a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

26/04/2016

Uma coisa, duas, afinal três e até mais

Vou dizer uma coisa. Não gosto do termo espreitar quando se trata de olhar. Se não há buracos de fechaduras nem outras pequenas aberturas através das quais temos de espremer a vista, não é espreitar. É olhar e é isto que quero dizer. Também não gosto de chamar cantinhos aos blogues, portanto já agora digo duas coisas, o meu é bastante espaçoso uma vez que cabem todos os disparates que me apetece escrever e também caberiam os que censuro porque cada vez tenho mais... mmm... receio de escrever disparates, por causa dos ilustres leitores que são todos os leitores. É que eu sou uma pessoa na verdade muito séria, uma vez ia na rua, tinha uns dezassete anos e vinha um rapaz com ar de quem se achava muito capaz, olha ficou rapaz capaz, rapaz capaz (está bem) de angariar raparigas facilmente (via-se pela maneira de andar) e eu pus-me séria e quando nos cruzámos ele disse que cara tão séria e a partir daí achei muito boa a ideia do séria. Isto para dizer que preciso de um espaço tipo senhor espaço para o que de mim fica reprimido, que é muito, ou antes, que tem sido muito. Portanto cantinho não. E quando vou aos blogues das outras pessoas não espreito, olho (voltamos à uma coisa), com os dois olhos abertos normalmente. E leio. Também normalmente. Ou seja, não ponho a mão em canudo à frente do meu olho diretor que é o esquerdo e não espreito por lá para ler o blogue, é isso que quero dizer com normalmente. Às vezes rio-me, gosto muito de blogues que me fazem rir (e eu tão séria) e que me fazem pensar ou me ensinam ou me mostram uma coisa que amo com toda a minha célula: inteligência, capacidade de observação ou um coração bondoso, amo isto tudo, sou assim. Toda a minha célula também é uma forma de plural só que não parece. Afinal eram três coisas.


(este post estava nos rascunhos com preguiça de se fazer à vida. de post. para castigo, vai ser o último. por um tempo. pelo menos.)

25/04/2016

Coisinhas zen e o papagaio das flores

Como tenho trabalhado dia e noite noite e dia (a palavra noite duas vezes seguidas nunca me tinha acontecido… uma vírgula ali?!... não, claro que não), como aliás já tive oportunidade de contar aqui no blogue, preciso de incentivos para o meu cérebro cansado. De maneira que pus a tocar uma música tililim tililim berlam berlam que é uma composição repetitiva com este padrão tililim tililim berlam berlam classificada como zen, julgando que isto me traria bons resultados. No entanto, meia hora depois evoluiu a música zen (ou seja, não é assim tãããão repetitiva) para dzém dzém sem tililim, só dzém dzém, mas eu não gosto de sons metálicos, e dzém dzém é metálico, portanto desliguei-a logo. Ficámos só eu, esqueci-me de dizer que isto foi hoje de manhã, é do meu cérebro cansado que me esqueço, ficámos só eu, repito para não nos perdermos, o sol a meter-se todo dentro da cozinha e o papagaio do quiosque das flores caríssimas que não sei como alguém ainda as compra de caríssimas que são. O papagaio do quiosque está a emitir um som há imenso tempo que me entra pela janela e só agora sobressai depois de desligarmos a música zen, devido ao fenómeno natural dos decibéis em que uns abafam os outros enquanto podem.

Tjalp-tjalp teren tjalp! Isto imagine-se muito alto, o papagaio é sempre assim que emite, tjalp-tjalp teren tjalp!, umas vezes após as outras, ele não faz outra coisa e em modo não zen (o bicho já é antigo e antigamente não se faziam coisinhas zen).

Não o podendo desligar, ao papagaio, mudo-me para o outro lado da casa que, a esta hora, ainda não tem sol. E opto por Chopin, que os noturnos soam sempre bem e dão a resposta adequada - é agora que se percebe que isto anda tudo ligado - àquilo da noite noite.

