31/10/2015

No chão do comboio, em pé não dá

Caminho apressadamente em direção à estação e avisto a Jessica dirigindo-se a mim, vai intercetar-me, vai vai, e quando se acerca declara que se chama Jessica (por isso é que eu sei) e que está numa causa de proteção dos animais, se eu não quero, por acaso, toda ela sorrisos, tem coisas nas mãos, vai entrevistar-me ou sei lá eu… Jessica, não dá, estou quase a perder o comboio, declaração que faz com que ela se afaste sem tirar o sorriso, um aceno de mão, então boa viagem.

Mas desta vez o comboio vinha em duas prestações, divorciou-se pelo caminho, chegou ao oriente desorientado, desorientou-me e eu perdi mesmo a minha metade, onde é que já se viu um comboio não alinhar nos carris, deixar-se dividir assim e não sei quê, gosto sempre de ler e não sei quê. Fazia tenções, eu, de me sentar no meu lugar, recostar a cabeça e fechar os olhos antes de desatar a fazer qualquer coisa, a semana acabou e a dor no braço esqueceu-se de voltar depois do efeito do comprimido que tomei de manhã cedo para poder pegar ao trabalho em forma total sem falta.

Na plataforma, é que ainda estamos na plataforma, olho o relógio e vejo que o comboio se atrasou já dois minutos ou três, coisa inédita sem chuva forte, cantoneiras caídas, um elefante espojado na linha ou nevões incríveis, mas finalmente chega o alfa, há algo de másculo num comboio a chegar que eu não sei descrever mas há, e traz carruagens com números, estranhos, todos, ao  da carruagem indicada no meu bilhete. Acaba o comboio e a minha carruagem nada, então que é isto, corro à senhora fardada, senhora! senhora!, a minha carruagem não veio, onde está a minha carruagem? (confirmo pela quinta vez o número do comboio, o destino, a hora, os outros números, as referências, tudo tudo sem falhar nadinha). A sua carruagem estava no desdobramento, minha senhora – a minha senhora sou eu nesta cena - no quê?, no desdobramento, o que é isso? minha senhora não posso fazer nada, o seu comboio já partiu, era aquele que parou na linha seis, esse? mas esse tinha outro número, ia para outro destino, vá falar com o revisor. E eu fui a correr, bilhete no ar, antes que o comboio fuja, o revisor está rodeado de gente indignada de bilhetes brandidos no ar, em aflição, cadê as carruagens, mas isto mas aquilo, dois comboios com o mesmo número, toda a gente mas senhor mas senhor, uma festa de bilhetes no ar, patético e autêntico, o revisor tem os braços muitos grandes e tatuados e depois farta-se da malta toda de repente porque já disse quatro vezes que somos todos da metade desdobramento e não da metade normal, e a metade desdobramento já se foi embora, diz então, com um aceno tatuado no braço, vá, entrem, arranjem lugar se puderem, que o comboio vai cheio, se não vão em pé! Corremos todos às portas ainda abertas, ai jesus, entrei no resto de comboio (que não é a minha metade).
Eu, que não tenho jeito para arrancar pessoas dos seus lugares nos comboios e depois me refastelar à vontade, isso não tenho, encosto-me à parede ligeiramente côncava no extremo da carruagem em que estou, emprestada, e depois deslizo por ali abaixo, em pé não dá, já trabalhei hoje doze horas muitas delas em pé, vou sentada no chão do alfa pendular até coimbra e tenho muita sorte porque se me apetecer até sou capaz de ir deitada.

Portanto não posso contar nada do que se passa nas terras lusas que atravessamos, fazer um texto muito bonito, a lembrar as viagens na minha terra, à noite (já é de noite), mas mais moderno, claro, não posso.   

A meio deste post pendular um bocado enjoado (no chão o alfa enjoa mais) aparece o revisor das tatuagens e eu daqui estico o braço com o meu bilhete uma vez mais no ar e digo que vou reclamar e pedir o dinheiro de volta, ai vou. Ele que faço muito bem, faço faço, mas o que interessa é chegar a casa, não é, diz ele, lá isso é, penso eu, e depois acrescenta que as pessoas nunca reclamam, encolhe os ombros e desaparece comboio fora.

