ora oiça. De vez em quando levo um rapaz ao centro da cidade. Ele diz-me que vai atrasado, vai sempre atrasado. E eu um dia perguntei-lhe: mas andas sempre atrasado, rapaz?
Faz uma pausa para me encontrar o olhar reflectido no espelho retrovisor, que com a penumbra da noite interceptada pelos candeeiros que passam à nossa velocidade, não mostra muito mas informa que sim, pode continuar.
- Diz que é de ir para a noite, para os copos, deita-se tarde. Anda na universidade, veja lá. E eu: mas vais para as aulas atrasado, rapaz? E sabe que mais? Vai atrasado é para o trabalho, que ele tem um trabalho! Ora, se vais trabalhar, deves chegar a horas, o patrão paga-te para estares a horas, não é?
- Com certeza, digo eu, pode entrar pela rua dos bombeiros que é mais directo, se faz favor.
- E sabe que me diz ele? Diz que a chefe é que ganha bom dinheiro e ela é que tem de trabalhar, não ele! Ah, minha senhora, e anda este jovem na universidade!
Dentro de um táxi ouvem-se extractos da radiação de fundo da sociedade.
De uma sociedade com gente que não quer trabalhar porque acha que ganha pouco dinheiro, mas gasta-o em táxis depois de noitadas nos copos.
Hoje ao almoço, o João perguntou-me se bebo café. E ia para lhe contar da radiação de fundo que se apanha nos táxis, mas em vez disso respondi-lhe. Sim, bebo, gosto muito de café.
Tanto, que depois é isto. Não tenho sono e ponho-me a escrever a história que não contei ao almoço.
Pode ser que o João a leia amanhã, no caminho para o trabalho.
15/04/2014
Salmão grelhado
Fico sempre animada quando se fala em borrego.
É das palavras que pronuncio com gosto, borrego.
Se uma coisa corre mal, borregou.
Se uma pessoa é um tanto lerda mas ainda assim não a odiamos, borrego assenta-lhe bem.
Hoje ao almoço, na cantina lá da empresa, comeu-se borrego. Ensopado de borrego.
As colegas que deslizavam os tabuleiros à minha frente na fila, receberem o ensopado a fumegar-lhes no prato, rodeado de batata cozida. Elas com os olhos a arregalar, vê-se que gostam daquilo. Dizem-me que o borrego ali é bem confeccionado.
Não, não estou a falar de comida de avião nem das almôndegas a meio cêntimo do IKEA nem tampouco do que se come, para quem o faz, na secular cadeia americana denominada McDonald's.
Estou a falar de uma cantina. Uma cantina onde trabalham pessoas que se esmeram. E que fazem a diferença, fazendo ensopado de borrego.
Uma vez o borrego entrou-me no estômago. E voltou imediatamente a sair em marcha atrás. Prefiro uma lata de feijão encarnado se faz favor.
Mas comi salmão grelhado. Sentei-me a uma mesa onde todos os outros pratos borregavam para lá de muito. E toda a gente a querer convencer-me que o borrego é que é.
Certo, mas há alternativas. Falemos então de um tema da actualidade, sim?
Alguém sabe dizer-me porque raio uma fotografia postada na web se passou de repente a chamar instagram?
Que nervos.
É das palavras que pronuncio com gosto, borrego.
Se uma coisa corre mal, borregou.
Se uma pessoa é um tanto lerda mas ainda assim não a odiamos, borrego assenta-lhe bem.
Hoje ao almoço, na cantina lá da empresa, comeu-se borrego. Ensopado de borrego.
As colegas que deslizavam os tabuleiros à minha frente na fila, receberem o ensopado a fumegar-lhes no prato, rodeado de batata cozida. Elas com os olhos a arregalar, vê-se que gostam daquilo. Dizem-me que o borrego ali é bem confeccionado.
Não, não estou a falar de comida de avião nem das almôndegas a meio cêntimo do IKEA nem tampouco do que se come, para quem o faz, na secular cadeia americana denominada McDonald's.
Estou a falar de uma cantina. Uma cantina onde trabalham pessoas que se esmeram. E que fazem a diferença, fazendo ensopado de borrego.
Uma vez o borrego entrou-me no estômago. E voltou imediatamente a sair em marcha atrás. Prefiro uma lata de feijão encarnado se faz favor.
