Claro que não é muito bonito aproveitar-me do furo do
vizinho do quarto andar para escrever uma peça destas, mas tipo nem tudo o que
eu faço é muito bonito, de maneira que paciência.
O vizinho do quarto andar embirra com a minha arte de
estacionar na garagem no meu muito lugar (do inglês in my very place) e diz nas reuniões de condóminos que as pessoas,
as pessoas sabemos os dois que sou eu, não devem ter medo de bater na parede,
mas eu tenho medo de bater na parede e ele então, se me apanha a chegar, faz-me
sinais extraordinários com as mãos, pode ir mais, pode ir mais, pode ir mais o
tanas, o lugar é meu.
Ou seja, nem tudo são rosas na minha vida e ainda
falta referir a gracinha que ouvi quando troquei de carro e ele no meio da
vénia, cumprimenta as pessoas com uma vénia, os seus carros são sempre, cara
vizinha, pausa para sorrir, digamos, são sempre sui generis. É que eu também sou assim, sui generis, gosto muito, caro vizinho.
Mas hoje ao chegar a casa é que foi. Encontrei-o no
estacionamento exterior, eu a passar para a garagem, vejo-o de luvas quase
brancas, parecem de algodão, e o vizinho aos saltos em cima da chave de cruzeta
para desaparafusar o pneu da sua carrinha Mercedes preto luzidio, o pneu tem a barriga deitada no chão. Parei o carro, saí.
- Precisa de ajuda? – aproximo-me para averiguar melhor o
material de que são feitas as luvas. Algodão.
- Não, obrigada.
- Afinal os meus carros é que são esquisitos, mas o seu é
que …. ah, mas este pneu está gasto (gosto muito de verificar pneus).
- Tenho de lhe pôr pneus novos, tenho, o meu filho é que
anda com a carrinha, mas meteu-lhe ar, encheu-o demais e o pneu abriu, ó. (na
ilustração vê-se que a sua luva aponta para uma fenda no pneuzorro, que isto é
um pneuzorro, e eu baixo-me para ver ainda melhor a luva)
Deixei-me então estar a fazer conversa sobre sítios bons para
trocar pneus gastos por novos até o ver saltar em cima da cruzeta o suficiente
para remover os cinco parafusos e só depois, tenha então um bom resto de dia, caro
vizinho.
De modo que entro em casa com a certeza de que na próxima reunião de
condóminos não se farão ouvir piadinhas sobre pessoas que têm medo de bater na
parede ao estacionar ou então servir-se-á alegremente uma observação sobre a
singularidade de se trocar pneus com fendas abertas, resfolegantes, calçando
luvas quase brancas de algodão.