O que ele não sabe é que eu não sou as pessoas. Se fosse, teria escrito coimbra com letra maiúscula, como deve ser. E oriente. Mas como vinha enjoada, o post ficou assim na versão alfa. Pendular.

27/10/2015

Post para apreciar quem puder, tem música

- Ô doutora, 'inda taí? Não vai buzcar oz miúdoz, não?

Dona Rita entrou na minha sala com uma coisa à qual as senhoras da limpeza apreciam chamar o franjinhas e deve ter mais vontade de ver a sala vazia do que eu lá dentro.

- As minhas filhas já são grandes, dona Rita.

Dona Rita é brasileira, o sotaque está reproduzido da melhor forma que encontrei no teclado.

- Grandjizz? Como grandjizz, doutora? Olha essa foto aí!

Dona Rita aponta para uma foto pregada na parede na qual se veem duas meninas (e não miúdos, não sei onde ela foi buscar a ideia de miúdos), uma mais alta que a outra, estão de mão dada e a pequenina tem meia bolacha maria na mão, são as minhas filhas há uns catorze anos atrás, lindas.

- Olhe aqui dona Rita, venha ver.

Convido-os, à dona Rita e ao franjinhas, a dar a volta à secretária e porem-se ao meu lado; no ecrã do computador já se podem apreciar as minhas doces filhas, ambas sorridentes e em versão muito recente.

- Iiiii dotoura, qui grandjizz!

- E lindas, dona Rita.

- Sim, são lindazz az mininas, ólha só! Mas porque a doutora não muda a foto da paredji?

A dona Rita chama-me doutora.

- Não sei, gosto dela... (e gosto mesmo muito, aprecio-a imenso).

Entretanto já dona Rita começou a passear o tal franjinhas por todo o espaço, apanhando poeiras e - bolas, vou ter de dizer - cabelos.

- Ô doutora...

- Diga dona Rita...

- A siôra sabe como faiz para não cair o cabelo, não sabe?  

- Não... (detesto estas conversas, eu prefiro ser perfeita e não me cair cabelo nenhum ou, se cair, que ninguém veja)

Agora o cabo do franjinhas fica por um pedaço metido debaixo do braço de dona Rita, que ela precisa das duas mãos para explicar o fenómeno.

- Doutora, a gentji lá no Brasiú faiz tudo assim, viu? A siôra pega numa daiz pílula, sabe aiz pílula para nóiz não ficá grávida?

- Sei... (agora já estou mesmo a detestar)

- Entâo, a siôra ismaga um comprimido dêssiz e miztura com o shampoo, viu? Depois aplica e vai vê! O cabelo fica fortjinho e bom, qui dói! E não cai! É qui essas coisa da Dercoz e táu, isso é tudo muito caro, viu? Ah, não dá! Vai, experimenta como nóiz faiz no Brasiú.

É claro que não vou experimentar nada disso, principalmente porque não preciso, viu, dona Rita? Não sou perfeita não, mas o meu cabelo chega-me muito bem e se cai é devido aos esforços intelectuais muito importantes durante os quais alguns fios se separam de mim de cansados que ficam os pobrezinhos.

Mas pronto, isto eu não disse à dona Rita, ela é mulher que eu aprecio (hoje é o dia de apreciar) e sai já porquê, uma, ela diz bom dia todas as manhãs cheia de uma alegria contagiante que eu às vezes absorvo mais do que penso precisar e, duas, porque adoro ouvi-la falar, o sotaque brasileiro é música, soa tão bem.

Mas e o meu cabelo? Pelo sim pelo não, fui ao cabeleireiro, dei uma ajeitada, coisa de nada, dona Rita não vai notar não (aperfeiçoo-me muito assim, às escondidas, aprecio isso).

25/10/2015

O post está quente

Há quem diga que da saudade não se sofre mas eu nem pensar, ai sofre sofre. Da saudade e da vontade de escrever, que aperta ainda que mote não haja, haja o que houver.

