28/04/2015

Luvas quase brancas de algodão

Claro que não é muito bonito aproveitar-me do furo do vizinho do quarto andar para escrever uma peça destas, mas tipo nem tudo o que eu faço é muito bonito, de maneira que paciência.

O vizinho do quarto andar embirra com a minha arte de estacionar na garagem no meu muito lugar (do inglês in my very place) e diz nas reuniões de condóminos que as pessoas, as pessoas sabemos os dois que sou eu, não devem ter medo de bater na parede, mas eu tenho medo de bater na parede e ele então, se me apanha a chegar, faz-me sinais extraordinários com as mãos, pode ir mais, pode ir mais, pode ir mais o tanas, o lugar é meu.

Ou seja, nem tudo são rosas na minha vida e ainda falta referir a gracinha que ouvi quando troquei de carro e ele no meio da vénia, cumprimenta as pessoas com uma vénia, os seus carros são sempre, cara vizinha, pausa para sorrir, digamos, são sempre sui generis. É que eu também sou assim, sui generis, gosto muito, caro vizinho.

Mas hoje ao chegar a casa é que foi. Encontrei-o no estacionamento exterior, eu a passar para a garagem, vejo-o de luvas quase brancas, parecem de algodão, e o vizinho aos saltos em cima da chave de cruzeta para desaparafusar o pneu da sua carrinha Mercedes preto luzidio, o pneu tem a barriga deitada no chão. Parei o carro, saí.

- Precisa de ajuda? – aproximo-me para averiguar melhor o material de que são feitas as luvas. Algodão.
- Não, obrigada.
- Afinal os meus carros é que são esquisitos, mas o seu é que …. ah, mas este pneu está gasto (gosto muito de verificar pneus).
- Tenho de lhe pôr pneus novos, tenho, o meu filho é que anda com a carrinha, mas meteu-lhe ar, encheu-o demais e o pneu abriu, ó. (na ilustração vê-se que a sua luva aponta para uma fenda no pneuzorro, que isto é um pneuzorro, e eu baixo-me para ver ainda melhor a luva)

Deixei-me então estar a fazer conversa sobre sítios bons para trocar pneus gastos por novos até o ver saltar em cima da cruzeta o suficiente para remover os cinco parafusos e só depois, tenha então um bom resto de dia, caro vizinho.

De modo que entro em casa com a certeza de que na próxima reunião de condóminos não se farão ouvir piadinhas sobre pessoas que têm medo de bater na parede ao estacionar ou então servir-se-á alegremente uma observação sobre a singularidade de se trocar pneus com fendas abertas, resfolegantes, calçando luvas quase brancas de algodão.

27/04/2015

Toxinas escaganifobéticas

- Não quer salada?

- Hoje não, obrigada. Já levo este pudim com cheirinho para me colorir a tarde; o que é? Brandy? Bagaço? – e quedo-me sem pegar no tabuleiro, estou a atravancar a linha de montagem dos pratos de quem almoça na mesma cantina que eu, de facto a fazer muito bem um pescoço de garrafa.

Diz-me então a dona Esmeralda neste preciso momento e através dos óculos que parecem um nadinha tortos todos os dias para o mesmo lado, ainda com a colher das batatas suspensa, diz-me ela, de repente, eu já a pegar lentamente no tabuleiro enquanto aguardo esclarecimento acerca do líquido suspeito que faz poça em cima do pudim castanho que preenche a taça de metal e que promete ser de chocolate portanto eu cheia de esperanças, impossível reduzir o comprimento desta oração, era desculpar, mas chocolate é chocolate, diz-me ela então que me acha graça no bom sentido.

Portanto eu, logo a seguir, para não empatar mais a linha de gente com tabuleiros de madeira e com certeza uma fraqueza em cada estômago, era para lhe perguntar de que se trata achar graça num sentido que não seja bom, pode saber-se, mas ela eis que opta pela via rápida, corta a direito e vai assim,

- É açúcar derretido – enquanto abana a cabeça como quem comenta para a colher das batatas, onde já se viu, numa cantina destas, bagaço…

Portanto saio do corredor onde se serviu hoje o borrego cozido e os dias de borrego são bons por causa da musicalidade da palavra agarrada à imagem do animal, uma graça em todos os sentidos, esse sim. Para mim são os singelos filetes de pescada, muito fáceis de cortar e pobres em toxinas escaganifobéticas que me alimentam enquanto se desfiam os temas do Benfica, mesmo ali em redor do meu pudim com topping de açúcar derretido, uma riqueza.