20/04/2016

Um dia meio mau e meio bom

Carrego no botão e desligo aquilo. Isto, do trabalho. Não posso dizer o que é senão vê-se logo qual é o meu trabalho. São dezasseis e trinta e sete e quero um café, mas às dezasseis e trinta e sete já devo ter ingerido uns três cafés. Deixa ver se hoje também, não, hoje não. Depois do almoço que engoli rapidinho não passei pelo café, fui diretamente carregar no botão para ligar aquilo. Isto, do trabalho. Não posso dizer o que é. Por isso não bebi o café. Se eu escrevesse como deve ser, as palavras saíam a combinar umas com as outras e nunca por nunca se punham a rimar assim como o que é com café, coisa esquisita, principalmente porque quando as quero fazer rimar, adormeço de tanto procurar (outra vez). Mas eu gosto disto de escrever e não me preocupar se sai bonito ou feio. Sai, pronto. Levanto-me e espreguiço-me à vontade, não está aqui ninguém. Julgo que ao espreguiçar-me cresço um bocadito além do metro e sessenta e dois (estou a dizer a minha altura) onde parei. Não é muito, por isso com saltos altos fica melhor. Sofre-se, mas fica melhor. Quando eu era pequena diziam-me as pessoas crescidas que eu era muito alta. Eu adorava aquilo de ser muito alta porque tinha medo de ficar anã. Tinha uma coisa que era medo de ser anã, tinha tinha. Por isso ficava tão feliz quando, ai susana estás tão alta. E estava, mas agora já não estou.

Agora estou a caminho do café. O das dezasseis e trinta e sete. O segundo do dia. Um dia meio mau. E meio bom. Mas o meio mau é que é pior. (nem pareço eu)

(este post levou dois minutos a escrever e quinze a corrigir, estou a melhorar imenso a minha produtividade)

19/04/2016

É uma catarse

A propósito disto, venho derramar uma catarse. Um pedaço de catarse não faz mal a ninguém e bem vai fazer, querem ver?

Havendo quem use as exclamações nos correios eletrónicos para purgar um jovem e genuíno entusiasmo, prevendo-se mais tarde, eventualmente, a sua substituição por reticências, também há, posso atestar, quem acumule as duas funções. Para além de poluir as mensagens de trabalho com exclamações inexplicáveis e reticências acusatórias já depois dos quarenta, ainda são as mensagens compostas com um valente "Boas!" à cabeça, lido cá por mim como um pachorra-nenhuma-para-pensar-se-é-de-manhã-bom dia-ou-de-tarde-boa tarde, isto vindo de um diretorzecozito com secretariazinha. Ensinada. Que aprendeu e faz igual, Boas!

A secretariazinha deu recentemente para embirrar comigo por razões desconhecidas (contudo adivinhadas). Não tem problema porque eu até lhe acho graça (para além de já me estar a dar um post). Há dias deslizei elegantemente para dentro da sala de reuniões que tinha a porta aberta àquela hora, o costume, o computador portátil nos braços, o cabo a dependurar, o rato, também de fio, enfiado no bolso para que não me torne a cair ao chão pela enésima vez com o laser a apontar-me aos olhos, acho que aquilo é laser mas vou verificar, eu devia saber destas coisas mesmo quando surgem a meio de uma catarse, eu que gosto imenso de lasers, apanhei-a, íamos na secretariazinha do diretorzecozito, eu a caminho de me instalar e ao projetor para uma tal reunião específica que tenho de levar a cabo periodicamente, e ela ao telefone com uma chamada muito cheia de olhos azuis ali toda sozinha dentro da sala. Entrei silenciosamente e pousei a tralha e os fios, barulho nenhum, pousei tudo menos o raio laser que tinha no bolso e ela vai de atirar-me indignada que não sei quê de pedir licença, não é ó susana e eu não gostei do não é ó susana, nem do francamente que depois lhe saiu. Isto como se a sala lhe pertencesse ou estivesse com a porta fechada. Quedei-me a remover o laser do bolso e com isso ela compreendeu que eu não ia sair, francamente não ia sair, então pega e dirige-se para a porta, leva lá para fora a sua chamada toda cheia de olhos azuis, a chamada continua a entrar-lhe pelo ouvido e a sair-lhe por onde é que já não vi.