Para me aquietar vou então buscar Satie. A música abre-se como uma flor oferecendo pólen, de onde se soltam, voando, pétalas de seda e eu fecho os olhos. As notas preenchem à vontade os cantos da cozinha, docemente, deixando-se depois derreter, libertando a tristeza que carregam, escorrendo tensões. Deixo-o roçar-me o cabelo, Satie, os movimentos também, sei que estás aí, são carícias tantas e depois quando os abro, os olhos, descubro que não tenho açúcar bastante para o bolo que entendi fazer à tarde. Pela janela distraio-me com as nuvens brancas; por entre a chuva vejo que fluidas preenchem o vale lá em baixo e depois abro os armários, as notas de Satie penetram os interstícios procurando a doçura que não tenho, gavetas também, não há. Beber café, ou chá, sem adoçar não pede visitas à caixa do açúcar que está quase vazia desde o último natal, desconfio. Encontro o pacote de passas na caixa das especiarias e tomo a decisão possível, passo-as para dentro da massa, adocem vocês o que eu não posso, continua a chover lá fora em cima das nuvens do vale e Satie cá dentro, de mim, borrifa-me a alma que não o corpo, tu e eu e já o calor do forno, afinal doçura temo-la nós e o bolo cresce, cresce.

Mesmo sem mote o post está quente, queima-me de saudade sofrida sim, que a vontade de escrever ainda não passou.

21/10/2015

Café com leite e este é capaz de ser o pior post de todos

Os meus colegas de trabalho, com quem almoço quase todos os dias desde há muito muito tempo, imenso tempo, são ainda mais antigos que eu e falam com frequência de como eram as coisas dantes, os terrenos, as ruas, as casas, as azinhagas, havia o senhor Manuel e todos menos eu se lembram do senhor Manuel, e o senhor Joaquim também, com o boné, e o senhor António que tinha uma vaca e tudo ali, mesmo ali, tão diferentes eram os caminhos, quem os viu e quem os vê e isso assim (aborreço-me). Normalmente um destes senhores do antigamente também cantava fado, é perfeitamente normal isso. Admiro muito as pessoas que cantam, principalmente as que cantam ópera. Mas eu prefiro falar de assuntos do tipo livros ou então ciência (aborrecem-se). De política nem pensar, é uma asneira, que eles estão todos do mesmo lado e eu de outro lado e desconfio que gostam de estar contra mim porque puxam muito o assunto, enquanto o governo vai e não vai está-se mesmo a ver como são aqueles almoços. Mas eu sou pacífica e pacífica morrerei daqui a imenso tempo, portanto não há problema.  

Mas noto que se desenvolve em mim um lado rural, isso noto. Comecei há atrasado a sonhar em ter uma vaca (como o senhor António), que eu gosto muito de vacas, uma vaca para dar leite até ser velhinha e neste ponto falta-me saber com que idade fica uma vaca velhinha. Vou afeiçoar-me a ela como sei lá o quê (uma vez, há muito tempo, numa ação de estímulo de equipas, coisa intensiva e esgotante, eu era jovem, já não se faz disso, perguntaram-me qual é o meu animal preferido e eu ouvi a minha própria voz soltar-se no ar entoando vaca, portanto já se vê que não é de hoje) ou seja, claro que não a vou comer. Retiro-lhe o leite e apreciarei a casta que dali vier. Se ela morrer antes de mim, tratarei de fazer um buraco gigante na terra para a enterrar. Depois, junto da campa, plantarei um pé de magnólia que vai florir em abril e em branco. Como o leite. Como? Bebo, o leite bebo. Normalmente com café.

Bom dia.

20/10/2015

Canteiro de flores mortas

Já tinha passado um tempo depois da hora em que as luzes ainda se acendem no corredor de acesso à cave, quando o atravessei. Apalpei o chão com os pés onde sabia estarem os degraus, não queria cair. Encontrei-os e a seguir a eles a porta corta fogo, que se abriu com um estalido. O silêncio na cave é frio e está morto, um fruto seco, bolorento, de muitas estações iguais de tantos anos tristes. Entrei; o paralelepípedo de plástico com a sinalética da segurança ilumina o ar o suficiente para mim; com as costas direitas corto o abraço surdo que me ecoa os passos e atravesso a cave até ao fim, onde o fio de luz se fina.