Mas comi salmão grelhado. Sentei-me a uma mesa onde todos os outros pratos borregavam para lá de muito. E toda a gente a querer convencer-me que o borrego é que é.
Certo, mas há alternativas. Falemos então de um tema da actualidade, sim?
Alguém sabe dizer-me porque raio uma fotografia postada na web se passou de repente a chamar instagram?
Que nervos.
14/04/2014
A Tertúlia
Saí da autoestrada na direcção do Cartaxo.
Tu sempre gostaste do nome Cartaxo e eu sempre desgostei de autoestradas. Uma coisa somada à outra deu nisto, vês?
Um nome envelhecido em barris feitos de uma árvore tão antiga que me faz esquecer que não quero seguir em frente, um nome assente num lugar onde vamos fazer uma pausa.
Cartaxo. Após um troço de estrada esburacada com curvas em piso ondulado pelas raízes das árvores velhas que se transformaram em barris para albergar o vinho.
A rua que nos acolhe não tem ninguém mas há casas dos dois lados. Umas casas, outras prédios que parecem encolhidos, gastos, nus de alegrias, tudo está velho, ou é de mim, que estou triste?
Estaciono numa perpendicular que desenho com vagar e saímos do carro. Uma senhora curvada e pequena passa por mim, olha-me. Não és de cá, dizem-me os olhos dela. Boa tarde, digo-lhe eu. Tu não dizes nada.
Caminhamos em silêncio, procuro a tua mão. Dirigimo-nos ao café que tem um toldo com o nome impresso. A Tertúlia.
Tu gostas de Cartaxo, eu gosto de Tertúlia.
Dentro, um ecrã grande pendurado na parede, junto ao tecto, a emitir o som que me traz os domingos cinzentos da minha infância, como detesto televisão! Quando se vive com a televisão, ainda se vive?
Apenas uma mesa ocupada. Duas mulheres velhas sentadas e uma que ainda está a crescer e que saltita em redor da mesa, a cantarolar. Depois pára e olha para mim. Não és de cá, pensa ela.
- Ainda servem almoço? - pergunto à senhora de bata de trabalho que está atrás do balcão a acomodar bolos na prateleira de vidro.
- Não, menina, almoços já não servimos. Desde que a polícia começou a multar os carros estacionados em cima do passeio, as pessoas não vêm.
Encolheu os ombros. Depois continuou.
- Mas temos bolos caseiros, olhe este, de nozes. Saiu agora do forno, ainda está quente. E este aqui também se vende muito bem, fiz hoje de manhã, é bolo mármore, vê?
Rodou o prato para me mostrar o contraste na massa, bolo mármore.
- Corte do outro, o de nozes, se faz favor. Duas fatias grossas.
- A menina não é de cá, pois não?
- Hoje sou. Tenho um buraco no peito e vou enchê-lo com o seu bolo. Uma fatia hoje outra amanhã, deve chegar. Sou de cá porque a estrada que me trouxe também tem buracos.
- Então venha mais logo, menina, estou a fazer bolachas de manteiga. São uma maravilha, é o que todos dizem. Até se esquece das tristezas, vai ver!
- Obrigada, tenho de continuar caminho.
Voltei ao carro, pousei o saco com as fatias de bolo quente no lugar onde tinhas vindo enquanto me consegui enganar.
No café "A Tertúlia" vive-se com a televisão e já não se servem almoços.
Mas fazem-se bolos caseiros. E eu vou continuar a procurar-te.
No Cartaxo não estás.
Tu sempre gostaste do nome Cartaxo e eu sempre desgostei de autoestradas. Uma coisa somada à outra deu nisto, vês?
Um nome envelhecido em barris feitos de uma árvore tão antiga que me faz esquecer que não quero seguir em frente, um nome assente num lugar onde vamos fazer uma pausa.
Cartaxo. Após um troço de estrada esburacada com curvas em piso ondulado pelas raízes das árvores velhas que se transformaram em barris para albergar o vinho.
A rua que nos acolhe não tem ninguém mas há casas dos dois lados. Umas casas, outras prédios que parecem encolhidos, gastos, nus de alegrias, tudo está velho, ou é de mim, que estou triste?
Estaciono numa perpendicular que desenho com vagar e saímos do carro. Uma senhora curvada e pequena passa por mim, olha-me. Não és de cá, dizem-me os olhos dela. Boa tarde, digo-lhe eu. Tu não dizes nada.