Eu disse que era uma catarse.

18/04/2016

E tu, concordas com quem?

Estamos as três a jantar, as minhas filhas - Muzi e Saminhas - pela ordem em que vieram ao mundo, e eu. A sopa é um momento delicado dado que habitualmente, apesar dos meus saudáveis, ecológicos e verdes esforços, não é apreciada. Comemos em silêncio até Saminhas o quebrar.

- Às vezes não concordo nada com o pai. Ele fala, fala e tem aquela maneira de falar, parece que sabe tudo. E eu às vezes não concordo nada com ele.

Muzi, a defensora incondicional de seu pai mesmo quando não é preciso, avança.

- Ó Saminhas, qual é o problema da maneira do pai falar? Ele fala bem, sabe muita coisa...

- Não há problema nenhum, Muzi, eu é que não concordo, mesmo quando ele parece que sabe tudo...

- Mas ele sabe mesmo, sabe muitas coisas... o pai...

Saminhas torna, interrompe a irmã.

- Olha e contigo também não concordo sempre, ouviste? Não é só com o pai.

Esta é a parte em que, entre uma colher de sopa e outra, eu levanto os olhos na direção de Saminhas e não terei segurado um sinal esperançoso e mudo (e estúpido, evidentemente) de ouvir que é com sua mãe, aqui presente, esta que produziu uma bela sopa (hoje ainda não sujeita a críticas), que é praticamente maravilhosa, a mãe, e outros adjetivos já verbalizados a esta mesa, um doce a minha filha, aliás as duas, é com sua mãe, pensava eu então, e agora dizia, que a caçula concorda sempre. O meu sinal esperançoso e mudo (e estúpido) é decerto também interrogativo, ora vejamos.

- E contigo também não, mãe, às vezes não concordo contigo.

Toma que já almoçaste e daqui a pouco também já jantaste, torno a deitar os olhos ao prato, ah não?..., todas tornamos, mais um momento de silêncio, até que o assunto é definitivamente arrumado:

- Só comigo é que eu concordo sempre.

15/04/2016

O beijo do dia (e não o dia do beijo, evidentemente)

Gostaria de ser mais inteligente e mais alta, mas principalmente mais inteligente.

Ora vejamos: encontrar-se-á com certeza um propósito nobre na génese do estabelecimento do dia do beijo. Ocorre-me a hipótese primária de uma potencial contribuição para a melhoria das condições de transporte do gado suíno nacional a caminho do matadouro ou, em alternativa secundária, a implementação de soldadura por laser de baixa potência renovável para ligação de circuitos eletrónicos de geometria fina ou ainda, terciariamente, o instaurar de uma operação consistindo em equipar as escolas públicas do país com novos e mais brilhantes bicos de bunsen.
Não podendo cair numa destas categorias e nem – ia-me esquecendo – na do turismo algarvio, não alcanço a intenção do dia do beijo e não posso deixar de considerar o conceito pindérico. Mas não excluo a hipótese de o compreender em todo o seu esplendor fora eu, lá está, mais inteligente (e mais alta).

Pensei nisto ontem. E lembrei-me, enquanto pensava, que há beijos surpreendentes (são os melhores, se forem bons). Esses que primariamente nos tomam em suspenso, aquecem ali num ai e nos entram a seguir no organismo, circulam na rede sanguínea muito bem, causam estremecimentos e em princípio outros efeitos secundários mais evidentes (e terciários, com sorte). A questão é quando. A resposta é já: num dia qualquer (ou de manhã ou à tarde ou à noite). Um beijo surpreendente não espera pelo seu dia, faz o seu dia. Faz o meu também. Fazes? Pois fazes.

É o beijo do dia.