- Dona Esmeralda, eu também lhe acho graça a si.

Um dia destes, entre uma garfada e outra, a menos que Jorge Jesus surja no ecrã da parede do fundo, hoje aconteceu, havia novidade, e eu a esse também acho graça no bom sentido por causa do cabelo, um dia destes ainda lhe conto de isto, de ela vir parar aqui ao blogue nos dias em que há borrego.
  

(este não é o post sobre palavras, sobre que é não sabemos ao certo, daí o título)

24/04/2015

Um ovo sozinho em arranjo de paixão

Chego a casa tarde e não está ninguém, tiro os sapatos e o casaco e vou para a cozinha. Acendo a televisão que me informa que é o último programa com o Nuno Morais Sarmento, despedidas hoje não, apago-a, adeus Nuno. Abro uma garrafa de vinho branco que tem passado bem no frigorífico, é um dos meus favoritos, a uva moscatel torna-o mais doce, precisamente um vinho quente estando fresco. Deixo deslizar este suco viscoso para dentro de um copo de pé alto, só bebo vinho em copos de pé alto esteja quem estiver ou não esteja ninguém, trata-se de uma espécie de religião, seguindo-se o alho francês e o pimento vermelho que corto devagar em rodelas e tiras finas, respectivamente. Nestes formatos último grito, grito não, suspiro, deito-os para a frigideira ansiosa, prometi-lhe festa, previamente revestida de fios de azeite a fazer desenhos que me lembram o teu rosto no final de uma tarde, podia ser esta, a sorrir para mim, fios que se desprenderam, espreguiçando-se, da pele interior da garrafa quando a segurei com o gargalo para baixo. O vidro é material que parecendo frio já conheceu um calor igual ao nosso, por isso caiu o azeite num murmúrio grave no fundo com revestimento de fábrica a aquecer de prazer, digo eu de prazer. Salteados, estes dois frutos da bela natureza enlaçam-se num contraste que já encheu a cozinha com o aroma esperado. Cozo meia chávena de arroz basmati que mesmo perfeitamente em Lisboa, com o rio ali a ver, me vai saber a oriente, solto. Para acompanhar o vinho e enquanto os legumes se deixam levar, cegos de luxúria estimulada pela espátula de madeira com que os revolvo, deito algumas amêndoas salgadas numa taça, para trincar ao som crepitante das cores que, suculentas, trocam fluidos quentes à vontade. Penso que estamos a ver.

Quando o arroz fica pronto, escorro a água excedente. Os grãos destinam-se, em massa, a servir de manto cobridor dos vegetais al dente. Por cima vieram juntar-se suavemente, como neve a soltar-se da minha faca afiada, algumas tiras de fiambre fino para acabar uma embalagem ainda dentro do prazo e ao lado estrelei um ovo sozinho. Preparo o prato por forma a que as cores se disponham em arranjo de paixão, e os meus olhos começam.


Para terminar, sento-me a comer e a ler. Entalo o livro aberto debaixo do bordo do prato, mas penso em ti e apetecia-me ouvir Wagner.

(aquela pequena inspiração de literatura arrancada com os dentes, a que chamei arranjo de paixão, foi bebida aqui)

21/04/2015

Um gigante soco nas ventas

Independentemente de ter o meu cabelo, hoje de manhã, ao pequeno almoço, mergulhado uma ponta suavemente no café com leite, estava um sol radioso. Frescura luminosa suspensa, uma espécie de poesia em éter atravessado apenas pelo canto dos melros que habitam perto e, em termos visuais, temos a luxúria das flores das árvores em rosa velho ou branco nata-batida contra o celeste do céu, numa combinação extraordinária e de propósito especial. (penso que se nota bastante a influência de Dostoievski na minha escrita, embora já tenha terminado o livro, mas aquilo cola-se e depois fica)

Vou a conduzir alegremente pela avenida do bairro residencial acima, já quase a chegar à escola, e nisto levo a mão esquerda com suspeitas razoáveis, ao cabelo. A ponta está dura. De forma que fico ligeiramente atrapalhada porque não sei que volta dar a isto, se o lavo, se ando assim o dia todo, sou capaz de andar assim o dia todo.

