31/12/2016

E o teu ano, como acaba?

A toalha de mesa de algodão que herdei dos meus avós, de um algodão grosso, muito branco, faz uns desenhos abstratos que são tão difíceis de interpretar como fáceis de encontrar em superfícies ornamentadas em casas de avós em geral. Cedo aprendi a consentir identidade a tais arabescos de padrão repetido, uma identidade aguçada pela familiaridade da sua presença tão constante, como uma história que se lê repetidamente a uma criança. Aos desenhos em padrão repetido e abstrato da toalha que herdei dos meus avós aceitei-os como se aceita por exemplo que as laranjas são cor de laranja. A toalha tem franjas que fazem um acabamento suave dos seus limites a toda a volta, como se lamentasse não continuar, não ser ainda maior, e está rota em dois lugares. As franjas distribuem-se em grupinhos formados com um nó feito às fibras junto da base, que caem, estando posta a mesa, supostamente. Apesar dos dois buracos e de estas fibras que formam as franjas já terem sofrido, em certos pontos e naturalmente, o processo de soldadura por contacto, lá entre elas, inviabilizando ideias de as endireitar e muito menos pentear, que é de tanto viverem juntas em gavetas e gavetas e gavetas quando fora de serviço, são umas boas sete décadas entre serviço e gavetas, e está quase este parágrafo a fechar, apesar disto tudo acima exposto, queria eu dizer, não tenho a mínima intenção de alhear a toalha. Trata-se completamente de património e posso dizer histórico, que o blogue é meu. Além disso constitui um desafio, vamos ver. Está rota em dois lugares, como já foi dito. Um deles o meu, lógico e fácil: ponho-lhe o prato em cima e vigio a situação para que não haja revelações da rotura. O outro lugar é mais arriscado. Também leva com um prato em cima da cedência de tecido ao espaço, mas a vigilância aí não está sob o meu controlo, de forma que das duas uma, ou nada acontece e o jantar estava tão bom!, ou o buraco é encontrado por um comensal de prato no ar e olha, a toalha está rota aqui! Esta é a parte em que levanto então também o meu, com licença, e aqui também!

E depois conto esta história toda à mesa. À mesa e aos comensais.


Quase tão velho como a toalha está este ano que acaba aqui com a mesa posta, e cheia, e espero que com os corações também cheios: de amor, de esperança, de entusiasmo. Um ano novo com muitos sucessos e momentos felizes é o que desejo a todos os que me dão o prazer da sua companhia neste blogue e que talvez não imaginem o quão importantes são para mim.

27/12/2016

Outra vez a agenda e o natal não sai

Desde que deixei o meu trabalho e comecei outro, já há vários meses, vivo muito mais feliz. A ideia, aliás, era essa, mas falta-me a dona Esmeralda. Ela servia - e serve - os almoços na cantina lá do trabalho que já não é meu. Antes do natal recorri ao meu telefone esperto para lhe ligar, vou ligar à dona Esmeralda, procurei na letra E de Esmeralda e na letra D de dona, mas ela não apareceu. Tentei umas três vezes em momentos diferentes e com percursos diferentes percorridos na lista de contactos, nada. Por estar tomada com outras tarefas natalícias, optei por escrever na minha agenda, no dia 26 de dezembro, uma nota para procurar o seu número também na agenda, quem sabe o tenha escrito aqui primeiro antes de o guardar no telefone que agora o engoliu, o dispositivo praticamente sem falhas está mas é maluco, etc. Hoje de manhã era o dia 26 e portanto, ainda antes de pegar ao trabalho, abro a agenda e sigo as instruções – “ver nº D. Esm”. Folheei-a página a página e enfiei a mão pelas bolsinhas que há a cada doze semanas, a ver de papelinhos, qualquer coisa. Quando cheguei a maio, já nos dias do fim desse belo mês das flores e eu nada de número da dona Esmeralda, vejo uns rabiscos para um post que nunca o chegou a ser e cuja musa inspiradora era precisamente ela. Tomei o tempo para os decifrar na totalidade, estão tortos, escritos à pressa, incompletos. O que eles contam, os rabiscos, é simples. Eu tinha-lhe emprestado um livro de contos, um livro chamado “Contos de Eva Luna” de Isabel Allende (a dona Esmeralda começou muito recentemente a ler livros).
- Olhe menina, já acabei o seu livro. – isto com a cantina vazia, recordo-me; eu tinha, provavelmente, ido buscar café.
- Ah sim? E então?
- Então o livro tem muitos palavrões.
Não me lembro bem do livro, já passou demasiado tempo.
- Palavrões?!... Ai tem?...
- Pois tem. E eu não sabia que os escritores diziam palavrões!
(é impossível não gostar dela)
- Eu não me lembrava dos palavrões, dona Esmeralda… - se me tivesse lembrado emprestar-lhe-ia o livro na mesma - mas isso incomodou-a?
- Aixa?! – o “aixa?!” acompanhado de um olhar cruzado por cima dos óculos, bem direito ao meu.

Não encontrei o número de telefone da dona Esmeralda em toda a agenda, incluindo nas bolsinhas. Retornei ao telefone esperto, nada na letra E, nada na letra D. Não podia estar noutra letra e eu não entendo isto. Suspiro, pego no trabalho, mas não dou a tarefa “ver nº D. Esm” por concluída.

Foi já muito depois de o sol se ter posto que o telefone tocou, o esperto. Estamos junto um do outro, pego-lhe, abro a capa da capa - como chamar à capa da capa do telefone? - abro a capa da capa e vejo que é ela, é a dona Esmeralda a ligar-me. Não acredito!, digo em voz alta (principalmente porque o telefone mostra “D. Esmeralda”, portanto tinha lá o número gravado e andava a gozar comigo desde antes do natal). Está lá?

Quis saber se estou bem, perguntou-me pela família, pelo meu novo trabalho. Disse-me que o seu natal tinha sido bom e que agora estava ali sentada, sozinha, na sua cozinha, e lembrou-se de mim. Eu contei-lhe da intenção de lhe ligar, das pesquisas nos registos, até contei que escrevi para procurar na agenda, escrevi no dia de hoje, precisamente no dia de hoje, dona Esmeralda!

Portanto temos que o espírito do natal, que primeiro não queria vir, agora não quer sair. (e, tão lindo, rimou)

(entretanto, a minha jovem filha desvendou o mistério – alguns contactos estavam gravados noutra memória do telefone, género escondidos, uma coisa muito engraçada)

22/12/2016

O batom não transfere e a panela sumiu

O arranque frequente da bomba de água do prédio voltou ao espetro audível e eu não durmo mais. Cinco horas de sono não me chegam para o que eu quero, mas há o café. Levanto-me sem tonturas, faço subir manualmente o estore da janela e oiço os ruídos que as minhas filhas já disseminam pela casa. Vou fazer o café desejado, agora tenho escrito muito sobre café porque não posso escrever sobre chá, regresso à cama para o que me apraz desde que ficava em casa a aconchegar pneumonias, a ler e mais nada. Agora é mais o café. No rádio passa uma música perfeita que sei depois ser de Paganini, o livro cai-me que nem ginjas, está este um momento no topo dos momentos, quando me chega aos ouvidos uma discussão que vem da sala. As minhas filhas estão zangadas, uma fala alto, indignada, com a outra. Reconheço as vozes, a mais nova está mais acesa, a mais velha mais passiva. Não distingo uma palavra do que dizem, tenho sorte. Tento concentrar-me na leitura, mas a discussão diz que não. Sou mãe. O motivo é sempre o mesmo, uma camisola da outra que uma vestiu e as calças tu também vestiste e deixaste ali e eu queria as botas e tu tinhas levado as minhas botas e esse batom é meu, que não sai nem transfere e tem brilho mate mas pode ser glossy se quisermos, é assim que se zangam as minhas filhas. Que o batom não transfere aprendi esta semana, o que não é o mesmo que ser intransmissível, como se compreenderá, e que será mais do que suficiente, a intransmissibilidade do batom, para as vozes alteadas na sala.
Fecho o livro e vou tomar duche. Ouvi-las discutir é envelhecer mais depressa, é encurtar a vida (mas elas não sabem). No duche lembro-me que tenho de telefonar à minha irmã para lhe dizer que não posso levar a panela das couves para o natal em casa dela. A panela sumiu da arrecadação, talvez tenha tomado as rédeas à própria vida, era panela usada apenas nos natais dos anos pares por complexidades da minha imensa e vasta família, era panela para eu, bem dobradinha, caber dentro, e entre dois mil e catorze e dois mil e dezasseis sumiu-se a panela, ter-se-á fartado de conviver com bichos derivados de insetos no escuro, com móveis a morrer e a caixa da árvore de natal que essa sai nos anos pares e nos ímpares, com as bicicletas que nunca saem, com os restos de tinta de pintar os quartos, a tinta já secou e eu não sei como se deitam fora as tintas, e coisas assim. Tudo muito triste para uma panela. Fecho a torneira da água quente manualmente, pouso o telefone do chuveiro no apoio próprio, na minha família chama-se telefone àquilo e talvez esteja certo, e entra o silêncio na casa de banho. A discussão, que bom, lá terminou.

16/12/2016

Criptografia caseira (praticamente a cheirar a bolos)

De repente, ao pousar no prato os talheres do jantar, lembrei-me que o prazo de pagamento de um dos meus impostos anuais devia estar a finar-se. Jesus. Dei um salto da cadeira e corri para o computador, entrei no sítio da internet do pagamento de impostos anuais, de ecrã em ecrã navegando até esbarrar com o pedido para introduzir o meu número de contribuinte e a palavra passe. Como as minhas visitas a este sítio na internet não são assim tão tão tão frequentes, hesito sempre a pensar na palavra passe, ai qual é qual é, não, eu não uso a mesma palavra passe para todas as situações, uso sim variações de uma palavra passe central, o que pode tornar a situação mais nebulosa, e torna, por isso é que sofro estas hesitações, e tap tap tap, escrevi os dígitos à velocidade certa, para ajudar, a ver… o objetozinho gráfico a rodar no ecrã como quem pensa naquilo e depois, bingo! estava correta. Aliás costuma estar correta, na verdade, mas eu tenho sempre receio, porque no antigamente, quando visitava ainda menos frequentemente este sítio, ocorria esquecer-me da palavra passe e então era pedir nova senha (senha é o mesmo que palavra passe, mas escreve-se mais depressa), que era enviada como se de código ultra secreto se tratasse, pelo correio postal, imensos dias, e isso – quando se está à beira do finar do prazo - pode não ser amigável para o contribuinte. E então tive uma ideia completamente brilhante e única: vou escrever esta mnham mnham mhnam desta senha num localzinho sem ninguém saber qual é. E qual é? Pensei, pensei. A minha agenda, claro! where else? É tão linda a minha agenda e ninguém a poderá encontrar porque ela é só minha e, mesmo que encontre, o pior que pode acontecer é esse alguém querer pagar os impostos por mim e isso ok está bem.