Ora dá cá um e a seguir dá outro (ando com isto na cabeça desde ontem) depois dá-me mais um que só dois é pouco… ai eu gosto tanto hum é tão docinho e no entretanto cá mais um beijinho

12/04/2016

As Pequenas Memórias de José Saramago

- Já lhe deixei lá o livro.

A dona Esmeralda devolveu-me o livro.

- Já vi. Então, já o acabou.

- Sim. Mas olhe que aquele final não tem pés nem cabeça, digo-lhe já!

A dona Esmeralda diz que o final não tem pés nem cabeça e está a parecer-me zangada. Comigo.

- Ah, não?...

- Então alguma vez?! Tem algum jeito?! Está bem, pronto, é a infância dele, tudo certo, cresce, lá com os pais e tudo, muda de casa, muda de rua, eu até conheço uma das ruas, mas o final.... ah, menina! Muito estranho, aquele final! Ficou assim, assim (as mãos ilustram o assim assim com muita veemência, por cima da sua cabeça) sem jeito, pronto! E olhe que ele era muito pobre, a família, tudo. Muito pobre.

A dona Esmeralda abana a cabeça e continua a limpar o chão da cantina enquanto diz muito pobre, a família, tudo, muito pobre.

- Sim, muito pobre. Mas já viu, dona Esmeralda, uma pessoa nascer assim, dormir com as baratas e depois, um dia, ganhar o prémio Nobel?! É um prémio muito importante, é O prémio!

- Eu sei, eu sei.... por isso é que eu digo... olhe, ele havia de ter chegado aos dezoito, dezanove anos, arranjava uma namorada e assim. Isso é que era! E depois então acabava o livro! Com uma namorada! Não era isto... só vai até aos dez, onze anos... é a infância dele, está certo.... mas o final não tem pés nem cabeça!

Desta vez eu não sei mesmo o que dizer, só sei ouvir. Hesito, ela não: continua a limpeza que tinha começado, é vigor, é determinação. E vai continuar.

- Mas era um maroto, ah isso era! Sabe que ele via as pernas das pessoas a passar na rua, lembra-se dessa parte? Vivia assim naqueles quartos com as janelas em cima, era uma cave, uma espécie de cave, via as pernas das pessoas... e lá se metia com uma moça ou outra... pronto, mas só isso.

A dona Esmeralda encolhe os ombros, eu continuo ali especada, a chávena vazia na mão.

- Dona Esmeralda, vou trabalhar. Até amanhã.

E de repente ela endireita-se, parece ganhar ânimo. Eu também. E remata.

- Mas quer dizer, gostei, pronto. Gostei do livro. Um homem daqueles... gostei. E olhe, logo à noite já começo o outro que me emprestou, pela capa acho que vou gostar.

(o outro é um livro de contos da Isabel Allende que eu li há quase trinta anos; e a seguir acho que o melhor é passar diretamente para A Amante Holandesa)

08/04/2016

Clara Ferreira Alves (e a espessura dos personagens)

No dia em que li uma crítica da Clara Ferreira Alves à escrita do José Rodrigues dos Santos, guardei uma pergunta dentro de mim. A crítica não visava propriamente a escrita de José Rodrigues dos Santos, visava particularmente um seu livro recentemente publicado (creio que era o Homem de Constantinopla). Não podendo já ser precisa nos dados, limito-me ao essencial: dizia Clara Ferreira Alves, entre muitas coisas, que ele não dá espessura aos personagens. Disse também - recordo-me - que quem sabe dar espessura aos personagens, por exemplo, é John Le Carré. Nessa altura levantei-me e fui buscar um Le Carré à estante, eu queria saber o que é a espessura dos personagens. Levei O Peregrino Secreto para o quarto e pousei-o na pilha onde já estavam um ou dois Herberto Helder, talvez um Eugénio de Andrade, e mais, provavelmente Jorge Luís Borges naquela capa azul que me capta o olhar por tempos. A poesia é paciente, posso atestar, para além de esperar eternidades para entrar em cabeças pouco macias, ainda aceitou o Le Carré que Clara Ferreira Alves lá pôs pela minha mão, a pesar-lhe peregrinamente. Porém não o li.