Felizmente tinha deixado a alma lá fora, escondida no canteiro das flores já mortas, a ler Clarice Lispector. Quando cheguei à bancada de trabalho, no canto mais fundo da cave, tentei imaginar o texto e acendi a luz do candeeiro metálico de braço extensível que alguém pendurou na prateleira de cima e que fica sempre a oscilar quando lhe toco. Não olhei para trás, nunca olho para trás. Pus os óculos na cara, inclinei-me e liguei os fios sem tremer as mãos. Quando terminei devolvi os óculos ao bolso, apaguei o candeeiro que ainda oscilava, voltei-me e vi-me caminhar na luz ténue, esverdeada, a minha bata branca que se afastava como um fantasma, o meu cabelo a cair pelas costas como se fosse real, subi os degraus para dentro do corredor que vi engolir-me num trago. Esgueirei-me então pela frincha da outra porta, a que dá acesso à rua, e regressei ao canteiro das flores mortas onde me esperava o livro aberto na página do texto que tentei imaginar.

(se não fosse chorar sempre que oiço Ave Maria de Schubert, não tinha a certeza absoluta de existir)

19/10/2015

Post desta vez com erros nenhuns (os posts com post no título é que são bons)

Irritam-me as bolachas oreo e os derivados das bolachas oreo, os gelados, as mousses, os cupcakes, principalmente os cupcakes. As bolachas oreo não deviam existir porque não passam de uma versão patética e embalada do maravilhoso branco e negro ou quente e frio que tão bem nos pode fazer no inverno ou no verão, o quente e frio que aquece e dá arrepio, claro que a rima foi de propósito. Quem pode comer um quente e frio não quer uma oreo à temperatura ambiente nem que seja a do seu lar, detesto aquilo. E posso gabar-me com propriedade pois nunca eu avancei a comer uma coisa derivada de bolacha oreo, muito menos se for feita na bimby, também detesto a bimby, mas toda a gente que tem bimby é feliz com ela e eu está bem ok (isto era da canção). Desconfio do interior que viu branqueamento forçado, do exterior muito mais preto que chocolate preto, voltámos à oreo, uma concentração de cento e vinte por cento de açúcar, um nojo, desculpem lá, muito menos produzir derivados daquilo e não sei quê. E os cupcakes, falta dizer isto, parecem bonecas barbie em versão bolo queque de plástico com pepitas de acrílico e enfeites de natal a fingir que escorrem mas não, estarão presos com alfinetes de ama, ganchos para o cabelo ou sei lá eu. Uma perda de tempo quase tão inútil como os museus de cera, os autocolantes na fruta ou os insuportáveis cartazes outdoor com anúncios ou, ainda pior, a implorar anúncios que ninguém nunca lê se faz favor.

Mas.

Hoje fui fazer um brunch pela primeira vez na minha muito longa vida. O brunch teve lugar num local sem nenhumas luzes brancas led do tipo centro de saúde de moscavide que nos fazem a cara verde com sombras cinzentas, não, o sítio do brunch tem candeeiros com luzes amarelas muito bonitas, lustres kitsch e vintage ou coisa assim que eu de moda e decoração percebo menos que de pintar unhas, e dos estrangeirismos gosto muito mas só quando os traduzo para português corrente, no entanto kitsch nem escrever sei quanto mais traduzir. Mas não era isto, era que nesse lugar muito acolhedor onde hoje fiz o brunch com uma amiga de longa data, uma espécie de alma gémea, a Luísa, que me desenterrou de casa e me fez ir ao local que estava pejado de cupcakes em massa esquisita, passámos sei lá quanto tempo mais de duas horas a conversar como eu adoro conversar, e o local era lindo, tinha música que se ouvia tão bem, e cadeiras de várias cores, e muitos bules de chá que me lembram a minha avó querida, mesmo giro aquilo, e também estava cheio de cupcakes, já disse, e depois no fim ela levou cupcakes para casa dela (um deles de bolacha oreo, por isso é que eu sei) e eu detesto cupcakes e pena foi ter-me esquecido de lhe perguntar em que partido ela votou, mas que bem me sinto assim neste mundo em que todos diferentes e todos iguais e as amizades quando são, são mesmo e o que não interessa, não interessa, estou aqui estou a fazer poesia. Aliás, não fossem os cupcakes da Luísa e eu estaria já a dormir em vez de me entreter como ninguém a escrever um post extremamente pertinente altamente adequado e desta vez com erros nenhuns.