Precisamente agora mesmo, sou arrancada de forma bárbara aos meus pensamentos duvidosos por uma carrinha preta audi A4, nova, que praticamente me limpa o espelho retrovisor do lado esquerdo a uma velocidade chegada à da luz, e eu, olha-me este anormal. Repito que estamos num bairro residencial (não repito aquilo das flores e do céu e dos pássaros para não maçar).

O animal que leva aquele carro nas mãos cola-se ao da frente, que já está a travar para ceder passagem, na passadeira dos peões, a um jovem com ar de quem vai para a mesma escola da minha filha lindíssima (as minhas filhas são lindíssimas, nasceram já assim) sentada ao meu lado. Mas a travagem do estafermo é tão arrancada à velocidade estelar que o carro faz uma espécie de zig zag rápido ali em dez centímetros e desvia-se do da frente, posicionando-se ao seu lado esquerdo, ocupando metade da faixa contrária, isto para não imprimir o focinho meio metro dentro do volkswagen golf , era um volkswagen golf. Eu aproximo-me com uma indignação muito maior do que a Grande Lisboa e olho para dentro do veículo, para ver o focinho do animal e preparar o meu punho mentalmente, que vontade de lhe enfiar um soco na tromba. Uma vez ia enfiando um soco na tromba de uma miúda do tipo vaca que se meteu com a minha irmã Ana que é do tipo fofinha e mais nova, mas isso foi há milénios. Seguraram-me a tempo.

- Ó mãe não faças nada, é um miúdo lá da escola, tem dezanove anos e anda com esse carro.
- O quê?!
- Sim, o carro é dele, os pais deram-lhe o carro, têm muito dinheiro.

Portanto os pais deste parvalhão de dezanove anos têm muito dinheiro e até talvez um visto gold, dado que o condutor a quem eu enfiava um gigante soco nas ventas, repetir alivia, tem cara e nome de chinês.

Quando o tornar a apanhar decoro-lhe a matrícula num instantinho - que para decorar matrículas nunca encontrei ninguém melhor que eu - e vou direita à polícia.

Mas por hoje fica aqui o aviso.

20/04/2015

Caranguejo com tangerina quente ou o inferno às postas com espinhas

Desta vez custa-me erguer a mala acima da minha cabeça para a enfiar no espaço vazio da bagageira do avião. O meu ombro direito melindrou-se há dias com um alongamento que lhe impus na aula de dança e já contaminou o braço, agora não gostamos de erguer malas assim. Sento-me no meu lugar ao lado de um casal luso de meia idade, ele resmungão profissional, já o topei lá fora, sempre zangado, ela doce e como que a desculpar-se por estar ali, sim querido, desculpa eu ter nascido, desculpas, amor? Olha, queres uma bolachinha que eu tenho aqui? Toma, toma. E pastilha elástica por causa dos ouvidos, já te dei?

Dentro da minha mala a fazer aquele peso estão dois utensílios de cozinha para esmagar muito bem batatas cozidas, e o que eu gosto de batatas cozidas, um pão holandês inteirinho, o vestido que usei no único jantar praticamente de gala a que fui, no qual comi uma sopa de caranguejo com tangerina quente servida ao aperitivo, em pé, eu naqueles saltos tremendos, a sopa numa tacinha do tamanho duma chávena de café, coisa assim, e depois com dois golos mal medidos lá se foi o caranguejo com tangerina quente, impressionante, adiante, um número substancial de cêdês que também trago e se não me falha mais nada para além do braço direito, três livros, tenho ali três livros, que o quarto ficou de fora para ler na viagem, aqui está ele, coisa rica da mamã.

Ah, mas a dor de levantar a mala enervou-me o braço, que agora me põe a mão a tremer se quero segurar o livro, espera aí livro.