Caminhamos em silêncio, procuro a tua mão. Dirigimo-nos ao café que tem um toldo com o nome impresso. A Tertúlia.
Tu gostas de Cartaxo, eu gosto de Tertúlia.
Dentro, um ecrã grande pendurado na parede, junto ao tecto, a emitir o som que me traz os domingos cinzentos da minha infância, como detesto televisão! Quando se vive com a televisão, ainda se vive?
Apenas uma mesa ocupada. Duas mulheres velhas sentadas e uma que ainda está a crescer e que saltita em redor da mesa, a cantarolar. Depois pára e olha para mim. Não és de cá, pensa ela.
- Ainda servem almoço? - pergunto à senhora de bata de trabalho que está atrás do balcão a acomodar bolos na prateleira de vidro.
- Não, menina, almoços já não servimos. Desde que a polícia começou a multar os carros estacionados em cima do passeio, as pessoas não vêm.
Encolheu os ombros. Depois continuou.
- Mas temos bolos caseiros, olhe este, de nozes. Saiu agora do forno, ainda está quente. E este aqui também se vende muito bem, fiz hoje de manhã, é bolo mármore, vê?
Rodou o prato para me mostrar o contraste na massa, bolo mármore.
- Corte do outro, o de nozes, se faz favor. Duas fatias grossas.
- A menina não é de cá, pois não?
- Hoje sou. Tenho um buraco no peito e vou enchê-lo com o seu bolo. Uma fatia hoje outra amanhã, deve chegar. Sou de cá porque a estrada que me trouxe também tem buracos.
- Então venha mais logo, menina, estou a fazer bolachas de manteiga. São uma maravilha, é o que todos dizem. Até se esquece das tristezas, vai ver!
- Obrigada, tenho de continuar caminho.
Voltei ao carro, pousei o saco com as fatias de bolo quente no lugar onde tinhas vindo enquanto me consegui enganar.
No café "A Tertúlia" vive-se com a televisão e já não se servem almoços.
Mas fazem-se bolos caseiros. E eu vou continuar a procurar-te.
No Cartaxo não estás.
11/04/2014
Silêncio
Acabo de me dar conta de que gosto muito muito muito de andar de comboio.
Calha mal ter-me dado conta disto agora, que estava para me ir deitar.
Em vez disso, estou no comboio.
Senta-se uma rapariga à minha frente, virada para mim. Claramente estudante, claramente altíssima, claramente podia quase ser minha filha e claramente holandesa. Vejo-a tirar coisas da mala e usar essas coisas. Um telefone. Digita uma mensagem rapidamente e guarda-o. Bzzz dentro da mala, o telefone, ela ignora-o. Um elástico com que apanha o cabelo. Uma volta loira no ar e fica preso como se soubesse o caminho, que bonito cabelo. Uma pequena caixa de bombons com papel celofane a abraçar os bombons. Tira um, mete na boca. Dispenso o celofane. Admiro a passividade com que ela enfrenta o barulho tcheliquoestrínico que emana do celofane e enche a carruagem de ondas sonoras de intensidade razoável, revira os chocolates e tira outro.
Eu tenho sempre travões activos produzidos pela minha insuperável timidez no que respeita a fazer barulho em público que ainda por cima iria revelar, neste caso dos bombons, a gulodice que me assiste e que coabita com a timidez não sei como. Isto para outras pessoas, detesto incomodar outras pessoas, era aqui que eu queria chegar. E esta é a carruagem stilte. Stilte significa silêncio.
No comboio acontece sempre alguma coisa que me provoca introspecção e consequente registo. Timidez. Gulodice.
Depois, ao apear-me, levo um nível de auto-conhecimento mais elevado. E isso não é pouco, é muito.
É muito que gosto de andar de comboio.
(Stilte e tcheliquoestrínico estão em itálico por não serem Português. A primeira é termo Neerlandês, a segunda acabou de me sair.)
Calha mal ter-me dado conta disto agora, que estava para me ir deitar.
Em vez disso, estou no comboio.