Há dois dias, por ser muito bem mandada, fui comprar a revista LER a uma loja da Bertrand que me fica perto da hora do almoço. Ao abrir a página onde inicia a entrevista que Bruno Vieira Amaral fez à Clara Ferreira Alves, vejo, na estante de livros que serve de fundo à fotografia da entrevistada, uma boa quantidade de exemplares assinados por Le Carré. Que eu, a verdade digo, ainda não li (houve qualquer coisa na Casa da Rússia, quando foi publicado, que me catapultou para longe deste autor, mas não me lembro o que foi).

Portanto comecei, assim que a hora do jantar me deu tréguas na cozinha, a ler a LER: a entrevista. E terminei-a dois intervalos depois - na cozinha do jantar seguinte. Nela fiz uma belíssima colheita. Ao início uma gargalhada (CFA aprecia a portabilidade dos livros, anda com dois na mala não vá um ficar sem bateria), depois, tomei uma espécie de vergonha por ainda não ter lido Le Carré, mas a meio já estava plena de uma empatia por que não esperava e por fim enchi-me da vontade irreprimível de ler o Pai Nosso. Clara Ferreira Alves conta-nos a história do livro. Que um livro é como um ser vivo, tem história. Quando a conhecemos, queremos completá-la, fazer parte dela, queremos explorar-lhe as veias, beber-lhe o suco. Vou lê-lo. Antes de Le Carré e antes de toda a poesia que me ronda as noites me tornar a mente mais fluida. Mas vou a medo. O livro é capaz de me lancetar. Ou quem sabe dar-me um pouco mais de espessura. A mim, que ainda guardo aquela pergunta.

06/04/2016

Bacalhau albardado esfrangalhado

Ontem, pela hora do almoço na cantina, houve um esfrangalhamento da minha parte (bacalhau albardado, não me esquecerei) não muito bonito. Vejo, a seguir, que está sol lá fora, visto o casaco e saio. Atravesso o amontoado de cigarros a fumar colegas (ando irritante estes dias), desejei-lhes um bom fim de semana (mas esforço-me) e fui ao rio tomar sol.

Já?!

Até podia ter desejado um bom natal, nunca se sabe em que dia saio e não volto mais, mas fiquei-me pelo fim de semana, situação que sendo terça feira fez abrir os olhos a uns, o tal Já?!, e rir a outros, aqueles que reconhecem nestas questões atómicas de sair dos costumes, uma possibilidade, bom fim de semana.

Aquilo do bacalhau albardado consiste no envolver das fatias de bacalhau inteiras, compreendendo pele e espinhas, num polme amarelo que faz cobertura e depois vai a fritar. Ao degustar, mais tarde, os comensais terão de abrir o embrulho opaco e em princípio estaladiço, e de lá extrair o que é de comer, rejeitando o que é de engasgar, isto digo eu. Aliás digo e faço, é o esfrangalhamento. Mas isto, num dia assim de tempestade interna toda minha, assustou a dona Esmeralda, a minha querida dona Esmeralda (ao colocar a tigela da sopa no meu tabuleiro ao lado dos três pedaços de albardado - eu tinha dito dois, mas ela não obedece - olhou-me nos olhos e sussurrou um “e tome lá a sopa, para lhe aquecer o coração”).

Ao regressar da beira rio cheia de suspiros por férias, férias, férias, cruzo-me com ela, que ia a caminho do seu café pós almoço pós servir toda a gente pós arrumar os tabuleiros e pós ligar a máquina de lavar industrial, só a ordem é que não sei qual é.

- Então menina, não gostou?! Não é costume deixar assim tudo no prato... já ia lá perguntar-lhe se não quer uma peçazinha de fruta ou uma maçã assada, deve ter ficado com fome. (tenho razões ou não tenho para dizer a “minha querida dona Esmeralda”?) 

- Eu só deixei a casca, dona Esmeralda, comi o bacalhau; as espinhas e a pele não me puxam assim muito o apetite e foi preciso selecionar, só isso.