De maneira que dá tempo de voltarmos ao casal enquanto o braço se acalma. Perguntei-me por que razão gostam algumas mulheres de estar casadas com homens que a cada novo momento encontram um motivo para resmungar, como se todos os tempos de espera (o voo atrasou uma hora) ou os contratempos inesperados (as mulheres querem coisas e fazem coisas e dizem coisas, nas filas, fora das filas e em todo o lado) fossem um inferno oferecido às postas com espinhas, esses tempos e contratempos, temas que lhes ferem as vísceras, mas só as deles, as mais delicadas, entranhas habituadas a serem servidas sempre a contento, desculpas, amor? E depois vocês quiseram ficar a fazer não sei o quê, vocês é a própria mulher e as outras que iam no mesmo grupo, e a gente aqui ta ta ta que eu já nem ouvi. Porque não fazem eles o embarque por filas, organizado, isto assim é uma confusão. Olha como estes arrumam as malas, que belo serviço que está ali. E mais coisas destas, todas muito inúteis e todas muito cheias de um propósito imaginado na cabeça do marido zangado, seguidas de exclamações tolerantes e ligeiramente aflitas da sua mulher, desculpas, amor? Ela é doce e tem palavras doces até para mim, assim que me sento, a esfregar o ombro direito: o seu lugar é esse? É que eu sentei-me aqui à janela, mas não tenho a certeza, sim sim o meu lugar é este, não se preocupe. Ah, ainda bem, senão podíamos trocar. Ela sorri e eu simpatizei, lá fora já tinha simpatizado com ela, eu tenho a mania de engraçar com as pessoas que deixam ver uma fraqueza. 

Abri outra vez o livro. Uma fraqueza?! Tenho a mania de engraçar com as pessoas que deixam ver uma fraqueza?! Pois tenho, uma fraqueza, tenho. E mesmo duas, qual é o mal? duas também.

Mas isto, estes maridos resmungões, arrotando opiniões dispensáveis, desagradáveis, as vísceras sensíveis, profissionais de verter intolerância grátis em cima das suas mulheres, desculpas, amor? mostrarem assim ao mundo as muitas fraquezas que têm, tantas tantas, imensas, engraçar com estes é mania que não tenho mesmo nada.

O meu braço acalmou e a mão já não treme. Meu rico livro, vamos lá.

14/04/2015

Almofarizes assassinos e palavras cáusticas

São quase dezanove horas. Saio do edifício e puxo a porta atrás de mim. Sei exactamente a força que devo aplicar-lhe, sem me virar, para que ela se feche com um clique mínimo mas suficiente. A minha alma, olá alma, está aqui fora à espera, apanhaste chuva, afago-a, apanhei chuva, diz sorridente (nós gostamos de chuva).

A alma fica o dia todo fora do edifício por precaução. Acorrentada às horas mas livre ao ar, está a salvo de almofarizes assassinos e palavras cáusticas. Fiel, no reencontro do fim do dia, veste-se de mim outra vez. Serve-me com a cócega vertical na barriga e eu arrisco-me a ficar estupidamente feliz. Lança-me na vertigem de um novo nascer e é por isso, talvez, que cheira a setembro.

A cinquenta metros de nós, os carros deslizam no alcatrão molhado e morno. É dali que vem este aroma viajado. Acabado de chegar e de cruzar os meses, foi enviado pela mesma chuva que inaugurou o ar tão cansado do verão. Setembro cheirou tão bem. Lembras-te?

12/04/2015

Carapaus, douradas, pargos, robalos e o das postas

Entrei perfeitamente na zona de desconforto que se estende em frente ao balcão do peixe, com a senha de vez na mão, cinco números e uma grande família de carapaus à minha frente (com os quais ensaio uma conversa, são tão feios os carapaus).

Arrumadas como peças de dominó depois da queda global induzida pela primeira estão as douradas, cada uma esconde uma fatia das costas da vizinha, mas deixa-lhe o olho vítreo à vista. Ao princípio achei graça, isto é quase arte, pode dizer-se que é quase arte, mesmo com a senha na mão e os cinco números que me separam da mordida no meu anzol.

