a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/05/2015

Rotas de colisão comigo

De cada vez que oiço o troar demolidor da minha paz quotidiana vindo de um alarme de automóvel estacionado na rua, incremento de vários pontos a ideia já de si positiva que tenho de mim mesma por nunca ter escolhido alarmes para os meus carros. Isto dá-me a certeza de que o carro em apuros não é o meu e dá-me ainda a garantia da retoma da tal paz logo a seguir àquilo. De qualquer forma, gostaria de poder trocar esses troares agudos e ondulantes por sinfonias já isentas de direitos de autor. Beethoven fez muito por nós, mas para alarmes de viaturas vítimas de ataques, creio ser esta a composição adequada, em repeat e até à salvação. Quem encontrar melhor, diga lá.

Ainda no mesmo contexto de paz conquistada no consumo mínimo, levo a manhã de trabalho com vontade de comer a hora de almoço. Isto não parece lógico, mas é logo nas primeiras horas do dia que o meu cérebro se esquece de ir às reservas mais próximas tão entretido está com o jorrar de ideias, e pede mais. Fica a nota para o caso de dúvidas.

Mas foi – era aqui que eu queria chegar – ao som de um alarme desses estridentes que ontem à noite fui para a varanda estender roupa a uma hora de sossego cerebral. A perturbação sonora não estava sozinha, tinha companhia condizente com os meus desejos musicais expressos dois parágrafos atrás - isto anda tudo ligado - ou seja, havia por lá um insecto castanho de grandes dimensões que esvoaçava em meu redor e da roupa, munido de intenções de avançar para rotas de colisão comigo, disto estou certa, levando portanto o resto do bem estar que eu trazia da máquina de lavar (assim como há quem goste do cheiro da terra molhada, gosto eu do ciclo da roupa no lar). Removi o meu corpo estremecido dali para fora a uma velocidade extraordinária e chamei a minha filha. Veterana de acampamentos de verão e guitarradas em redor das lareiras com histórias de arrepiar cabelos muito jovens, abandonou o estudo do português por mim e veio salvar as duas - a bichana voadora e eu - com um jeito que deve ter ido buscar ao pai, admito. E devolveu uma de nós à doçura da noite lisboeta.

O alarme depois calou-se e a roupa estendi-a toda a pensar nisto.

27/05/2015

Uma espécie de castigo

Sendo praticamente muito tarde devia levantar-me da cadeira semi de baloiço e semi de joelhos em que me sento para escrever e ir pelo caminho mais curto para a cama, mas temos um problema.

Há temas. Os temas querem ver-se escritos e anda um a morder-me o coração (sim, roubado do título de um livro de Patrícia Reis, que eu criatividade foge-me muito).

Trata-se do presente de aniversário que as minhas filhas me deram já lá vão mais meses que seis. Ofereceram-me um momento zen ou spa a escolher de um catálogo muito generoso com oferta em todo o país até ao dia trinta e um de maio e eu não estou a conseguir.

Ainda lhes vejo os olhos lindos que pus no mundo a brilhar de alegria, mãe tu precisas mesmo disto, massagens e spas, gostaste do presente?

Que não sou a melhor mãe do mundo eu já sabia. Ou sequer de Portugal. Mas começo agora a desconfiar que nem aqui do prédio devo ser (no entanto, neste prédio vivem muitas muitas mães). Desperdiçar assim oito meses de validade de um presente tão bom não se perdoa. E o pior é que andava ainda março a espreguiçar-se e elas vieram pôr-me a caixinha do catálogo em cima da mesa mais próxima, mãe não deixes passar o prazo, tens de marcar a massagem. 

No fim de semana comecei a telefonar arduamente, ainda confiante, para os números que encontrei nas páginas do catálogo previamente seleccionadas, tinha-lhes dobrado os cantos a marcar as limpezas e as massagens e outros serviços um pouco até assustadores, mas dobrei-lhes os cantos na mesma; mendiguei: por favor, era só um momento (zen), não é possível minha senhora... qual é o seu prazo? é já dia trinta e um (corei, claro), ah pois, mas dia trinta e um é o prazo de muita gente, estamos cheios.

E agora?

- A senhora pode pedir a renovação da validade se quiser. São onze euros. 

- Uma espécie de castigo, compreendo. – eu quando não estou a trabalhar e mesmo em modo de desânimo, posso muito bem estar a brincar.

- Não… não é castigo, minha senhora, é o serviço – nem toda a gente brinca, evidentemente – e a senhora tem sorte, porque o ano passado eram vinte e dois euros.

Tenho sorte, tenho muita. Só espero merecê-la toda.