E onde na minha agenda? Pensei outra vez, pensei, pensei. Tem muitas páginas, mas o melhor é o dia do meu aniversário, ninguém iria desconfiar. Pode não parecer, mas eu gosto muito da minha agenda, peguei nela e apeteceu-me logo tirar-lhe uma fotografia, mas primeiro procuro o meu mês… Depois o meu dia. E olha, vejo uma coisinha lá escrita nesse dia, só uma coisinha. Foco os olhos, que é o mesmo que dizer afasto um bocadinho a agenda deles (acontece muito nesta idade): e a coisinha é, jesuuuuus, a palavra passe!!! Precisamente a palavra passe,  aquela minha palavra passe!… 

......

E agora? Como acabar este post? Agora que sei que me repito perigosamente nas mais secretas rotinas do pensamento e da minha própria criptografia caseira? Como? Com a minha agenda?


Não, com a fotografia dela. Pronto.


(quis ficar assim, deitada, e eu deixei)

14/12/2016

Ou eu não percebi o espírito natalício ou as mulheres são más mas é para os homens

Ao final da manhã de hoje, eu sossegada em casa, a trabalhar, entra a minha filha Saminhas, que é a mais nova e muito enérgica, enfia a cabeça na sala onde estou e dispara, olá mãe, posso levar um pacote de massa para o almoço em casa da Maria?
- Olá, querida, podes. – hoje havia almoço em casa da Maria.
- Trago de volta o que sobrar.
- Não é preciso!…


À hora do jantar, agora todas em casa, defronte dos lombos de salmão au alecrim com puré de batata verdadeira e couves de Bruxelas, tudo preparado por Muzi, a mais velha, lança a enérgica Saminhas:
- Ai adorei o meu dia hoje, foi tããããão bom!!!!!
Já estamos habituadas a estas manifestações de felicidade de Saminhas e eu lembrei-me do almoço em casa da Maria.
- Então? Correu bem o almoço?
- Simmm!!! Correu!!!! Mas gastámos a massa toda, mãe, éramos cinco.
-  Claro, filha, obviamente. E quem eram os cinco? - conheço, na generalidade, os amigos das minhas filhas.
-  As duas Joanas, a Maria, o Pedro e eu. Foi tããão bommmmm, estivemos a conversar imenso!, ali, no espírito do Natal, ao pé da árvore e das luzes!…  
- E sobre que falaram vocês, ali, no espírito do Natal? – nem sempre as minhas perguntas têm resposta, mas eu tento.
- Falámos de imensas coisas… bem… o Pedro contou-nos as classificações que os rapazes da turma nos deram…
- Classificações?!
- Sim, de zero a dez. Eu tive um seis! – e mostra-se toda sorridente e feliz.
- Um seis???? Tu mereces um dezasseis!!! – eu considero as minhas filhas o top, I can’t help.
- Mãe, é até dez. E eu acho que seis é muito bom!
- É pouco, mereces mais…  E as outras meninas?
- As Joanas tiveram uma sete e a outra oito, mas elas são mesmo lindas, mãe… Mas a Maria teve um cinco…
- Oh… - gosto especialmente da Maria, também por ser a que conheço melhor - então e o Pedro, não foi classificado por vocês?
- Bem… como é evidente nós não perdemos tempo com essas coisinhas menores…. portanto só nos debruçámos hoje sobre esse assunto e resolvemos classificar o Pedro, mesmo ali à frente dele.
- Ah, bom. E então?...
- Primeiro tivemos de o dividir em dois: corpo e cabeça, senão não dava. Isto tinha de ser a sério.
- Ah… e?
- De corpo teve um sete/oito.
- Ena! E de cabeça?
- Três e meio.

(grande espírito natalício: este miúdo merece de certeza mais - é dos melhores alunos da turma e ajuda os restantes nas dificuldades...)

09/12/2016

Assim assim

Por causa das minhas filhas, lavei o cabelo assim assim e há imenso tempo que não usava a expressão assim assim. Elas roubam-me coisas. Por exemplo utensílios de beleza (já lá vamos, é um momento), com os quais me esforço para potenciar a dose que me coube no momento da distribuição pela mãe natureza, e outros produtos mais ou menos químicos também de beleza (prometo), incluindo o conteúdo do frasco de shampoo (do meu shampoo, que elas têm outro). Portanto eu de manhã estou no chuveiro e pego, viro o frasco ao contrário, espremo espremo e depois sai um bocado de ar e uma nozinha do produto mais ou menos químico para o fim sabido. Por isso ficou o meu cabelo assim assim.

Quanto à beleza, a situação baliza-se como segue: a minha filhinha mais nova, que não recorre a artifícios de linguagem a menos que lhe interesse muito muito, aos quatro anos de idade diz-me assim, ai mãe tu és tão linda, tu és mais linda que as bruxas! Mais tarde acrescentou (para esclarecer):

- Eu ia dizer “mais linda que as princesas” mas depois pensei que não era preciso exagerar.


Relativamente aos roubos, não sei que fazer, acho que ficamos assim. Assim assim, aliás.

Podia ser tu e eu

Hoje acordei toda triste. Levantei-me e fui logo à cozinha abrir o dia. A janela está embaciada e até escorre, não se vê bem a rua nem o rio se vê bem, nem os carros nem as árvores se veem bem. Veem deixou de ter acento no primeiro e, o que dá muito mais jeito para escrever. Os acentos são como buracos na estrada, o veículo em vez de avançar vai abaixo e volta acima, pum pum, e isso é perdas. A panela de sopa que fiz ontem à noite estava ali, meti-a no frigorífico. Depois fiz café. Fazer café é tão bom, às vezes penso assim, faço café e depois tocam à campainha. Vou abrir a porta e digo acabei de fazer café. E ficamos ali, a pessoa e eu, podia ser sabes o quê? podia ser tu e eu, a tomar café e a viver isto, a falar a vida, a saboreá-la inteira, simplesmente, este momento em comum. O aroma está a sair por todo o lado, a cafeteira fumega e a máquina da loiça, vejo agora, por descarregar. Descarrego-a praticamente toda no tempo do café correr. E só depois notei que já tinhas saído.

(não sei onde anda o natal, este ano ainda não apareceu)

01/12/2016

E sai mais um post fofinho

Dizem que é para ter autoconfiança. Eu não vou dissertar o que há a dissertar sobre os outros dizerem: tenha autoconfiança. Do tipo conselho. A intenção é boa, claro, de modo que vá, não dissertando nada, faço agulha uns graus à minha esquerda, para onde ela está sentada. Estamos na sessão do curso que andamos a fazer, ela, eu e mais pessoas, e estamos na pior sessão de formação a que já me foi dado assistir. Tão má que achei, à cabeça, que era aquilo a brincar. 

A minha colega, esta que está à minha esquerda, mais assertiva do que eu que já estou a entediar-me e a indignar-me com a sessão medíocre e hesito entre dizer já ou dizer depois que a sessão é medíocre, está segurando com ambas as mãos muito bem arranjadas o seu telefone esperto a uns centímetros – acho que uns dez centímetros – acima da mesa de fórmica da fria sala de formação. Vai pondo a escrita de mensagens em dia: entre mensagens rápidas, o seu dedo corre a lista geral, a cada linha uma fotografia associada, ou então aquele desenho padrão de recorte de cabeça sem cabelo para quem foto não tem, vejo pelo canto do olho isto e o correr de mensagens, mas enfim, tento espremer a sessão a ver se dali tiro alguma coisa, lembro-me de quanto paguei para aqui estar, e concentro-me na muito pobre formadora. Mas de repente a minha colega espirra violentamente, o telefone cai em cima da mesa catapabum! e eu dou um salto. Este ar condicionado é realmente muito forte, também eu teria frio não fosse estar dentro do casaco.

- Ai… desculpa – na sequência do meu salto.
- Não faz mal, saúde. – e olho de novo para o telefone, que já regressou às suas mãos, acima do nível da mesa, a lista de mensagens agora quietinha. E então, sem querer, os meus olhos leem o nome que está junto à fotografia de homem jovem, óculos escuros, sorridente, céu azul por trás, é a fotografia com mais ocorrências na lista, aliás quase todas as ocorrências da lista: “Mor”.

Desviei os olhos num instante para não prolongar a invasão ainda que não intencional e antes que um sorriso me denunciasse o enternecimento que deveras senti. "Mor”. 

Tanto, que deixei para dizer da porcaria da sessão depois.


(esta minha colega é das pessoas com mais entusiasmo, espírito são e atitude construtiva que me foi dado conhecer nos últimos tempos)

26/11/2016

Carro azul sem luvas

Não é que isto tenha interesse. Quer dizer, não a historiazinha em si. O que tem interesse, para mim, é faltar ainda uma hora para aterrar o avião em que sigo e eu puxar do computador para ver se sou capaz de fazer um texto antes de pousarmos no chão.