Senta-se uma rapariga à minha frente, virada para mim. Claramente estudante, claramente altíssima, claramente podia quase ser minha filha e claramente holandesa. Vejo-a tirar coisas da mala e usar essas coisas. Um telefone. Digita uma mensagem rapidamente e guarda-o. Bzzz dentro da mala, o telefone, ela ignora-o. Um elástico com que apanha o cabelo. Uma volta loira no ar e fica preso como se soubesse o caminho, que bonito cabelo. Uma pequena caixa de bombons com papel celofane a abraçar os bombons. Tira um, mete na boca. Dispenso o celofane. Admiro a passividade com que ela enfrenta o barulho tcheliquoestrínico que emana do celofane e enche a carruagem de ondas sonoras de intensidade razoável, revira os chocolates e tira outro.
Eu tenho sempre travões activos produzidos pela minha insuperável timidez no que respeita a fazer barulho em público que ainda por cima iria revelar, neste caso dos bombons, a gulodice que me assiste e que coabita com a timidez não sei como. Isto para outras pessoas, detesto incomodar outras pessoas, era aqui que eu queria chegar. E esta é a carruagem stilte. Stilte significa silêncio.
No comboio acontece sempre alguma coisa que me provoca introspecção e consequente registo. Timidez. Gulodice.
Depois, ao apear-me, levo um nível de auto-conhecimento mais elevado. E isso não é pouco, é muito.
É muito que gosto de andar de comboio.
(Stilte e tcheliquoestrínico estão em itálico por não serem Português. A primeira é termo Neerlandês, a segunda acabou de me sair.)
10/04/2014
Condições Gerais
Saio do trabalho mais cedo e vou apanhar as miúdas em casa, combinámos um fim de tarde de compras numa das superfícies comerciais de Lisboa.
Elas sabem que se eu puder opto por lavar o carro à mangueirada, pôr-me a fotografar flores antes que murchem ou por meter conversa com uma velhinha parecida com a minha querida avó. Mas hoje combinei as compras.
As idades adolescentes das minhas filhas permitem-nos ir cada uma à sua loja para rentabilizar o tempo de estadia, não vá eu chegar mais cedo à fase do não-aguento-mais-quero-ir-para-casa-já e depois ficava o bilhete para o concerto do James Arthur por comprar e isso é que não.
Vários quilómetros percorridos e vieram encontrar-me sentada, quase derreada, num dos bancos de madeira que a gerência disponibiliza aos idosos e aos maridos em tempo de espera e que eu agradeço, só foi pena não ter trazido o livro.
Já em casa, a minha filha mais nova, a quem o James Arthur faz mesmo vibrar, anuncia que pagou o euro e meio a mais para o seguro de desistência que lhe propuseram na bilheteira da Fnac. Está bem, filha, fizeste bem.
- E mais, mãe, ouve: o seguro cobre participação de sinistros - lê em voz alta as condições gerais, não sem um certo orgulho - ou seja, ficamos mais protegidos.
E depois conclui, triunfante, enquanto dobra o papel:
- Se eu vir alguém no concerto com um ar sinistro, vou logo avisar!
Elas sabem que se eu puder opto por lavar o carro à mangueirada, pôr-me a fotografar flores antes que murchem ou por meter conversa com uma velhinha parecida com a minha querida avó. Mas hoje combinei as compras.
As idades adolescentes das minhas filhas permitem-nos ir cada uma à sua loja para rentabilizar o tempo de estadia, não vá eu chegar mais cedo à fase do não-aguento-mais-quero-ir-para-casa-já e depois ficava o bilhete para o concerto do James Arthur por comprar e isso é que não.
Vários quilómetros percorridos e vieram encontrar-me sentada, quase derreada, num dos bancos de madeira que a gerência disponibiliza aos idosos e aos maridos em tempo de espera e que eu agradeço, só foi pena não ter trazido o livro.
Já em casa, a minha filha mais nova, a quem o James Arthur faz mesmo vibrar, anuncia que pagou o euro e meio a mais para o seguro de desistência que lhe propuseram na bilheteira da Fnac. Está bem, filha, fizeste bem.
- E mais, mãe, ouve: o seguro cobre participação de sinistros - lê em voz alta as condições gerais, não sem um certo orgulho - ou seja, ficamos mais protegidos.
E depois conclui, triunfante, enquanto dobra o papel:
- Se eu vir alguém no concerto com um ar sinistro, vou logo avisar!
07/04/2014
As meias
Veio escarrapachar-se à minha frente.