16/10/2015

Poesia demais para mim

Até há pouco tempo, cada um dos meus posts demorava em média uma hora e meia a produzir, mas agora tem sido um ver se te avias, devido a coisas novas que me ocupam as mãos muito mais tempo que dantes e eu preciso delas para escrever posts, e está visto que voltei aos posts, pois postes ficava tão mal. Aliás vendo bem, se nas canções não nos importamos de ouvir that's me in the corner, that's me in the spotlight losing my religion - e isto é apenas um exemplo muito suave - eu cá arrumava a um canto uma canção que dissesse olha eu ali na esquina, olha eu ali no foco de luz a perder a minha religião (ou então isto é poesia demais para mim).

Mas venho há pouco a fazer a autoestrada de volta a casa e apanho, àquela velocidade, um post pelo caminho (bem se vê o jeito que dá chamar as coisas pelos seus habituais nomes), vem do passado, este post, voa direito a mim, colidimos, olha ele.

Estou com as minhas filhas no pequeno centro comercial do bairro de então, as mãozinhas delas a desaparecer nas minhas, caminhamos em modo de compras, temos, eu não digo, mas elas quatro e seis anos de idade e a de quatro comunica-me de repente, ai mãe 'tou aflitinha. Entramos nos sanitários femininos, a mais pequena mete-se dentro de um cubículo e eu com ela, a mais velha fica à espera do lado de fora, não saias daí, querida. A minha filha caçula aqui à minha frente, os seus caracóis a brilhar debaixo do foco de luz (aproveito muito as ideias) e põe-se a olhar para o teto, como quem veio para ficar. Eu, que nem sempre sou maravilhosa, começo a impacientar-me, estou apertada e está calor.

- Filha, despacha-te, anda.
- Ó mãe tu és tão linda.
- Tu também, amor, mas agora despacha-te.

A impaciência contagia-se, a outra filha, do lado de fora, diz vamos embora muito alto, 'tou farta de esperar, e eu espera, não saias daí e, para a pequenina, à minha frente

- Vá, querida, falta muito?

A miúda, que sempre ensaiou ensaboar-me em situações do seu interesse, insiste

- Ó mãe, és mesmo linda.

E continua, semicerrando os olhos para mim, conferindo a convicção necessária à declaração.

- Olha, és tão linda, mãe, tão linda... É que és ainda mais linda que...

E de novo fitando o teto, procurando a palavra que lhe fugia, que me poderia entreter a paciência uma vez catapultada a minha beleza para o seu devido lugar, para que não houvesse dúvidas, a irmã do lado de fora continua a fazer-se ouvir, eu cheia de calor debaixo do foco de luz do cubículo, pode dizer-se que sou capaz de perder a minha religião ali de repente, praticamente, e eis que a miss caçula a encontra, à palavra, e conclui, triunfante

- Que as bruxas, mãe! Tu és mais linda que as bruxas!


(muitos anos depois: lembras-te disto, filha? lembro perfeitamente, mãe, eu tinha pensado em dizer princesas, mas depois achei que não era preciso exagerar)

12/10/2015

Tonight she comes


Há muito tempo que é nesta época que mais se fundem lâmpadas mas nisso não se fala. O processo costuma manter-se até depois do natal, mesmo que ande toda a gente em modo jingle bells. A fileira comprida de focos luminosos perfeitamente design no teto do meu corredor já tem duas baixas e ainda outubro não chegou ao meio, ora isto habitualmente contagia as vizinhas da fileira se eu não urgir escadote acima para a troca. No fim de semana dei dois saltos à rua, e a rua deu-me um outono tão bom. Composto à chuva pela tarde, o que eu adoro o outono não sei medir mas contar, contei. Duas lâmpadas em semáforos e três em automóveis que circulavam no mesmo piso molhado que eu, e em poucos metros foi o que se arranjou para poder sustentar este meu primeiro poste.

De modo que é nesta altura que mais me vejo o carro ao espelho, na minha vida há por acaso espelhos muito bons para ver carros ao espelho (atividade pós-laboral): enquanto aciono as luminárias da viatura, com a mão, com o pé, à frente, atrás, à esquerda, à direita, autoteste que nem sempre acaba passado, mas que de honesto tem tudo, o meu teste, é uma verdade, podemos estar descansados quanto a isso não tem problema nenhum.