Ontem já o sol tinha descido abaixo do horizonte e deixado de breve herança uns braços azulados por cima da cidade, paro o carro na estação de serviço e dirijo-me sozinha ao edifício para fazer o pagamento prévio do combustível que pretendo consumir. Como é muito costume nestes lugares, está uma fila de pessoas unidas pela intenção de pagamento prévio, atrás das quais eu me posiciono, cada um terá a sua vez. Quando já falta pouco para a minha, ouço a mulher espanhola ali à frente dizer à funcionária da estação de serviço, “es el carro azul” (não disse coche, disse carro). Assim é identificada a bomba de onde vai sair o combustível para o carro azul, a combinar com os braços herdados do sol, após o pagamento prévio estar concluído. Nesta estação de serviço as pessoas têm de pagar previamente os combustíveis que hão de consumir, situação mais do que agradável, acho até bastante fofinha, já que assim ficamos todos livres de, uma vez o carrinho atestado, e quiçá fruto dos vapores à base de combustíveis fósseis, nunca mais ganha a eletricidade esta guerra, mas já não falta tudo, ai que confusão, se não me despacho daqui a pouco ainda mandam fechar os electronic devices que vamos aterrar, uma vez atestado o carrinho, dizia, a gente vai-se embora todos lampeiros e cheios de potência no carro e esquecemo-nos de proceder ao pagamento, falha que ninguém quer cometer. A nossa espanhola está agora a debitar os seus números de contribuinte, não sei onde contribui ela, mas que os disse, disse, dos, ocho, cuatro, uno e tal, não vou dizer os outros que é aborrecido para a senhora, já basta contar ao mundo que ela tem um carro azul. A funcionária registou tudinho, um a um, compreendeu o espanhol, uma lindeza aquilo, quem é o português que não compreende espanhol?, nenhum, esteja onde estiver o português compreende o espanhol, já o inverso não se verifica, mas adiante, paciência, a operação quase terminada, a espanhola arrumou a carteira, parecia mesmo o desfecho todo quase ali, vamos lá embora, não fosse ter a espanhola levantado a mão direita, sacudindo-a ligeiramente no ar, os dedos abertos, e dito guante?  Mas por esta não esperava a funcionária, que devia achar aquilo ser um adeus, boa tarde, disse, porém a mão espanhola no ar, guante? outra vez. Ao terceiro aceno de guante, boa tarde, próximo por favor, coitada da funcionária, a mão espanhola já a afrouxar, ela vai desistir, mas estou cá eu, que tenho a mania de preencher as lacunas que vêm ter comigo, e ligar dois fios para que dois entes comuniquem é coisa a que não me nego, luva! levanto a minha voz o suficiente para a funcionária ouvir e digo luva, a senhora quer uma luva!

- Luvas?… ah… não temos. – a funcionária tão admirada como eu, que sendo toda a favor da higiene, desde que sem exageros, nunca meti gasolina no carro com luvas.

A espanhola encolheu os ombros, deu meia volta e seguiu para o abastecimento do seu carro azul sem luvas.


Consegui. Ainda sobrevoamos uma data de nuvens.

19/11/2016

Ne pas oublier, o café e um recado

Hoje de manhã era sábado e eu levanto-me e vou pôr café na cafeteira, e água também e um filtro, que é de filtro este meu café. A cafeteira lembro-me que custou oito contos e uns quatrocentos escudos há exatamente vinte e quatro anos. Exatamente, porque foi num mês de novembro que a minha avó me perguntou, do que precisas para a tua casa, filha? (ela dizia filha), de uma cafeteira, avó, então compra à tua vontade e depois dizes quanto foi. Comprei a cafeteira. Escolhi um modelo branco, já disse de filtro. Uso-a ainda hoje todos os dias ou praticamente e todos os dias ou praticamente preparo o café pensando na minha avó. Ao escrever isto vêm lágrimas à minha garganta como se não houvesse razões mais atuais para chorar. Mas hoje o caso é outro.

Recentemente procedi a uma mudança de provedor de serviços de internet e claro que a palavra passe de acesso à grande teia do mundo (já alguém traduziu isto direitinho?) que estava há anos na primeira folha do bloco notas colado no frigorífico, para quem precisasse, ficou obsoleta. E então foi arrancada, e raac, e lixo dos papéis. Esta sequência de eventos tão simples fez emergir a segunda folha do bloco que, sem querer, foi dada à luz da cozinha, passou para a frente de mansinho, tanto que ninguém a viu. 

Enquanto o café corre, esta manhã de sábado, aquele cheirinho tão bom, as miúdas ainda a dormir e a minha avó no pensamento, compra à tua vontade, filha, e depois dizes quanto foi, ainda lhe oiço a voz, pousei ao acaso os olhos na segunda folha do bloco, agora primeira, e finalmente vi-a. Nela, um recado para mim. Um recado que veio em julho pelo punho de um amigo da minha filha Saminhas, que é a mais nova (ó mãe, porque é que me deste um nome se me chamas Saminhas?), o amigo cá ficou hospedado uma noite por razões inesperadas da vida dele (inesperadas mas não graves).

E eu, caramba, eu tenho um blogue. E um blogue é para estas coisas, não é? Eu vou mostrar o recado.



16/11/2016

"Sabes o que fizeste na Blogosfera?"



 De manhã, a primeira coisa que fazia era ler o post de José Saramago. Eu fui uma dessas pessoas.

excerto da entrevista de Pilar del Río a José Saramago, Revista Única, outubro 2008
(faz hoje 94 anos que José Saramago nasceu)

15/11/2016

O pequeno almoço grande numa alegria (mas tipo)

(Se alguém me pedisse para me definir numa frase, acho que me iria sair do tipo "sou uma entidade aprendente”. Portanto mastigar palha dá-me muito sono. Tenho precisado de ler uns manuais que têm uma grande quantidade de palha e eu ainda há pouco adormeci a páginas tantas, embuchada, que foi na página oito de um manual de cinquenta e uma, imensas. Acordei e entretanto já li até à trinta, mas muitos bocejos depois solto-me para aqui neste blogue que me faz um bem que deve ser mais do que eu penso e o postezinho que ficou esboçado ontem vai sair. Isto anda cá uma produção que nem parece minha. Entretanto, para quem ainda se aguentar, abaixo, onde se lê hoje deve ler-se ontem.)

Hoje o meu carro deu-me uma alegria. Conduzi-o até à oficina para o deixar lá a lubrificar as pecinhas, trocar o óleo, limpar tubinhos, afinar conjuntos, eliminar folgas, alinhar o rumo, dar um polimentozinho nos riscos que pessoas fizeram na minha ausência e eu não sei que pessoas são essas, só sei que foi com carros brancos que fizeram, agora há muitos, parece que os carros brancos é que são giros, pelo menos lá riscos nos outros carros fazem eles, e eu ia dizendo que o meu carro me deu a tal alegria hoje. Porque ficando sem ele tomei o serviço de transporte cortês da oficina e esse deixou-me à beira do rio, todo central, a uns passos de um pequeno almoço, caramba, um pequeno almoço que foi grande (é a alegria). Ainda se sentiam no ar, juro, as vibrações do crocante disruptivo (disruptivo agora usa-se muito, é tipo os carros brancos) psicadélico e estonteante Lisbon Web Summit (‘tamos uns vaidosos!), ao qual não tive o prazer de ir for reasons, ora ali viam-se esta manhã, sentados pela fresca na espécie de deck, o meu pequeno almoço e eu. E também as pombas, uma surpresa, mas de pé. Ou com os pés pendurados se em modo de voo, aqueles dedinhos encarnados fechados em pinça (as pombas não se sentam). Era eu em potencial produção de migalhas a estar ali um alvo e foi preciso defender o meu pequeno almoço, caramba, grande, a alegria que o carro me deu, foi por isso que cá viemos ao blogue, das pombas (defender das pombas). Até tirei uma fotografia toda indignada, para fazer prova tipo onde é que já se viu isto suas malucas, e naquele nano de segundo do disparo, houve que lançar o braço num golpe de rins muito bom para segurar o alimento no prato, que uma terceira pomba me atacava tipo pelo flanco direito e o resto da matilha captei, mal, mas captei. Ó.


(como se chama então um conjunto de pombas que querem roubar o pequeno almoço a pessoas num dia sem carro?)

13/11/2016

Mayday

Há bocado estava a pensar que tenho de pôr os pontos nos is aqui no blogue. Nos ii. Nos i’s. Não sei escrever o plural de i.

Para isso há que dizer então uma coisa que é esta. Tenho vindo sempre a ser uma chata. Desde os dezoito anos, pelo menos, sou uma chata. As minhas irmãs: tu és uma chata. Porque não vejo televisão. Porque não vou às compras e aos saldos. Porque estou sempre a querer impingir livros (agora é aos meus sobrinhos enquanto estão frescos). Porque não tenho um facebook para encontrar pessoas e ver receitas nem tenho bimby. Mas não ter bimby ainda é pior. Porque nunca faço festas de anos com pratos de plástico de deitar fora por causa do ambiente, mas eu também detesto comer ou beber em coisas de plástico. Porque não levo as minhas filhas ao McDonald’s nem lhes dei bolicaos nem bolachas oreos nem chocapics (acho que elas comeram em casa das tias sem eu saber) e os iogurtes cá em casa são brancos, coitadinhas, e não trazem açúcar. Entretanto soube há dias que o McDonald’s agora tem sopas muito boas e saladas!!! (uma esperança)

E chega. Que o alívio vem já já depois dos pontos nos… bem, depois da confissão. É que a minha vida está a mudar e em breve serei uma ex-chata (irmãs!!). Descobri um programa que gosto de ver na televisão! É que comecei verdadeiramente a ver televisão! (Mãeeee!!!! Estás a ver televisão???!!!) Acho que é uma série. Chama-se “Mayday” e é sobre desastres de avião. O que eu gosto na série não é o desastre, sou chata mas não sou louca. O que eu gosto na série, se aquilo for mesmo uma série, é a investigação das causas. Andar com os factos para trás até encontrar a falha. Ou as falhas. É que podem aprender-se ali razões para outros desastres que não aqueles. É uma escola, é a reengenharia, é as alterações ao projeto, é… e vou já já calar-me. Só falta isto: próximo passo, fazer um facebook (que a bimby, desculpem lá, é muito cara). Ou então ir ao McDonald’s comer uma sopa. Boa ideia. Vou comer a sopa.