Ali, mesmo do outro lado da rua, naquele suporte vertical com moldura metálica acastanhada. O suporte de outdoor está à chuva mas isso não impede os anúncios impressos em papel de grandes dimensões de deslizarem por detrás do vidro pingado, à vez. Ora sobe um ora sobe outro e na volta descem todos, uma organização tri-partida.
Um é o novo Audi que não sei quê, não deu tempo de ler, desliza na vertical ascendente e vem o outro que é também um Audi mas que fica mais em conta, a Audi anda a esforçar-se, está visto. São ambos brancos, os carros (o branco está na moda no que toca aos automóveis).
Mas o terceiro anúncio é que me fez saltar um bocadinho dentro do meu carro que está parado, não tem tido deslizes e é preto: Sei Lá, o filme???
Olha olha, querem ver que enquanto a Audi se esmerou para mostrar os seus carros novos, um virado com a frente direita, o outro a dar a lateral esquerda, andava o pessoal das produções a fazer um filme do livro da Margarida Rebelo Pinto?!? Mau.
Se foi este o livro que li dela, lembro-me apenas de uma cena. Do resto ficou o vazio.
A mulher enfadou-se do homem com quem tinha dormido por causa das meias azuis escuras no chão do quarto. Imaginou-se esta mulher, se bem creio, a encontrar meias desta cor pelo chão, todos os dias da sua vida, na saúde e na doença, até que a morte lhe leve as meias. E a cor.
E agora sai um filme sobre isto.
Acho bem. Sempre é um dinheirito que poupo.
Ali, mesmo do outro lado da rua, naquele suporte vertical com moldura metálica acastanhada. O suporte de outdoor está à chuva mas isso não impede os anúncios impressos em papel de grandes dimensões de deslizarem por detrás do vidro pingado, à vez. Ora sobe um ora sobe outro e na volta descem todos, uma organização tri-partida.
Um é o novo Audi que não sei quê, não deu tempo de ler, desliza na vertical ascendente e vem o outro que é também um Audi mas que fica mais em conta, a Audi anda a esforçar-se, está visto. São ambos brancos, os carros (o branco está na moda no que toca aos automóveis).
Mas o terceiro anúncio é que me fez saltar um bocadinho dentro do meu carro que está parado, não tem tido deslizes e é preto: Sei Lá, o filme???
Olha olha, querem ver que enquanto a Audi se esmerou para mostrar os seus carros novos, um virado com a frente direita, o outro a dar a lateral esquerda, andava o pessoal das produções a fazer um filme do livro da Margarida Rebelo Pinto?!? Mau.
Se foi este o livro que li dela, lembro-me apenas de uma cena. Do resto ficou o vazio.
A mulher enfadou-se do homem com quem tinha dormido por causa das meias azuis escuras no chão do quarto. Imaginou-se esta mulher, se bem creio, a encontrar meias desta cor pelo chão, todos os dias da sua vida, na saúde e na doença, até que a morte lhe leve as meias. E a cor.
E agora sai um filme sobre isto.
Acho bem. Sempre é um dinheirito que poupo.
01/04/2014
Estrôncio
Quando eu era criança não gostava mesmo nada de grelos cozidos.
Os grelos cozidos vinham normalmente ao lado de peixe cozido. E de cenoura cozida.
O peixe punha-o a nadar em azeite até perder a sua candura azulada emprestada pelos laivos que sinalizavam a presença do ferro que te faz tão bem, Susana. A cenoura comia-a em bocadinhos muito pequenos, a ciência inclinar-se-ia para lhes chamar nano-bocados e eu não me oponho. Mas os grelos.
Os grelos era escurinhos e todos molhados no meu prato, o verde escuro é do ferro, também têm ferro, faz muito bem aos meninos, mas mamã, eu posso comer só o ferro do peixe, posso?
- De tudo. As meninas têm que comer de tudo.
Com a minha mãe não se brinca, portanto tratei de iniciar a composição da garfada enquanto apertava o nariz entre o polegar e o indicador da outra mão, e tentava afastar o pensamento de grelos com aquelas pernas compridas que se metem garganta abaixo enquanto o pé ainda descansa no garfo, a falta de jeito ainda morava comigo, inquilina da idade de então, que esse era o meu medo.
Nesse dia a minha mãe deve ter exasperado com a velocidade a que os grelos desapareciam do meu prato do almoço, já devia ser quase hora de jantar e eu naquele debate, aproximou-se, pegou ela no meu garfo todo lambuzado do azeite onde o peixe tinha boiado com o seu ferro muito tempo atrás, está visto que este ferro não é metal pesado, o peixe boiava mesmo, e meteu-me os grelos na boca com o jeito que só ela possui.