O senhor que está a ser atendido era capaz de poder ser meu pai à vontade e pede à menina que lhe ponha uma dourada em cada saco se faz favor, tudo assim muito devagar e já no momento em que ela lhe estendia os sacos com o aviamento feito. Mas estou a ficar com um frio impaciente e vejo que tenho os pés dentro de uma poça de água suspeita que pinga do gelo do balcão, olha para isto. Desvio-me na lateral, alinhando-me agora com os pargos que até são muito mais interessantes que os carapaus. Sou capaz de considerar isto um upgrade. Para me entreter mais um pedaço, enquanto as douradas do freguês consumam o divórcio, olho o número da minha vez na senha azul, não vá eu ter visto mal, vi bem. Continuas o mesmo, não mudaste nada ó número (eu às vezes parece que espero milagres).

- Quer que ponha também este em sacos separados? – a menina ergue o outro saco com postas de peixe cuja linhagem não identifico e eu ai não. Isso não. Num virar de cabeça fulminante, golpada rápida, ameaçadora, fito o senhor das douradas numa intenção absoluta de o intimidar com os meus olhos em estado semicerrado e ele perceber que gente da minha idade tem pouco tempo para nha nha nha, principalmente quando não se consegue entreter mais com os pargos e deixou todos os livros em casa, todos.

- Sim, se faz favor, já agora – tom delico-doce, baço, o do já agora, já agora???, mas para que quer ele este favor se não o quer muito e separar aquelas postas todas demora um tempão, what if you get a life, sir?

Mas eu tenho uma queda por gente mais velha e hoje é sábado, essa é que é a verdade, de maneira que encaixei a impaciência num suspiro potente, poeticamente capaz de fazer acordar toda a peixada e comecei a ponderar se não seria excelente ideia dar à Teresa, ao jantar, outra coisa que não robalo fresco no forno.

Vou portanto a voltar-me, adeus robalos, quando a menina de repente, pressionando um botão que faz ouvir-se um tilim igual ao da repartição das finanças, dezoito, dezanove, vinte, tudo de seguida, afinal os fregueses intermédios tinham ido ao pão, ou à fruta, vinte e um, os que aqui estão devem ter chegado durante as conversas com os carapaus, vinte e dois, sou eu.


Sou eu e vou continuar a esperar milagres, pois vou.

11/04/2015

Dissertação minúscula mas bestial

Encostada às lombadas dos livros que em pilha e muito quietinhos comigo dormem, está uma fotografia da avó Irene. É uma fotografia pequenina, a preto e branco, e mostra um rosto que não sorri. Vela-me o sono, apazigua-me as ansiedades que, em várias cores pontiagudas, me ferem a respiração enquanto estão as insónias a cavalgar-me por cima das horas, mais e mais, uma pena serem insónias.

No verso da capa do único cêdê que tenho da Edith Piaf está, em letras pequeninas, o resumo da sua história de vida. Uma história demasiado triste para ter pertencido a uma pessoa só. A Edith Piaf nunca veio a saber, mas a minha avó Amália gostava muito dela. Mandava-nos calar, meninas estejam sossegadas, porque detestava o barulho que as nossas correrias da casa de férias faziam, precisamente quando ela queria ouvir a Edith Piaf, meninas, é a Edith Piaf! La vie en Rose para nós naquele tempo, nós é que não sabíamos, corríamos dali para fora, que seca, avó, isso é francês?!

A avó Irene estava sempre em casa e usava casacos de lã com bolsos onde guardava um lencinho, ela é que dizia lencinho; era a sua companhia, punha a mão no bolso e apertava o lencinho sem ninguém ver, se calhava alguma coisa lhe ensombrar o dia. Quando estiveres na cadeira do dentista, dizia-me, e se tiveres um lencinho, aperta-o com força para não te doer (como me esquecia do lencinho, experimentei apertar uma mão com a outra mas doeu sempre). Tricotei-lhe dois casacos no fim do tempo dela, primeiro um cinzento e depois um verde escuro, ambos a abotoar à frente e sem me esquecer dos bolsos para os apertos secretos ao lencinho. Usava-os sempre, excepto no verão, que foi só um.