12/11/2016

O mundo está esquisito

Vou à rua e encontro o rapaz que passeia os cães, sem cães. Vens sozinho?, venho, estás bom?, cansado. O rapaz que passeia os cães diz-me sempre que está cansado e eu compreendo o cansaço dele, sei-lhe a história que as cicatrizes no rosto contam, mal, constato-lhe o esforço para se encaixar num mundo que, curiosamente, tem sido muito cão para ele.
- Hoje já foram oito – orgulhoso do seu ofício, tem a sorte de trazer no coração tamanha paixão pelos bichos, muito lhe brilham os olhos. Porém estão os meus hoje baços e não me disponho a ouvir as oito histórias que hão de querer sair, por isso cortei - Bom fim de semana, Renato, gostei de te ver, eu também gostei de a ver. As histórias ficam para outro dia, prometi-lhe sem lho dizer.
Não sei onde ponho esta tristeza. O mundo está esquisito. As pessoas desaparecem, as boas, e as más tornam-se maiores. Liguei à minha amiga Marina, já não podia esperar mais.
- Tenho pensado em ti, desde ontem. – isto digo eu.
- Então porquê? Não me digas que é por causa do Leonard Cohen.
- Sim, é.
- Não imaginas a quantidade de pessoas que me ligam ou mandam mensagens…
- É como se ele fosse teu, Marina. Eu não me lembro de te ter conhecido outra música… o Leonard Cohen era teu…
- Ah… sim, era. Como diz o João Miguel Tavares, ficamos nesta ligação íntima com os músicos, eles fazem mesmo parte de nós… é exatamente assim que eu sinto... Leste?
Li. Aliás li uma data de coisas. Para ver se o mundo deixava de estar esquisito (e não deixou).
- Mas olha, não fiquei triste.  – continua a Marina - Quando saiu o álbum dele, há um mês, eu pensei: ele está a fazer o que o Bowie fez, está a despedir-se. E então decidi não o comprar. Talvez para adiar o inevitável... Assim que ontem ouvi a notícia, pensei que já podia comprar o álbum… Foi como se ele me tivesse avisado que se ia embora, tivesse falado para mim, para me preparar… e então, olha, não fiquei triste… percebes?...
Percebo. Eu também achava que aquela canção, Suzanne, era para mim. Mas isto não disse eu à Marina.

(e não era, que eu ainda estou triste)


(comecei o post no rapaz dos cães para fugir ao assunto mas o assunto veio ter comigo, paciência)

09/11/2016

O triunfo do porco

Eu já andava desconfiada disto. O que agora está na moda é o ódio. O ódio no geral. Dividir, desunir, desrespeitar, rebaixar. 

O ódio ganhou.

E agora? Será que um imbecil que julga ser o seu umbigo o centro do mundo sabe o que realmente tem nas mãos?

06/11/2016

Tapetes de ouriços

As casas desta aldeia serrana, beirã, estão todas vazias menos esta de onde escrevo. Havia uma vizinha checa, ali em cima, uma vizinha de Brno. Não sei o nome dela, vamos imaginar Sardska se faz favor. Sardska apareceu aqui na rua no dia de fevereiro em que nevou toda a manhã, e eu bom dia para ela. Vinha sem dentes Sardska, trazia uns três ou quatro, talvez, e vestia roupas muito velhas; a solidão, quando perdura, faz isto às pessoas, desarranja-as. Sorriu-me e respondeu-me em inglês. Há quinze anos não via nevar neste sítio. Com ela vinha um cão dando saltos estranhos, olhei-o. Ela: que ele nunca tinha visto neve e estava doido de alegria o cão. No verão soube que Sardska foi para uma clínica, para ter mais companhia. Também havia um vizinho britânico, aqui em frente. Costumava ir pescar ao rio levando uma caixa com larvas brancas que se contorciam – ele abriu a caixa para eu ver as larvas -  são de mosca, diz-me. As larvas parecem enormes para serem de mosca. Os peixes adoram isto, justifica-se (talvez eu tenha torcido o nariz às larvas sem querer), é o isco. John, vamos supor que se chama John, voltou no princípio do verão para o reino unido dele, depois de mais de duas décadas cá. Encontrei trabalho lá, explicou, e aqui só em Sintra, mas Sintra é muito longe. As casas estão, agora, todas vazias. John deixou ficar o carro, talvez pense voltar. Olho o carro de vez em quando. Penso que assim estou a tomar conta dele, um bocadinho: ser boa vizinha. Ou então para o carro não morrer aqui, também ele, como as casas, arruinado. A capota é de lona e já tem um rasgo, alguém o fez com uma faca, o vento não foi.

Mas nem tudo é triste. Há muitas castanhas no chão, fazem grandes tapetes de ouriços. Há muitos figos nas figueiras (ainda) que se podem colher. Há uvas nas videiras querendo talvez ser pisadas, subir a vinho, há tangerinas, há marmelos. Há esta vontade minha de escrever isto. Como se fosse para fazer viver a pequena aldeia que parece não querer morrer. De linda que é.

31/10/2016

Um post não é

De manhã, estendi duas máquinas de roupa ao sol. Estender roupa faz-me sentir renovada. Eu não tenho secador de roupa porque a quero estender. E apalpar a ver que já secou e apanhá-la, cheirá-la, dobrá-la, fazer a pilha do ferro. Enquanto isso vou deitando os olhos à rua, penso que a disposição dos carros das pessoas e dos cães (e do papagaio) e também dos pombos, se ficassem quietos, é única e talvez nunca se repita ou esteja a repetir, e depois vou a escorregar para o infinito do tempo mas então vejo o rio e eu tenho quase a certeza que amo o rio. Ou seja, roço os cotovelos pela poesia da cidade enquanto trato da roupa. Sabemos que a poesia da cidade é acinzentada e esburacada do sujo dos pombos, mas para quem tiver olho e vagar à janela, acho que dá. Eu não sou muito de poesias porque tenho a cabeça dura. De vez em quando leio quatro vezes o mesmo poema e fico na mesma. Só muito poucochinhos poemas é que entram na minha cabeça dura não sei porquê (e aí é m u i t o bom, esses poemas que me cabem estão vivos e têm uma espécie de alma - mas também é esquisito). Os outros é como se estivesse a ler chinês. Paciência. Há outras situações. Há por exemplo o meu aspirador. Se bem que hoje optei por varrer a cozinha porque não tive vontade nenhuma de barulho. O meu aspirador, atenção, é silence, diz na caixa; comprei-o assim de propósito, quero o mais silencioso que houver, e havia este. E diz também no lombo dele, silence. Mas a vassoura, ainda assim, é mais. E não diz silence nela, devia dizer. A pilha do ferro que já estava de outra roupa, não a de hoje, tratei dela quase toda. O ferro não diz nada. Também podia dizer silence. Mas para não imitar o aspirador se não quisesse, trazia uma poesia na lateral. E a gente ao menos tentava enquanto o fazia deslizar pelos lençóis e calças e camisas. Acho que não custava nada.


O dia teve vinte e cinco horas mas não sobrou nenhuma para escrever um post. 

28/10/2016

Ouvi na televisão uma receita de lombo de porco assado (e resolvi imitar em parte)

Pensei em mingau, vou fazer mingau. Enquanto mingau me soa metálico, pego no nosso tacho e pouso-o no nosso fogão. Mingau acho lindo, podia ser nome de monumento, Ponte Mingau. Torre Mingau. Enquanto isso, deito o nosso leite no tacho e os flocos da nossa aveia deixo cair com suavidade no nosso leite. Aí, os flocos sumindo, vem o danado do porridge querendo reclamar do meu mingau em pensamento. E eu vou e espremo o sumo da nossa metade de um limão para dentro do nosso tacho, como dizia a receita; eu desconfio do limão fervido, cozido ou assado. Assado já me dei mal, mas este é fervido: junto o limão. Eu digo, eu sou o porridge. Ligo o botão no nosso nove do nosso fogão (só tem até ao nove), e dou início à espera (este é o meu problema na cozinha, a espera). Mas o porridge vem que não tem: Eu digo, darling, eu sou o muito porridge - the very porridge says. Aí, o calor começa a subir da nossa placa, e o leite com os nossos flocos e o sumo de limão borbulha levemente. Mexo com a nossa colher de pau e o nosso calor penetra no leite e do nosso leite passa para os flocos da nossa aveia (o sumo do nosso limão parece que sumiu - mas não), os flocos incham, o nosso borbulhar engrossa. Baixamos agora do nove para o nosso quatro e contamos cinco minutos. Enquanto isso, vamos mexendo o nosso porridge. Porridge? Eu sou o mingau, não lembra? Lindo! Metálico! Nome de monumento! Mingau!

Volvidos os cinco minutos (a espera terminada), desligamos o nosso fogão e a nossa papa de aveia está pronta. Podemos servi-la numa taça, juntar-lhe a nossa banana partida aos bocados e uma colher do nosso mel. Nossa! Que delícia!


(o problema da espera na cozinha até pode ser meu, mas de resto é tudo nosso)

24/10/2016

Pêssegos espanhóis, bolas de ténis

Eram três batatas doces magrinhas. Compridas, tortas e magrinhas. Descasquei-as, mas não to-tal-men-te. Deixei casca nas pregas mais difíceis do torto; não tem problema, ficam gourmet. Isto do gourmet, devido a ser moda, dá para justificar imensas coisas, por exemplo o medo de tirar um lanho da mão com o descascador, que aquilo é um ótimo descascador, até me está a apetecer pôr aqui uma fotografia do descascador, mas o gourmet, tipo, era aqui que íamos, dá, não dá?

(as minhas filhas dizem tanto tipo isto e tipo aquilo, que já passou para mim o tipo, era por favor desculpar)

Voltamos às batatas doces. Com elas e com uma maçã portuguesa, sim!, havia uma! - é que me ir-ri-ta comprar fruta espanhola, estou farta de fruta espanhola, os pêssegos espanhóis devem ser bons para bolas de ténis que aquilo é impossível de engolir e…. hã? ah! sim: com as batatas doces magrinhas e com a maçã portuguesa! olá pessoal!, fiz o caril de frango. O ca-ril de fran-go. Só que sem o frango. Tipo que ficou no congelador (e continua lá, com aquele frio). Ou seja, isto foi para explicar completamente o gourmet, que é: Caril de Frango sem Frango com Batatas Doces Magrinhas e Maçã Portuguesa Difícil de Encontrar. Se o título for muito grande corta-se aos bocados, põe-se a cozer e...ok, ok, está bem. 

Eu tipo gosto muito de inventar na cozinha, para afastar qualquer monotoniazinha que queira vir meter-se ali, invento, invento e depois é bom. Normalmente é bom.


E estamos quase a acabar, mas ainda me falta uma parte que não é ver programas de culinária na televisão nem nada, é: com-pre-en-der por que raio não há fruta nacional qua-se ne-nhu-ma no supermercado. Tipo alguém sabe?

23/10/2016

Isto dos blogues é nada?

Toda a gente sabe que isto dos blogues é nada. Quer dizer, alguma coisa isto é, mas vá, é pouco. É apenas um poucochinho para preencher os bocejos da vida, as incompletudes da corrente real à qual estamos amarrados desde a nascença, toda a gente sabe isso. Levar os blogues a sério, por exemplo, nunca. Fica mal, esquisito, não sabemos onde meter as mãos mesmo antes de iniciarmos a apresentação para a audiência que nos olha expectante, e agora digo o quê?