Com esta conversa assaz eletromecânica, nem parece que tenho um novo amor e tenho. Com ele viajo sem carro pelo ambiente do janelas dez da microsuave e depois dentro de um escritório dois mil e dezasseis há toda uma possibilidade de coisas que podemos fazer, ainda nos estamos a descobrir, é tão belo isto, não o largo nem ele a mim, a Cristina disse-me hoje ao almoço que tenho os olhos mortiços, a parva, desculpei-me com ai é do tempo, mas claro que não é, continuando, íamos aqui, o equipamento macio dentro do equipamento duro*, o meu amor novo, e por causa dele escrevo este primeiro poste em português moderno, que do antigo ele não gosta, põe-se vermelho por baixo, de maneira que comecei pelo teto, as lâmpadas foi tipo motor de arranque ao tema, para não cair em seco (chovia), e acabei a traduzir tudo, limpámos os estrangeirismos, o meu amor novo e eu, ai tenho os olhos mortiços, tenho?... sabe lá ela do que fala, a Cristina.

(e agora, precisamente após o meu primeiro poste em português moderno quase todo isento de estrangeirismos e imediatamente antes de ir buscar o escadote para subir ao teto, apeteceu-me ouvi-los, aos carros, ahhh...)

* e não o contrário

08/10/2015

Fica para a próxima

As fatias de bolo de chocolate que estão deitadas em pratos de cerâmica branca decorados a maior parte deles com uma linha circular azul impressa a meio do seu bordo, bem me tentaram. Só a palavra chocolate, aliás, já me predispõe e isto não tem piada nenhuma. Pode mesmo tornar-se um aborrecimento, por exemplo, ao balcão de bombons esculturais do café Portela no centro comercial Vasco da Gama, quando não posso evitar lá ir ou de repente num desses aeroportos que não ficam longe de Bruxelas. Em vez de uma fatia de bolo de chocolate, suspiro e recolho para o meu tabuleiro uma raquítica maçã assada enfiada numa taça transparente um nada maior que ela, dona Esmeralda hoje é o prato de carne se faz favor.

Uma barulheira na cantina, a televisão aos gritos, comi num instante. Saio logo a seguir à maçã assada, raquítica mas boa, ela e eu atravessadas agora pelos mesmos neutrinos (tem de ser, tem mesmo de ser), entro no carro que está quentinho e me avisa pela quarta vez, para aí, que precisa de combustível. Ignoro e ao parar no semáforo vejo pelo canto do olho uma coisa que me faz virar a cabeça e que é uma fotografia gigante da Mariana Mortágua ao lado da Catarina Martins. Fiquei a olhar para a Mariana Mortágua e pensei que ela tem um rosto bonito, tem mesmo. Mas podia ser mais bonito o seu rosto, aposto, se deixasse as sobrancelhas inteiras. Parece-me que as mulheres em geral deviam deixar as sobrancelhas inteiras (poupa-se um tempão que se pode usar a escrever posts muito bons). Não tive tempo de reparar nas da Catarina Martins, fica para a próxima, o sinal pôs-se verde de repente e eu arranquei, eu e os nossos neutrinos. Meus e da maçã assada. 

(este texto tem um erro; se alguém o descobrir, ganha)

Actualização do post-desafio a 13.10.2015, para a eventualidade remota de alguém ainda cá voltar:

O erro está aqui:

"...o sinal pôs-se verde de repente e eu arranquei, eu e os nossos neutrinos."

Os nossos neutrinos, meus e da maçã, os que supostamente nos estavam a atravessar imediatamente antes de eu arrancar com o carro, não arrancam connosco: somos transparentes aos neutrinos, nós avançamos e os neutrinos continuam a trajectória deles sem se incomodarem com o trânsito ou com maçãs assadas, com blogues ou com posts tolos como este. (tolo, mas é o terceiro no ranking de visitas desde sempre deste blogue.... são um verdadeiro sucesso, os neutrinozinhos)