A avó Amália sabia tudo sobre como se deve estar à mesa, nunca se põe a faca na boca e sorver a sopa é completamente proibido, nem que tenham de queimar a língua. Com o guardanapo faz-se assim assim, só nos cantos da boca e ao redor dos lábios, sem esfregar, para não esborratar o batom, mas nós não usávamos batom e queríamos sair da mesa para ir fazer corridas de bicicleta. Era isto a todas as refeições das férias e nós, ó avó que seca. Tocava piano com os seus dedos longos e as unhas sempre pintadas de vermelho, tinha mãos bonitas. Na mala trazia um espelho pequenino, um batom a condizer com as unhas e um pacotinho de Chiclets amarelo, que durava uns seis meses quando escapava aos nossos ataques. Mandava-nos ler os livros da Pearl Buck e caminhar com as costas direitas como se tivéssemos engolido uma vassoura, mas eu lia os da Agatha Christie e ela dizia está bem, filha. Usava echarpes para tapar o pescoço porque uma mulher mostra a idade é no pescoço e ela não queria ser velha.

Depois desta dissertação minúscula mas bestial sobre as avós que tive, e que me deixou ligeiramente lacrimosa devido às saudades que não se matam, eu na verdade sou elas e precisava de lhes dizer isto, estava na hora de ir dançar como nunca. Parece que hoje era dia. Se não era e eu percebi mal, paciência, mas que dancei, dancei.


Quando a seguir trouxe para casa o corpo suado e dorido, fui directa ao duche sem tirar o sorriso da alma que ao dançar apanhei. Depois programei a máquina da roupa para lavar na tarifa de vazio enquanto durmo e a da loiça a mesma coisa e quase me esquecia de comer.

(tal como me esqueci de ler os livros da Pearl Buck, mas já me vou lembrando de olhar para o meu pescoço)

06/04/2015

Anúncio de televisão

Vou a conduzir pela auto-estrada de janelas fechadas ao sol neste domingo de páscoa quando de repente percebo, com tremores no pescoço, que me sinto um iogurte.

- Sinto-me um iogurte.

Dos de beber e de morango. O vento frio, embalado em vácuo talvez não, mas rico em bactérias provenientes de todo um espectro, lufadas potentes de ar muito fresco, condicionado, é-me hostil.

(escrevi este post ontem mas não o consegui fazer passar no crivo)

Mesmo que fosse uma garrafa de vinho branco por abrir, pedindo gambas cozidas à mesa, não melhorava imenso a situação refrigerada em que me encontro. 

Perguntei-me porquê um iogurte.

- Porquê um iogurte?

(portanto regressei para dar uns safanões ao post, depois dar-lhe colo)

E sou atingida em cheio, uma vez mais, pelas palavras lidas como se fossem fáceis, uma flor de cultura resistente, talhada para sair assim, previsível, calibrada, pronta para um enjarramento de muitos dias sem espinhas. Mas não. Ficaram-me às voltas, as palavras, a quererem meter-se na minha vida, a rirem-se de mim, toma toma, querem enfiar a ideia que trazem num canto meu, de aprendizagens fáceis, algodãozinho tão doce, impossível. Estas palavras que colhi silvestres não se aconchegam em jarras, vivem no campo de rosas com espinhos, estão aqui, na morada que se lê a seguir:

 “Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente. É personagem de anúncio de televisão.” (in Ana de Amsterdam, Ana Cássia Rebelo, Quetzal, pág. 128)

Depois suspirei, desejei arrumar depressa isto, é medo. Medo de caber num anúncio de televisão. Perder espessura ou abandonar a existência, coisa assim muito feia. Desliguei o ar condicionado.

Retomei o meu calor devagar, ao sol deste domingo de páscoa, e voltei a sentir a solidão. E com ela, embrulhado no brilho da tarde, um pedacito de tristeza. Ufa.

(o post passou, apesar do enjarramento ali de cima, passou; agora vai ser feliz para sempre)

02/04/2015

Café, torradas e limonada sem açúcar

A cozinha do meu apartamento tem muito sol de manhã. Também tem uma torradeira, duas máquinas de café e laranjas para espremer a brilhar no cesto (à tarde, quando o sol vai para o outro lado entrar pelas janelas da sala e deitar-se no chão de madeira a bater uma sesta, ficam as laranjas baças na cozinha). É por isso que me atraso quase sempre para sair para o trabalho, tenho um fraquinho muito forte por sol e por cozinhas a cheirar a café e torradas.