Digo que eu gosto dos blogues. É verdade, é. E até gosto muito dos blogues.

Por isso é que fiquei tão contente ao ver este de novo. E lê-lo, de novo. É que, na realidade, alguns fazem mesmo parte da nossa vida. Da minha, pronto.

A anona

Encontro-me perto das quinze horas com a minha anona. Eu sei que a anona é minha, todos sabemos, que nesta casa mais ninguém quer anonas. Encontro-me perto das quinze horas com a minha anona. Dentro do cesto, junto dos abacates e das laranjas, estas e aqueles firmes e de boas cores, uns verdes as outras fazendo jus ao nome, a minha anona agoniza. Em silêncio, deixa-se ir nas mãos da mãe natureza, essas que sendo invisíveis veiculam a entropia global, lentamente, mal se notando a entropia global. A minha anona vestiu já o castanho, toda ela de igual, é o seu finado. Por exemplo, o padrão que trazia na pele é perdido. Então, à minha anona acolho-a nas mãos, nas minhas inúteis mãos, descapazes de a salvar. Comi-a, pois foi. Uma metade de cada vez, à colher. Os caroços, tão bem dispostos pelo néctar esbranquiçado, ai brilhantes, ai tantos, ai pretos, deixei-os no prato que assistiu a tudo. Não me é costume falar de anonas. Todavia esta, degustada assim no limiar do possível, a caminho de um estado de desperdício, um precipício, um sacrifício, no seu último suspiro traz-me aqui. Onde me encontro perto das quinze horas, vertendo neste escrever o mais pequeno post de todos. Até que enfim.

(descapazes não existia)

18/10/2016

Um medozinho novo

A sala de embarque já estava cheia e o avião vazio, pronto para nos levar de volta a Lisboa. Bom, a mim de volta, a outros de ida.
- Lissabon. Eles dizem Lizzboua. – isto um rapaz atrás de mim na lenta fila de embarque, parecia feliz por ter Lisboa como destino e tentava pronunciar. Lizzboua. Em vez de Lisboa. Tudo bem, eu não disse nada, não me virei para trás e não meti conversa, não corrigi, tenho a mania de falar com as pessoas, é que eu gosto de pessoas. Eram três, vi pelo canto do olho: um rapaz e duas raparigas na idade para meus filhos, vá. Mas deixei-os em paz. Queriam também provar umas comidinhas em, com licença, Lizzboua, mas o meu holandês não chegou para identificar que comidinhas eram aquelas. Hélas.
O facto de eu gostar também, além de pessoas, de aeroportos e especialmente de aviões, acho-os estupidamente lindos, aos aviões, leva-me a isto: escrever a contar cenas sem interesse nenhum. Mas desta vez, no lugar de me reter e ficar quietinha a olhar para a parede, ir dormir mais cedo ou deitar mão a um livro, estou aqui mesmo. É que deu-me um medo novo de andar de avião: deu-me o medo de ir no avião com um telefone esperto daqueles que se põem a arder sem mais nem menos, pobres das pessoas que os compraram. E vi, chegámos finalmente ao ponto, vi na porta de embarque uma fotografia do telefone esperto em causa, com uma cruz vermelha em cima dele, do tipo, estes não entram no avião. Portanto ou a pessoa que teve o azar de comprar um daqueles deixa para ali o telefone abandonado num lugar que não se sabe qual é, ou a pessoa não abandona o telefone e não embarca e fica retida num país que não é o que lhe convém naquele momento e isso torna-se aborrecido. Ninguém revistou ninguém. Eu dá-me medo isto porque sei perfeitamente que os incêndios se propagam depressa nos aviões. Se o gigante coreano não se meteu a fazer os testes que devia ter feito àquilo e por conseguinte ter rejeitado o telefonezinho logo ali e deixado o da concorrência entretanto vingar no mercado, paciência, é a vida, as pessoas é que estão a sofrer e bolas, isso está mal. Isto já nem falando do próprio gigante coreano que, por causa das pressas de fazer a concorrência, imagino o stress do pessoal de trabalho lá do sítio, está como está. Eu não sei se o mundo anda maluco, mas é capaz.
Porém não ficamos por aqui. Já dentro do Boeing 737, diz o chefe de cabina para a gente assim: ladies and gentlemen, estava ali na porta de embarque um aviso para os telefones que se incendeiam voluntariamente ficarem lá fora, mas se por acaso alguém não reparou (que engraçado) e se há um telefone desses aqui connosco em bordo, é favor de o desligar, manter desligado todo o voo e nunca pô-lo a carregar, tipo safety reasons, ok?
Com isto lá me esqueci do meu medozinho e entretanto já cá estou.


(Em tendo um telefone desses, eu se calhar virava-o ao contrário, antes de ele esturricar, lia o número de quatro dígitos que vem ao lado das letras CE, ia consultar a base de dados NANDO na internet e via quem foi que aprovou aquela coisinha para a colocar no mercado europeu. Por curiosidade. Pelo menos. Mas talvez contactasse a entidade notificada e fizesse umas perguntazinhas ou outras.)

12/10/2016

Marta Crawford

Ainda faltam trinta minutos para o comboio, mas o dia vai longo e a noite caiu já toda aqui. No terminal multibanco que está dentro do edifício, subtraio alguns euros à minha conta bancária e guardo-os na carteira; são euros de Famalicão que se juntam aos que já vieram de Lisboa e estavam poucos. Do outro lado há uma banca de jornais e revistas, mas não era isto que eu queria. Continuo a varrer o espaço escuro com os olhos e encontro um balcão misto. De jornais também, de revistas, de raspadinhas, muitas tiras de raspadinhas, de uma máquina de café, não sei se aqui é café ou cimbalino, e alguns objetos indefinidos que, em aproximando-me, quiçá me satisfarão o intento, comer.
- Boa noite, tem sandes?
- Menina… - e a senhora do outro lado do balcão junta as mãos à frente do peito – tenho tudo para sandes... menos o pão.
- Então... pode ser uma meia de leite, se faz favor.
- Direta ou normal?
- Normal. – aqui é capaz de dizer-se cimbalino, porque eu não sei o que é uma meia de leite direta.

Mas sei que isto é um blogue e num blogue a gente deve escrever poucochinho, praticamente quase nada para não enfadar, mas eu quero muito contar isto porque isto vai acabar tão lindamente bem. Atalhando, falámos de raspadinhas e do vício que pode daí advir enquanto eu bebo a meia de leite normal. Ela conta-me de uma escritora sua amiga que ainda hoje cá veio e fez aqui uma de dez euros, menina, mas não saiu nada, quem é a escritora?, ai o nome não me lembro, mas ela escreve muito bem, escreve muitos livros de poesia e não só, mas quem? quem?, ela não se lembra do nome e compensa-me, diz-me que gosta de Mia Couto, é muito bom o Mia Couto, e estende-me o livro que acabou de ler de Mia Couto. Eu aponto-lhe o da capa do jornal que nos ouve a conversa mesmo aqui debaixo dos nossos narizes, Mário de Carvalho, já leu? Não leu, mas conhece, então leia, é muito divertido, e Saramago? (isto ainda eu), ahhh Saramago é muito bom, estou a ler a Jangada de Pedra, menina, enquanto me aponta o livro deitado ao lado da máquina do cimbalino (está decidido, é cimbalino), tive muita pena quando ele morreu, eu fui lá, menina, e vi a tristeza no rosto da mulher dele, aquilo é que era um amor!... Ainda tenho metade da meia de leite normal, tempo para o comboio e vontade de continuar esta conversa; sabe como foi que eles se conheceram? Ela não sabe. Então eu vou contar, ela vai ouvir e a meia de leite acabar. Que lindo, menina, aquilo era mesmo um grande amor!...
- Agora tenho de ir, o comboio está quase aí. Gostei de a conhecer, até à próxima, se eu cá voltar!
- Adeus, menina, boa viagem. E olhe… sabe quem a menina me faz lembrar, assim, de olhar para si e ouvi-la falar?
- Quem?
- Aquela sexóloga, a Marta Crawford. É parecida.


Marta Crawford… nada mau. Já dentro do comboio, faço o check in para o voo de amanhã, escolho bacalhau com broa para jantar (comida de comboio é melhor que comida de avião, confirmo), ligo às miúdas e depois dou um saltinho à internet embalada pelo pendular do alfa, para ver a Marta Crawford melhor. Não sou assim parecida parecida, mas sou exatamente da mesma idade que ela. Mais mês menos mês.

07/10/2016

Unidos. Estados Unidos da América.

Vejo pela televisão que num lugar chamado Flórida, em princípio pertencente a um país denominado Estados Unidos da América, Unidos, está a passar um furacão devastador que vai espalhando destruição em massa e já começou a matar pessoas.

A uma distância de alguns minutos oiço no mesmo meio de comunicação social um dos candidatos à presidência do país acima referido, Unidos, pedir aos eleitores que, se estiverem às portas da morte, se lhes tiver sido diagnosticada uma doença terminal, deu até detalhes o candidato como se tivesse graça, se tiverem acabado de chegar do médico com um prognóstico de duas semanas de vida, por favor aguentem-se até ao dia das eleições e vão votar, Unidos, para obviamente votarem naquele candidato. Admiro-me então que não tenha pedido às pessoas da Flórida que se protejam do furacão para não morrerem e poderem também esses ir votar nele, mas talvez o candidato não saiba o que é a Flórida. Ou mesmo o que é um furacão.

E depois: (esta parte pode impressionar os mais sensíveis, como eu) a seguir à declaração do anormal, ouviram-se risos na sala, risos! 

Unidos. Estados Unidos da América.

Mas não há ninguém que lhe enfie um murro naquela tromba nojenta?

04/10/2016

Depois de um hiato

Há dias no jantar dos trinta anos do curso maior que já fiz, sentámo-nos quase todos, em modo comovido, aquilo foi tremendo porque muitos de nós chegaram ali depois de um hiato de vinte e cinco anos sem avistar os demais e isso bolas, é muito, e sentámo-nos, dizia, em redor de um único centro, depois do jantar, cadeiras dispostas como (alguém lembrou) nos alcoólicos anónimos, e até fizemos duas investigações, uma, quantos de nós estão no facebook, duas, quantos de nós têm uma ou mais tatuagens. É preciso notar que a recolha de participantes para o grande evento foi feita sem recurso a redes sociais, o que é evidentemente notável (por isso estamos a notar). Tatuagens foi nenhuma, ninguém - demos garantias, para a estatística. Facebook pouco, dizem uns, nada, outros. Uma boa parte de nós ficou na universidade, ora investigando, ora ensinando.