Ela então suspira, informa-me que adora a pele do peixe todo, bacalhau, incluindo as caras, maruca, a maruca que dá às netas come-lhe ela a pele, adoro!, uma vez até já me explicou que para quem está a dar de mamar a pele do bacalhau é do melhor para a produção do leite, está a ver, menina?, mas como sabe que não é o meu caso, salta a parte do dar de mamar e entra na explicação sobre como se faz o polme, não é casca, é polme, menina, e eu sei muito bem que é polme mas de vez em quando fico irritante e digo ervilhas quando é azeitonas verdes, eh suas grandonas! A dona Esmeralda perdoa-me.


Tomara eu que houvesse mais assim. Muitas donas esmeraldas. O mundo havia de ser bom e eu podia prescindir das férias, férias, férias e deixar de me fazer irritante.

(ainda não terminou a leitura do José Saramago que lhe emprestei há tempos, porque de noite dá-lhe o sono e de dia não quer estragar-me o livro a trazê-lo nos transportes públicos, não vá uma folha dobrar-se na ponta – foi o cabo dos trabalhos convencê-la que pode, pode dobrar as folhas na ponta, o livro quer ser lido e eu importo-me com outras coisas, não com essas – e agora já está quase a acabá-lo, anunciou-me)

05/04/2016

Inseticida, o afrodisíaco

Hoje, depois de vários dias sem blogar nadinha, nem aqui nem em lado nenhum (tirando uma ou duas exceções muito raras), devido a mergulhos profundos em mares reais, fiquei admirada de encontrar o blogue ainda vivo quando, a medo, entrei a ver se apanhava alguma mosca varejeira a comer-lhe os restos. Não: o blogue tinha tido visitas nos últimos dias e continuava a ter, estava todo arejadinho, sem pó nem cheiro a mofo, ora isso foi bom.

Mas comprei um inseticida do tipo casa-e-plantas por causa de um pulgão branco muito quieto que atacou a minha família de três orquídeas, duas a dar flor desde janeiro (o ano passado apaixonei-me por orquídeas e este ano por um livrinho, já contei). Pulgão é o nome que me ocorre atribuir aos dois exemplares cheios de patinhas que parecem pelos, pousados nas folhas de grande porte que estas flores ostentam todo o ano sem parar (as folhas parecem de plástico, é isso que se quer dizer). Vaporizei-as com vigor e com o casa-e-plantas psssssssssssssss com incidência especial nos exemplares pousados nas folhas. Isto claro que de braço esticado e sem respirar durante o máximo tempo que consegui antes de ficar roxa (na piscina, nos verões com as minhas irmãs, conseguia doze segundos debaixo de água). Mas os pulgões - que talvez tenham outro nome, visto que não se mexem - não morreram. Preferiram (como não sei) reproduzir-se muito. Muito muito, mesmo muito, imenso, coelhos não teriam feito melhor e agora é todo um polvilhado branco de micropulgões muito quietos atrás das orelhas das minhas flores, dentro dos olhos, nos delicados caules, caídos nas folhas verdes que parecem de plástico como se isto fosse o da joana. Eh pá eu não acho graça nenhuma a pulgões, mesmo que paradinhos. De maneira que enfurecida fui buscar o casa-e-plantas ao armário fora do alcance das crianças que já cresceram mais que o próprio armário e dei-lhes outra: psssssssssssssss sem respirar os doze segundos que já sabemos.

Mas depois pensei. Bolas. Se calhar, quer dizer, agora que reflito nisto, e já me desenfureci, se da primeira foi o que foi, aquele expoente da multiplicação, da segunda, enfim, é capaz de aquilo ai valha-me deus.

A menos que haja alguém desse lado aí que saiba precisamente o que fazer em casos de se querer matar pulgões das orquídeas em vez de, pelo contrário, lançar no mundo a população da china em coisinhas daquelas, isto vai murchar tudo tarda nada, para além de morrer.

(e isso é que havia de ser motivo para eu vir aqui ler poesia no blogue, satisfeita, em agradecimento)