De forma que puxei por mim a ver se conseguia convencer cinco minutos a enfiarem-se num e ia sair da cozinha com um livro debaixo do braço, o tablet numa das mãos e uma caneca de café com leite na outra, mas para abrir a porta precisei da mão do tablet que não foi bem recebido pela da caneca de leite e, em desequilíbrio, escorrega e cai ao chão, o livro aperto-o em segurança debaixo do braço e a caneca de cerâmica que tem três bananas pintadas dá uma gargalhada ao ver-me no solavanco de tentar num volteio rápido apanhar o tablet no ar e cospe um gole do leite que eu ia beber pelo corredor fora enquanto tratava de me despachar.

Quando a festa acaba, temos leitinho com café refastelado na superfície do tablet, que está a mostrar uma tripinha electrónica a toda a sua largura, temos leite a escorrer na porta ainda fechada e no armário do lado direito, à mesma velocidade vertical, e ainda uma porção impressa no chão em salpicos bem distribuídos, orientados a sul, situados nos arredores dos meus pés, e temos cinco minutos feitos em quinze.

Isto é capaz de ser o resultado de eu me ter recusado três vezes a receber de prenda uma bimby que, segundo a minha colega Carla, é o sonho de toda a dona de casa (bimby é uma máquina que faz tudo para a sua refeição, desde a limonada sem açúcar de morangos do Oregon, à feijoada de búzios apanhados com pinça de ouro das rochas da costa galega, fica a nota perfeitamente informativa).

Portanto, não sou dona de casa. Nem a minha cozinha tem uma porta fácil de abrir com o pé. Por enquanto.

Julho ao sol, agosto inteirinho e ainda o setembro

Comprei uns óculos de ver ao perto um bocado cedo demais. Não tanto que as lojas ainda estivessem fechadas àquela hora, muita piada, mas trata-se da teimosia que a minha acuidade visual detém em se aguentar pela idade fora, não obstante eu fizesse muita questão de pôr os óculos de giros que são. Por conseguinte uso-os muito dentro da mala.

Descansam todo o dia a escassos centímetros do telefone móvel que de repente anuncia uma mensagem a chegar. Deixa ver, sessenta cêntimos por quilograma de borrego nacional não é mau e é o que pode poupar quem comprar quilos de borrego nacional. Acho graça a isto principalmente porque a mensagem deve estar muita gente a ler ao mesmo tempo que eu, orquestrações magníficas se as pudéssemos ver por esse país fora, mas opto por poupar o borrego inteiro e mantenho os óculos na mala.

É porque hoje foi verão à hora a que saí do trabalho, que este post vai derrapar e o borrego ficar descansado. Vinte e nove graus a cair para o fim da tarde catapultaram-me para as férias na casa da praia, nas quais a minha legião de irmãs e eu inventávamos mergulhos o mais possível em voo picado, diferentes e em estilo próprio, de preferência mortais, arte em movimento para dentro da piscina nos momentos em que a nossa mãe virava as costas para ir ver do almoço ou coisa assim, ai filhas do muro é que não, havia um muro e uma de nós preferia-o à prancha de saltos que estava ali para isso.

Portanto a derrapagem vai parar em postar aqui uma fotografia tão antiga que já não vale,  tempos vigorosos em que fazíamos daquilo todo o julho ao sol, sobrávamos para o agosto inteirinho e ainda inaugurávamos o setembro até ao meu aniversário, coisa para festa de garagem a fechar um círculo sem quadraturas nenhumas.


Tiro, finalmente, os óculos da mala e dirijo-me à estante dos álbuns fotográficos que se mantêm fechados na prateleira enquanto passam os anos depressa. Pego no de lombada azul escura, abro-o e encontro-a. Julho de mil novecentos e oitenta e quatro, tem a data por trás. 

Os saltos mortais não eram meus, nem os que vinham do muro, mas quem me vê ali pendurada no ar há tantos natais na prateleira acredita que sim, acho eu com os óculos postos e muitas saudades.