Mas velhos não estamos. A Isabel recorda-se de tudo em detalhe “lembram-se daquela vez?, não, conta”, o Zé continua caladinho e magrinho, o Jonas parece o cientista que na verdade é, a Ana tem três filhos mas a Ana parece ela nossa filha, a Elisa fez não sei quantos brindes, o Filipe discursou, o Mário estava radiante, adora juntar pessoas, eu tive de dizer como vão as minhas irmãs, a Manuela julgava que o Pedro e a Paula tinham mesmo casado, casaram, mas não um com o outro, o Fernando ficou a trabalhar no mesmo sítio que o João, o Carlos continua a parecer um miúdo reguila, portanto velho só podemos dizer do carro do Rui, que foi para aqui chamado, era o Tobias e era este.

02/10/2016

Uma meditaçãozinha

Apetece-me imenso viver até aos cem anos ou mais. Por isso nunca fumei nem nunca usei drogas, nem passo o limite de velocidade quando estou ao volante, nem me embebedo (tirando uma vez num jantar de família sem querer, coitadinha da minha mãe), nem nunca passei uma noite inteira sem dormir, nem vou comer a comida rápida com maldades para a saúde, nem guardo rancores de pessoas que me fizeram mal, em suma, quase a receita do pãozinho sem sal, não o sendo.

Portanto que mais há? Há que ontem experimentei fazer oito minutos de meditação. Marquei-os no meu telefone inteligente, para me acordar esganiçadamente ao cabo desse tempo, não fosse eu encontrar-me dentro de mim e ficar por lá esquecida a entreter-me com qualquer coisa. Mas oito minutos a ouvir-me respirar é um desafio de alto lá com ele, de modo que ao fim de uns segundos pus-me a calcular a velocidade a que corre o sangue nas veias, entre duas batidas cardíacas e considerando o meu tamanho, ei!, respiração, concentra-te, respiração. Levava para esta viagenzinha de seiscentos e quarenta segundos uma na manga: se ouvir a própria respiração for pouco, pensar na palavra água, que é uma palavra que limpa por dentro e por fora. Mas o papagaio que é meu vizinho durante o dia, por falar em fora, não se calou todos aqueles segundos e as obras na rua, esta rua está sempre em obras, também não, a bomba de água do prédio não falhou o arranque que tornou a fazer-se ouvir e a porta da rua bateu. Água não bastou, portanto, houve que invocar um rio aos meus pés, depois entrar nele, nadar, deixar-me levar na corrente, não sei se isto é meditar ou se é adormecer, dei um salto na cadeira quando o meu telefone, que é mais esperto do que eu (quem abanou a cabeça e fez tss tss ali em cima?), me veio buscar ao fim de quatrocentos e oitenta segundos, que os minutos oitenta segundos não, pois não?

(mas hei de tornar, ah pois hei de!)

01/10/2016

Um saltinho lá atrás (e um outubro feliz)

A minha filha mais velha, aos três anos de idade, tinha um certo fascínio pela palavra microondas. Dizia microondas e repetia microondas. Mas também dizia mais coisas, Muzi falava quase permanentemente, polvilhando o seu discurso de vez em quando com microondas, microondas. Não é, mãe? é, filha. O gravador com microfone que lhe ofereci pelo natal, por exemplo, para que ela se pudesse gravar e depois ouvir no seu palrar contínuo, fez sucesso especialmente porque o microfone viveu por um tempo apelidado de microondas, não é mãe? não filha, microfone. Mas microondas é que era.

Também falava muito para a irmã mais nova que, no dia em que isto se passou, tinha quase dez meses de idade e já dizia a primeira palavra, "lhalhá". Vínhamos da escola, elas no banco de trás do carro, o trajeto preenchido como habitualmente pela conversa da mais velha. Nesse dia (ainda me faltava contar isto no blogue) decidiu Muzi dedicar-se a aprimorar o "lhalhá" de Saminhas, quem sabe para ter mais com quem conversar rapidamente.

- Diz lá, Saminhas, oooolá!
- Lhalhá.
- Não. Não é lhalhá, é oooolá!
- Lhalhá.
- Oooolááá!!!!
- Alhá!
- Boaaaaa!!! Muito bem!!! Saminhas... - chega-se mais à irmã e, pausadamente, avançando no nível de dificuldade dos ensinamentos aplicados - diz lá: mi-cro-ondas!

(passou-se isto em outubro do ano dois mil; hoje são ambas muito conversadoras, não sei qual é mais)

26/09/2016

Muitos porcos, nós?

Faço a viagem de comboio com o meu telefone a apitar avisos de wi-fi’s disponíveis e os meus olhos nas árvores que passam velozes fora da janela. Os apitos não me causam cuidados, que a carruagem onde sigo não é a do silêncio. Não sei se em todos todos, mas pelo menos nos comboios mais, digamos, a sério, há uma carruagem que é a do silêncio. Nessa, quem está não pode fazer barulho nem deve deixar que telefones produzam apitos. É a carruagem para quem quer trabalhar, ler ou pensar, assuntos do foro do silêncio, daí o nome. Isto na Holanda. As árvores que correm lá fora parecem estar à distância de um braço bem esticado e lembro-me – lembrar-me-ei por quanto tempo? – da menininha que um dia viajou à minha frente num comboio destes, há anos, numa carruagem que não a do silêncio, e de pé no assento, virada para a janela, gritava alto e bom som para as árvores bomen! bomen! (árvores! árvores!) Adora árvores, disse a mãe, ao ver-me sorrir para a garota. Entretanto, em processamento paralelo, vou escrevendo este post mentalmente enquanto não chego à minha estação e escrevo assim:

Mathilda ia de boleia connosco. No local combinado, a meio caminho do nosso destino, entrou no carro. Fomos apresentadas. Disse-lhe que mora num lugar bonito.
- Moras num lugar bonito.
- Eu não moro aqui, é mais para aquele lado, a vinte minutos daqui, numa quinta.
- Numa quinta?! – eu gosto de quintas (também gosto de sextas e de sábados e gosto de fazer gracinhas).
- Sim, o meu marido é agricultor.
Ou seja, temos tema para preencher o trajeto. Puxei pela cabeça para ir buscar vacas, a palavra vacas em holandês. Apliquei a regra do plural de ovo para obter ovos e julguei obter vacas. Depois continuei no meu holandês todo pobrezinho:
- E têm lá vacaras na quinta? – digamos que vacas me saiu tipo vacaras com a tal regra que não é deste filme, mas ela percebeu. Sorriu e facilitou-me a vida:
- No, not cows, pigs. We have pigs.
- Porcos?! Mas quantos? – preferia vacas, mas se ela me disser que tem vinte ou trinta porcos já me vai impressionar.
- Trezentos e cinquenta, mais ou menos.
Impressionou-me. Até me virei toda para trás (ela no banco de trás, eu no da frente), trezentos e cinquenta?! Imensos!
- E são muitos, mesmo, agora o mercado está difícil para os escoar, desde que a Rússia embargou certas relações comerciais com a Europa, os países da Europa de Leste, que forneciam porcos para a Rússia, voltaram-se para o nosso principal mercado, a Alemanha. E temos de baixar muito os preços, para sobreviver. Se der para sobreviver.
- Então e na Holanda, não vendem os porcos? – isto eu.
- Vendemos, mas o mercado holandês é muito pequeno, as pessoas comem poucos porcos. Na Alemanha é que se come muito porco.
Ora isto interessa-me. Nem que seja porque posso atestar que os holandeses não só comem poucos porcos, como comem pouco em geral. Uma refeição quente por dia chega e nada de sopas (ou há sopa ou há o resto) nem sobremesas, a menos que o rei faça anos ou isso.

Mas as árvores lá fora abrandaram, o comboio chegou ao meu destino e eu apeei-me antes de ter acrescentado ao post que pensei sugerir a Mathilda o mercado português. Comemos ou não comemos muitos porcos, nós?

19/09/2016

Está na hora de posts fofinhos, de preferência duplamente fofinhos

Hoje fui ao ginásio fazer ginástica e noto, continuo a notar, que aquilo de manter as pernas esticadas no ar e na horizontal durante oito tempos e depois só mais oito e assim sempre em múltiplos de oito, aquilo não me dá jeito nenhum, mesmo estando deitada a olhar para o teto a contar os oitos como se fossem poucos com as mãos debaixo de mim própria e a morder os lábios para ajudar (nada). Depois a caminhar para casa sinto as pernas a tremer como se estivessem feitas num oito, mas estão é feitas em muitos, ai que piada, só que depois foi mesmo giro (atenção que este é um post fofinho) ao entrar na área em que se passeia muito os cães, área que também é um atalho para quem vem do ginásio, olho para o chão iluminado pelo candeeiro de rua preparando-me para contornar eventuais presentes caninos, nenhum, muito bem, e então esqueço-me das pernas por causa disto, que é agora que aparece o fofinho do post: vem, do outro lado, como se para o ginásio se dirigisse, um canito pequeno, todo despenteado, quem sabe acabado de sair de uma esfrega no banho, canito que me fez lembrar a Cutxi, (toda a gente sabe quem é a Cutxi, não carece de link), o cãozito a correr desalmado, todo cheio de pressa, entrando na mesma área que eu mas em sentido contrário e eu olá canito, e ele nada, despenteado o canito está mesmo giro, cruzámo-nos, ele continua a correr a correr e eu quase retomo o sentir daqueles oitos mas nisto vem outro da mesma proveniência, também como se para o ginásio fosse, muita pressa, e também a lembrar o mesmo cãozinho acima referido que toda a gente conhece de o ver metido dentro do frigorífico a fazer companhia aos iogurtes, desta nunca me esquecerei, coitadinho, coitadinha, aliás, que a Cutxi é uma canita, mas este segundo também vem esbaforido, aquilo houve ali coisa, este apresenta uma tonalidade mais escura no lombo, no lombito, vá, que isto se faz favor é mínimo o canito, este vem menos despenteado que o primeiro e eu, olá outro canito, e ele também nada, ok, e de seguida entra a dona na área, todos no mesmo terreno de passear cães e atalho para o ginásio, é um terreno dois em um, a dona a chamar os dois, canito! canito! não sei quê não sei quê (mas não era Cutxi), nenhum era Cutxi. E eu disse à dona assim: isto é uma coleção! E era mesmo, que ela riu-se com as trelas na mão.