06/10/2015

Lombinho na brasa e o prémio Nobel da Física

Gosto muito de saber que os neutrinos sempre têm massa. Mas se não a tivessem eu gostava na mesma, os neutrinos intrigam-me, encantam-me e mais coisas, mas hoje não. Que oscilam, não me admiro. Vindos do sol a abrir, trazem o fogo no rabo (quem tem massa tem rabo, suponho), atravessam o que for preciso sem olhar para trás (se olhos não for o caso, fica a metáfora), mas isto sou eu a inventar. O que gostava muito de saber a seguir, se os senhores não se importassem, é qual a probabilidade de, ao longo de uma vida humana, um neutrino mais gordinho, vamos supor, todo oscilante, colidir às cegas (os olhos já se sabe) com uma célula das nossas, coitadinha, está visto que apanhará o susto da sua vida, e eu queria saber se a colisão é tal que faz apenas cócegas à gente ou se é valente e pode mesmo deslocar do lugar (do pé para a mão, por exemplo), a célula atordoada ou, pior, mudar-lhe as funções sem mais nem ontem, depois de tantos anos de especialização no ofício. Ou seja, que quantidade de energia traz o neutrino afinal, o rechonchudo, no lombo? Lombo de neutrino, se faz favor. Lombinho? pode ser. Sim, com massa. E na brasa, que eu ainda não jantei.

(Post terminado a martelo, para ficar pequenino como o seu mentor, ainda que maciço - ah maroto!, quem diria, uma coisita de nada e vai-se a ver pimba, massa com ele! - e não, o acabar do post, para evitar que continuem a chover tolices, como pode ter parecido.)

05/10/2015

Todas e cada uma contam

Reparo que na página de escrutínio onde consta o meu nome de eleitora que sou, já toda a gente, companheiros de folha no caderno eleitoral, tinha ido votar. Tola, ocorre-me que se isto fosse amostra representativa do universo, abstenção nem vê-la, um grande zero é o que é, ou quase, como no livro em que Saramago ensaiou sobre a lucidez, e parvamente sorri.

Duas horas na autoestrada a caminho da urna olhando os loendros do separador central, que ainda estão em flor, e faço a lista de razões mentalmente. O que levará um cidadão a optar por não votar, ora deixa lá ver. Reflexão no modo o melhor que sou capaz e são três as razões que me restam como válidas: depressão profunda, incapacidade física para o efeito, ausência do país por motivo de força maior. Mais não me ocorre em tantos quilómetros de loendros. Sobrou ainda tempo, é verdade, para conferir que me mantenho indecisa quanto à cor da flor que lhes prefiro, se branca se rosa (se isto parecer piada política, não é, nem isso nem eu indecisa).

E depois vem aquilo da página onde os dedos escrutinadores que procuravam o meu nome por inteiro pararam e em voz alta alguém confirmar que eu sou eu, estou aqui (aperto sempre a mão do presidente da mesa, porque na verdade gosto à brava de votar, de estar ali, haja o que houver), e depois veio aquilo de esta vou-dizer-minha página estar cheiinha de vistos nos quadrados em frente dos outros nomes, ah vizinhos!, veio aquilo de eu sorrir e sonhar em me orgulhar absurdamente por fazer parte de um povo que se recusa a ficar indiferente e faz valer a sua voz, veio aquilo de ter a mania que é agora que a coisa vai. 

Acho vergonhoso o tamanho da nossa abstenção. 

Pois também o oceano é feito de gotas de água. Muitas e muitas, mas todas e cada uma contam.

03/10/2015

Em estado larvar bem perto de si

Como quereis vós, homens com sede, que eu me detenha somente em tarefas nobres e rejeite escrever tolices, se me é dado ouvir no rádio do carro, logo pela manhã, antes mesmo de dar entrada no habitual sistema de entradas, uma coisa do tipo peça orquestral em estado larvar?

Ora isto é composição que se ponha assim completamente na emissão de uma estação de rádio do tipo antena dois, neste escorvar de mais um outubro, composição que uma pessoa do tipo eu, em tendo um blogue activo, não é capaz de deixar passar em branco e vai e posta aqui o quê? Uma curta metragem (é a fase das curtas).

Lembro que começava o agosto a cair de maduro quando nos cai a nós, aqui em casa, uma comunidade de vespas crescidas a pedir atenção urgente. Atenção bem orientada que foi, culmina com Peça orquestral em estado larvar em exibição num dispositivo bem perto de si e por exemplo não saia do seu lugar.

Aviso: O vídeo que se segue tanto pode conter imagens chocantes como provocar reminiscências de break dance baseado em contorcionismo. Não experimentei fazer em casa e detesto contorcionismo. Mas não este.


A orquestração esteve a cargo da mãe natureza, o estado pertence às tais vespas.

(nota para os eventuais atentos ouvintes da antena dois: este post deve-se ao dia um do corrente e chega de notas)