Milagre.
Aquela garfada de grelos era doce e não tinha pernas compridas nem me meteu medo.
Decidi que era magia, só podia ser. Magia de que só a minha mãe, que cheirava às flores todas dos campos todos e era a pessoa mais linda do mundo inteiro, era capaz.
Hoje estou ainda para saber o que se passou, estariam os grelos cansados de ser horríveis durante tanto tempo? O ferro era afinal metal pesado e já se tinha depositado no fundo do prato? Ou é leve e ter-se-ia evaporado?
Compro muitos livros, mas nenhum me explicou de onde veio aquela magia que transformou os grelos mesmo à minha frente.
E também compro chá. Para beber quando tenho frio ou quando é abril e o inverno continua agarrado a nós, esqueceu-se de sair.
Hoje escolhi o de caramelo porque gosto de caramelos mas não os como por causa da linha que já de si não é grande coisa.
O chá, apesar de ser de caramelo e ter uma fotografia de um exemplar em ponto grande semi-derretido na caixa, é mau. Péssimo, até.
A minha mãe é que agora vive longe e não me informou sobre o ferro do chá ou o magnésio ou outro elemento qualquer da tabela periódica, deixa cá ver, o estrôncio, que tem um nome sonante.
Se não já tinha esta noite outro milagre para contar e um post muito giro para escrever.
Os grelos cozidos vinham normalmente ao lado de peixe cozido. E de cenoura cozida.
O peixe punha-o a nadar em azeite até perder a sua candura azulada emprestada pelos laivos que sinalizavam a presença do ferro que te faz tão bem, Susana. A cenoura comia-a em bocadinhos muito pequenos, a ciência inclinar-se-ia para lhes chamar nano-bocados e eu não me oponho. Mas os grelos.
Os grelos era escurinhos e todos molhados no meu prato, o verde escuro é do ferro, também têm ferro, faz muito bem aos meninos, mas mamã, eu posso comer só o ferro do peixe, posso?
- De tudo. As meninas têm que comer de tudo.
Com a minha mãe não se brinca, portanto tratei de iniciar a composição da garfada enquanto apertava o nariz entre o polegar e o indicador da outra mão, e tentava afastar o pensamento de grelos com aquelas pernas compridas que se metem garganta abaixo enquanto o pé ainda descansa no garfo, a falta de jeito ainda morava comigo, inquilina da idade de então, que esse era o meu medo.
Nesse dia a minha mãe deve ter exasperado com a velocidade a que os grelos desapareciam do meu prato do almoço, já devia ser quase hora de jantar e eu naquele debate, aproximou-se, pegou ela no meu garfo todo lambuzado do azeite onde o peixe tinha boiado com o seu ferro muito tempo atrás, está visto que este ferro não é metal pesado, o peixe boiava mesmo, e meteu-me os grelos na boca com o jeito que só ela possui.
Milagre.
Aquela garfada de grelos era doce e não tinha pernas compridas nem me meteu medo.
Decidi que era magia, só podia ser. Magia de que só a minha mãe, que cheirava às flores todas dos campos todos e era a pessoa mais linda do mundo inteiro, era capaz.
Hoje estou ainda para saber o que se passou, estariam os grelos cansados de ser horríveis durante tanto tempo? O ferro era afinal metal pesado e já se tinha depositado no fundo do prato? Ou é leve e ter-se-ia evaporado?
Compro muitos livros, mas nenhum me explicou de onde veio aquela magia que transformou os grelos mesmo à minha frente.
E também compro chá. Para beber quando tenho frio ou quando é abril e o inverno continua agarrado a nós, esqueceu-se de sair.
Hoje escolhi o de caramelo porque gosto de caramelos mas não os como por causa da linha que já de si não é grande coisa.
O chá, apesar de ser de caramelo e ter uma fotografia de um exemplar em ponto grande semi-derretido na caixa, é mau. Péssimo, até.
A minha mãe é que agora vive longe e não me informou sobre o ferro do chá ou o magnésio ou outro elemento qualquer da tabela periódica, deixa cá ver, o estrôncio, que tem um nome sonante.
Se não já tinha esta noite outro milagre para contar e um post muito giro para escrever.