Este parágrafo podia dar um poema, mas dar não deu, ficou só um parágrafo fofinho. Duplamente fofinho.

17/09/2016

Do router nada nem com menu de escolha

Marcámos encontro para hoje, para hora incerta desde que durante a tarde, o novo router e eu. Sabendo já de muitos anos a virar frangos destes, que routers novos e afins vindos de provedores de serviços em massa nem sempre comparecem aos encontros, especialmente se o encontro me obrigar a percorrer duzentos quilómetros para cima e depois os mesmos duzentos para baixo, pelo sim pelo não, antes de a tarde do encontro marcado se extinguir, e porque do router nada, telefonei para um número daqueles. Daqueles que nos devolvem um menu de escolha, se é serviço de televisão prima um, se é de telefone prima dois e por aí fora fui premindo até me quedar de música ao ouvido, o David Bowie e tempo de espera aproximado dois minutos, mas foram dez, e ele a cantar a mesma coisa tantas vezes, logo o David Bowie que eu, caramba, o David Bowie não. 

- Registamos a sua insistência, minha senhora, talvez tenha havido algum atraso.

Agora não sei se o meu problema é ser demasiado agradável com as pessoas dos call centres, talvez me não levem a sério, sabe-se lá; que já vi lugares em que quem mais grita e mais maltrata, mais respeitado é, isso já vi. Mas como sei por observação de quem teve de agarrar um call centre porque nada mais houve para agarrar, quem teve humilhações e lágrimas e soluços e desespero e sofrimento ali à minha frente, nos meus braços, eu sei, que quem trabalha num call centre tem uma alta probabilidade de ser profundamente infeliz, sou eu agradável por opção.

Ou seja, o novo router não sabe o que perdeu.

Mas eu mostro:


 É que lá fora do lugar de instalação do serviço que continua sem router, tivemos isto.

14/09/2016

O post que acaba como começa

Pus um produto específico no meu cabelo com uma finalidade e obtive duas. A outra foi ter ficado com o cabelo quase liso. A minha filha - mãe o que fizeste ao cabelo? está liso! Isto é uma coisa.
Outra coisa é eu ter sido feliz durante três minutos, há dois dias, quando dentro do carro ouvi uma canção que ai caramba!, até subi o volume e foi muito, ia pela segunda circular com o sol nos olhos e as garotas, mãe… isso é do Enrique Iglesias, tu gostas do Enrique Iglesias? – elas todas admiradas – até posso dizer que fomos felizes as três ali aqueles minutos, eta mujeres! si te quedas o te vas, as saudades de bailar hasta las diez, cariño! Portanto gosto da canção do Enrique Iglesias e não é pouco.
E finalmente atravessei a rua como deve ser e fui visitar o papagaio do quiosque das flores. Chama-se Pigas e tem sete anos de idade. É praticamente verde com uns fiapos amarelos no toutiço e uma pena azul a espreitar do fim da asa. Já sabemos a história que conta todos os dias e que não se percebe nada daquela história. Estava caladinho (juro), concentrado a comer sementes do calibre das do girassol e, apesar de deitar para o chão as cascas todas, não tive coragem de lhe arrancar uma pena e trazê-la para o blogue, coitadinho. Não me disse nadinha o papagaio enquanto lá estive a observá-lo com amor (acho que isto é amor) e a tentar junto da florista saber coisas e assim (quero convidá-lo).

E agora estava debatendo-me toda para aqui com uma vontade de me estender na cama com o meu cabelo quase liso e o meu novo livro, mesmo sem muita pena do papagaio, sem bailar hasta las diez, mas ainda faltam umas horas de trabalho para hoje, de modo que me pus a escrever. Mas não pode é ser mais.

(pensei pôr aqui o link para a canção referida, mas não pus)

13/09/2016

Temos internet mas não temos pionés

No orificiozinho do router espetei: a parte de trás do meu brinco, um pionés amarelo que termina em pico, o pé de um fósforo (mas não entrou) e o bico de um lápis de cor cor de rosa, em que cor aparece duas vezes, mas as palavras volta e meia andam a brincar. Eu não ando a brincar. Ando com o hotspot no telemóvel, coitadinho, que fica exaurido num instante e precisa de se ligar à tomada amiúde para servir de wifi ao computador e o meu trabalho continuar a fluir. Trata-se de coisa séria entre eles dispositivos, isto quando o design da montanha deixa a cobertura cá chegar ao hotspot, que é às vezes e já voltamos ao router. Nada funcionou, nem os cinco telefonemas com o provedor de serviços nem os espetanços acima expostos no orificiozinho com a boa intenção do reset de fábrica instruído ao telefone, o observar das luzinhas, se apagaram, se acenderam e de que cor são? Mau: o router está que não faz de router anymore.

E já que é impossível escrever este post cem por cento português - temos post, temos router, temos hotspot, temos wifi, temos reset, temos design e temos pionés - pus-lhe ali também o anymore e acabou-se.


(post desatualizado, escrito no fim de semana e na ausência de acesso franco à internet – temos internet – e também na dúvida relativamente ao pionés – mas não temos pionés)

10/09/2016

Com muito mais encanto (na hora da despedida)

Caso um dia me aconteça ter um estabelecimento de restauração com menu, por exemplo, salada com grãos mas não sabemos quantos e ovo cozido, tomate vermelho do verão perdido na salada grega onde se encontra com o feta, sopa de beterraba desfeita em lágrimas de azeite pouco ácido e uma doçura de batata, empadinho de legumes salteados que de empadão ninguém gosta, redução de mil folhas aprovadas e assinadas pelo cozinheiro a uma deliciosa resma, pasta de abacate ao garfo com gotas de limão frio e por aí fora antes que nos dê o sono, portanto caso um dia me calhe gerir um estabelecimento tipo restaurante, dizia, vou tratar de fazer duas coisinhas. Uma das coisinhas é elaborar um menu apetitoso e completamente irresistível - já se leu a entrada - a outra coisinha é pior. Pior na medida em que um, a ideia me nasceu há pouco num restaurante de Coimbra e portanto não está amadurecida e dois, é de uma irritação reduzida a medo que me ela nasce. Mas inovadora, é uma ideiazinha inovadora. Suponhamos então que ainda vamos estar no tempo dos menus e que as pessoas largam os aparelhos inteligentes em cima da mesa para segurar nos menus enquanto degustam a leitura constante, ai que giro ai que giro, e discutem, e pensam, e optam.
Pois é aqui que está a nossa ideia: as pessoas a pegar nos menus sem medo. Sem medo de lhes fazer mais um vinco do tipo roupa velha, de lhes escangalhar os cantos já de si meio desfeitos, ou de lhes arrancar uma folha caduca, mas isso pronto, tudo bem, agora esta parte: sobretudo as pessoas a pegar nos menus sem medo de capturar colónias de bactérias imersas nas camadas de gordura e sujidade de várias cores que se pode colher em cada menuzinho dos restaurantes onde ninguém se lembrou de aplicar a inovação de lavaaaaaaar aquela porcaria (os menus). Ou então projetá-los no ar em holograma que se havia de poupar o ambiente livrando-o de bicharada atómica e até ficava tão giro isso, mas eu nem digo tanto. Digo lavar.

(e digo que me livrei de noventa por cento da dor nas costas num prazo de dez dias contra as cinco semanas prescritas pelos médicos como mínimo, mas temo estar hospedeira de uma boa coleção de bactérias obtidas num menu de Coimbra, menu este, de facto, com muito mais encanto na hora da despedida: um nojo)

31/08/2016

Ontem, hoje e amanhã (tipo um diário)

Já uso lentes de contacto há quê, trinta anos, quase trinta anos. E fiz uma coisa muito engraçada com elas, uma coisa que nunca tinha feito. Uma de cada vez, pus as duas lentes de contacto no mesmo olho e deixei o outro olho à míngua que é o mesmo que dizer à miopia. Ao pestanejar para acomodar as minhas lentes de contacto, como faço sempre desde há tanto tempo assim, vi logo que não via nada de jeito: uma mistura de vejo mal com vejo ainda pior. Perguntei mas qu'é isto agora? querem lá ver (que eu não consigo)?, e foi o arranhar do olho sobrecorrigido na pálpebra que me deu a resposta. Removi pois a lente encavalitada e devolvi-a ao olho de direito, o direito. Isto ontem.

E hoje? Hoje decidi experimentar a rua depois de estar em casa há uma semana sem parar e de ter bem distribuído as lentes de contacto à primeira, que é a esquerda, e à segunda, a direita. Devagar e em princípio sem coxear, saí de casa. A rua estava boa. Na calçada uma água cheirando a lava-tudo-floral revelou que tinha ali havido banho pela mão da porteira do prédio ao lado. Mas fui à padaria. Lá comprei o meu pão favorito e fatiado e bebi um café na continuação do balcão, onde deixa de ser padaria e passa a ser café, Ó Carla um café para esta senhora, já está pago!, diz a voz da padaria para os ouvidos do café, a senhora sou eu, digo à Carla ao aproximar-me com o pão já todo meu e obrigada, açúcar não é preciso, também lhe digo. Mas eu demoro imenso tempo a tomar um café para não me queimar. Portanto a Carla fez torradas e arranjou galões, serviu mais dois cafés e um sumo de laranja, preparou um pão de leite com queijo e sem manteiga, tudo assim até eu ficar pronta do café. Tornei então à rua para continuar a experimentá-la, mas ao atravessar a estrada fui interpelada pelo grasnarzinho familiar do papagaio do quiosque das flores, que informa o bairro todos os dias menos ao domingo da mesma situação: tjalp tjalp teren tjalp, e estive quase para ir lá embirrar com o papagaio, dobrar-lhe as penas, fazer-lhe olhos de má para lhe meter medo, no entanto sou muito boazinha e deixo-o estar no seu poleiro a coçar a barriga com o bico num momento raro de silêncio, optando por continuar a experimentar a rua que está tão boa.

Só falta amanhã, não é? Amanhã, sou pessoa para lá ir visitar o papagaio como quem não quer a coisa ao quiosque das flores e depois roubar-lhe uma pena verde, que ele das verdes tem muitas. A pena é para fazer de marcador dos livros exóticos que eu estiver a ler à janela ao som das variações do seu grasnarzinho que são nenhumas (outra pena).

(os papagaios não costumam grasnar, mas este completamente)

27/08/2016

Bed of roses

Há imenso tempo que não escrevo um post parvinho. Os posts parvinhos são bons para dissipar qualquer imagem muito boa, enganosa, que eu possa andar a semear ou, caso não ande a semear nada, usam-se então para dissipar neuras como a que me chegou hoje em dose cavalar. Não sei se é dos comprimidos que estou a tomar e que, senhores, me dão vapores quentes no estômago de tão potentes, até corro - corro é uma maneira de dizer, arrasto-me - a comer bolachas que se destinam a acalmar os calores no estômago e elas cumprem, as lindas. De toda a maneira, não ando mesmo a semear nada, perguntaram-me no hospital se estou grávida e eu adoro muito que me perguntem se estou grávida porque é sinal que pareço muito mais nova do que sou (imagem enganosa, afinal sempre havia), mas na papeleta que acompanha a caixa dos comprimidos amigos das bolachas diz uma coisa assim gira "não se deve tomar em caso de dor ligeira". Ou seja, a minha dor é pesada. No entanto não me estou a queixar, já disse a quem tem paciência para me ouvir que me agrada sobremaneira não poder por agora deslocar-me ao supermercado ou agarrar-me ao aspirador. Todavia, nem tudo são rosas como seria de esperar: tenho umas margaridas em tecido de várias cores que a minha caçulinha me trouxe do seu quarto para o meu - mãe tu gostas de flores, toma lá. A cama, por exemplo, a minha própria cama!, deixou de ser user-friendly: nela me deitar ou dela me erguer é agora todo um projeto (isto a propósito de não serem só rosas a minha doce vida).

Não gostando de estrangeirismos, que é o meu caso, deve então ler-se ali o quê?

Amiga do usuário. Da usuária. Minha amiga. A cama já não é minha amiga.

(e um post parvinho pode acabar com uma canção, não pode?)

24/08/2016

Uma procissão e eu parece que sou surda

Entro muito devagar no gabinete médico com a mão no flanco esquerdo e a minha filha mais velha a amparar-me com o olhar. Sento-me também devagar na cadeira destinada ao doente. O médico mal me olha, é um homem de cabelos brancos e origem indiana - engraçado eu esperar mais de um homem de origem indiana - e fala-me então muito alto, como se eu fosse tão surda quanto vagarosa. Faz-me perguntas às quais respondo pela terceira vez, se contarmos com a triagem e o telefonema prévio feito de casa, pela minha filha, logo depois da dor que me mordeu o lado esquerdo, mesmo por baixo da nódoa negra obtida há vários dias quando caí dentro de um buraco, mas só metade de mim é que caiu, o resto sei lá como ficou (isto para explicar).

- Vamos ver a sua coluna.
- A minha coluna está bem, é aqui de lado que me dói, doutor.
- Mas se está na ortopedia, é a coluna que vejo.
- Enviaram-me para a ortopedia.
- Não estou a dizer que foi a senhora a tomar a iniciativa, mas temos de ver a coluna, estamos na ortopedia. Faz raio-x e depois vai para a cirurgia geral.

Tudo isto lhe saiu no tal tom de voz para surdos e sem me olhar. Sinto-me uma espécie de porta do "surda que nem uma porta” e penso nos velhinhos que lhe entram no gabinete à velocidade a que eu entrei. Tento apanhar-lhe os olhos com os meus, para ele ver que deste lado está um exemplar da mesma espécie - olá, sou uma pessoa - e que surda tenho a sorte de não ser, nem porta. Noto então a ficha de outra doente em cima da mesa do médico, na qual leio, ao contrário, um nome e uma idade, oitenta e dois anos.

- Essa não é a minha idade. Ainda. – esta foi a estratégia para lhe apanhar os olhos, acordá-lo.
- Esta não é a sua ficha. Ou quer chamar-se Maria das Dores?

Não quero, e apanho-os, aos olhos. Fixo-os. E sem os largar, pergunto-lhe porquê a cirurgia geral. Como eu pretendia, explicou-me então, agora com a voz bem regulada para o meu ouvido, ainda que olhando alternadamente para mim e para o ecrã do computador, e usando de termos técnicos com tudo incluído, o porquê da cirurgia geral. Percebeu? Percebi.

Sala de espera de novo, lentamente.  Raios-x, deite-se, devagar, agora vire-se, com certeza, e agora de pé, já vai, só um bocadinho, encha o peito de ar, expire, não se mexa. E outra vez sala de espera e de novo a ortopedia, o mesmo médico. Não me esqueço de notar que a minha filha acompanhou tudo isto, mãe queres água, mãe deixa ajudar, mãe vem sentar-te. A mais nova ficou de fora, que só podia entrar uma com a doente, eu. Que a voz do médico indiano se mantém regulada para a minha acuidade auditiva, também devemos notar. Não tem fratura, declara, mas vai para a cirurgia geral, há que ver os órgãos internos. Se lhe pedirem raio-x diz que já fez raio-x, não só à coluna, a tudo. Percebeu? Percebi, doutor, lembro-me muito bem que fiz mesmo agora o raio-x, muito obrigada, levanto-me e saio como um caracol.

Outra sala de espera, lentamente. Gabinete cinco. Ao ouvir o meu nome, dirijo-me à porta já se viu como. Está um médico lá dentro, ladeado por uma cortina, bom dia doutor, o doutor não responde. Atrás dele um corredor e do outro lado outra secretária e uma médica que me atira com a voz do mesmo tipo para-surdos, ela também, é para aqui se faz favor! Passo ao lado deste médico da cortina que não diz bom dia facilmente, eu muito devagarinho, desculpe, com licença. Fico junto da médica, em pé no meio do tal corredor, a minha mão no flanco, ela uma bonita mulher, penso, elegante, mas que estranhamente também me supõe surda. Então a queda foi hoje?, atira-me, enquanto olha para o que está a teclar. Não, doutora, não foi hoje, hoje foi o osso a estalar, uma grande dor, expliquei de novo, mesmo crendo que também ela não ia ouvir. Não ouviu (e a surda sou eu), mas viu um grupo de três doentes chineses, isso viu, que andavam atarantados à procura de alguma coisa, com passos pequeninos, aqui por trás de mim, muito chegados uns aos outros os chineses, olhavam para a esquerda e depois para a direita; reconheci-os da sala de espera número quatro.

- Qu’é isto?! Uma procissão?! - a bela médica fala sozinha, que para mim não é, e depois – Eh!!! Não podem estar aqui!! Isto é um gabinete!!! – na mesma voz alta para quem é ou surdo ou surdo. Os chineses exclamaram umas coisas em chinês e fugiram muito juntos.

Ora eu, que já tinha decidido não tentar capturar os olhos desta médica com os meus, doíam-me as costas e estava de pé há muitos minutos ali, de mão no flanco e vontade de me ir embora, fiquei perfeitamente esclarecida: isto é um gabinete. É que a mim parecia mesmo mesmo um corredor.


(lá tive de ceder, recentemente, à subscrição de seguro de saúde privado por não ter direito a médico de família e umas outras coisas, porém faço os possíveis por me servir do serviço nacional de saúde; acredito nos nossos médicos e acredito que é servindo-nos dele que o SNS pode melhorar; mas eu está visto que parece que sou um bocadito surda com a mão no flanco e dores nas costas)

17/08/2016

Flutuando

As coisas, a minha vida, o meu isto. Acordada nas quatro da manhã. Desfeita ou refeita, ainda não sei. Dentro do barco, já não ouço a água chapinhar no casco. Sossegou enquanto a lua grande descia, essa encontrei no deck ao frio desta noite, ao pôr a insónia ao léu. Mas não a meti no bolso. Não tenho aquilo da posse, ao menos.

(e tropeçar no Michel Vaillant que li ao entardecer, abaixo do grasnar dos gansos, admiravelmente bom regressar a Michel Vaillant)

14/08/2016

Post sem glúten

Ainda o verão embrião se sentia, trouxe comigo, de Lisboa, uma batata doce sem glúten. Visivelmente cansada da janela da cozinha, que é exigente em tolerância a raios de sol, a batata doce mirrava devagarinho. Trocava, até fotografei, a sua energia alimentar por uns raminhos de folhinhas nervosas que nela começaram a despontar.

Trouxe-a, então, para a serra e, com cuidados, deitei-a num vaso que tinha a terra seca, ervitas indecisas, pedrinhas ao acaso e um ou outro projeto falhado de teia de aranha. Aliás, agora já em pleno verão crescido, deve notar-se que me admiram as aranhas na sua tenacidade para a produção de teias em dois mil e dezasseis. A roupa seca no estendal em meia hora por estes dias mas, ao apanhá-la, já se podem apreciar entre uma calça e um lencinho uma mão cheia dos fios de fabrico aracnídeo, parece impossível. Por causa disto, ontem tomei duche com duas aranhas a trepar pelos azulejos da casa de banho, em fuga aflita, teto salva-me!, e fingi que não as vi. Mas voltemos à batata doce. Já não me passava pela cabeça comer-lhe a ausência de glúten por causa das suas vontades de germinar assim: as folhinhas até as fotografei, como já disse. Portanto deitei-a no vaso, toma lá uma caminha seca, ficas aí mais de fora que de dentro, a olhar o vale, a ver passar os pássaros, talvez eles gostam de ti. E abandonei-a ali, tornei a Lisboa sem ela. Quando à serra voltei, há dias, tudo praticamente na mesma: os pássaros nada, não lhe quiseram a doçura sem-glúten, a terra seca com coisinhas secas, a batata doce um nadinha mais germinada, é certo, mas só um nadinha e num esforço evidente, uma dificuldade (pareceu-me triste). Uma bela manhã, com licença, vou mas é tratar de ti. Deitei meia saca de terra comprada no supermercado (como se ali não houvesse), terra preta, pesada, cheia, nutritiva, uma pode dizer-se terra-mãe e, com o regador metálico, muito bonito, fiz o que faltava, dei-lhe de beber. Nesse dia e no seguinte e nos outros dias, aguinha pela manhã.

Resultados (garantidos em menos de uma semana): até dá gosto. Embora sem glúten.