25/05/2015

Interrupção abrupta

Hoje ganhei um seguidor. Continuo a ficar contente ao ponto de sorrir e dizer para dentro olha um seguidor, quando ganho um seguidor. Tal como o primeiríssimo de todos, que se chama xilre, e que me fez dizer olha um seguidor pela primeira vez, e nessa altura como era muito maçarica em blogues ainda acrescentei mas o que é isto de xilre (mal sabia eu).

Há blogues que ganham seguidores muito depressa, outros muito devagar. O meu é dos muito devagares. Devagares é palavra que não existia ontem, mas hoje está aqui, como se pode ler perfeitamente.

Vinha há pouco no carro a cortar esta noite de maio que se estendia de Cascais a Lisboa e ouvi uma canção que me faz sempre chorar um bocado parvo, coisas.

O choro foi totalmente inadequado, visto ter-me interrompido os pensamentos que trazia a desenrolarem-se em evolução darwinesca, extraordinária, como se fossem um colar feito de clips arredondados, coloridos e dançantes. Qualquer dúvida sobre a palavra darwinesca é favor simplesmente acreditar, uma vez que se percebe - também - perfeitamente.

Era isto. Perguntava-me eu num português perfeito (mas pensado) por que razão têm os aplicativos dos blogues tanto medo de robôs. Uma pessoa pessoa, vamos imaginar eu, vai pôr um comentário aqui, por exemplo (aqui colhem-se flores tremendas) e tem de provar que sabe fazer uma pequena cópia de números todos tortos ou, em dias de mais medo por parte do aplicativo, tem de mostrar que sabe distinguir bebidas de bolos.

Aquilo começa a entusiasmar-me e dá-me vontade de resolver integrais triplos ou então declamar um verso d’ Os Lusíadas em voz alta com imenso glamour. Dessa forma faria muito boa figura e provava ser uma pessoa pessoa de alto nível, com certeza com acesso a escrever muito bons comentários. A palavra pessoa aparece repetida de propósito, é estilo.

Devido à interrupção abrupta que levei no encadeamento deste pensamento bastante promissor - a tal canção - precisava da ajuda dos meus queridos oitenta e dois seguidores: a ver se algum deles, penso que todos pessoas pessoas, já percebeu qual é o problema de lhe vir parar ao blogue um comentário proveniente de um robô. Em princípio o mundo não acaba (mesmo que não se tenha começado pela sobremesa). Pois não?


(é que eu, para ser franca, até achava engraçado isso de um robô gostar do meu blogue)

23/05/2015

Bofetadas nas pétalas com as patas peludas

Primeiro a semana acaba, depois entro no supermercado. Levo a sensação de missão cumprida colhida mesmo ali na saída de emergência de muitos dias de trabalho que não me levaram a melhor, mesmo assim. Sei que estou baça e engelhada nesta sexta feira e desconfio que apenas caminho em linha recta se me imprimir esforço. Talvez por isso uvas e cerejas, finalmente cerejas, se tenham encontrado no tempo e no cesto que carrego na mão pelos corredores. Falta o vinho, mas por forma a polarizar totalmente a minha gula por fruta, tiro uma caixa muito bonita com pouquíssimas azeitonas gourmet e desta vez também vai sumo para as miúdas.
Subtraio-me em poucos minutos à superfície comercial que não é grande e enfio-me no carro para seguir rumo a casa. Antes de virar na última rua, passa-me ao lado esquerdo uma família de orquídeas na esplanada da florista do bairro; há-as em rosa total, rosa velho completo, rosa seco com notas de branco, branco limpinho com um toque de sol. Claro que o lugar de estacionamento, vago, à porta destas obras delicadas fez o resto. (As uvas e as cerejas continuam, admiradas, o seu encontro no tempo e agora no saco de compras.)

- Boa tarde, quanto custam as orquídeas?

Diz-me a expectativa que posso estar prestes a ouvir doze euros mas como trabalhei que nem uma mula nestas últimas semanas, acalento a esperança de merecer que sejam oito, oito euros, minha senhora (senhora, porque estou um caco estilhaçado tal como já expliquei).

- Vinte e cinco euros, minha querida.

O minha querida é uma merda porque me bloqueia o bom senso necessário para fugir dali, digamos, ontem. Sou sensível a estas porcarias e deve ser por isso que não hei-de enriquecer nunca.

- Levo a das notas de branco.

Dez minutos depois, em casa, abri a caixa das uvas e por vingança comi vinte e cinco.


(as flores são para oferecer à minha mãe no domingo, mas entretanto lembrei-me que os seus dois gatos são capazes de as querer mastigar, dar-lhes bofetadas nas pétalas com as patas peludas ou então jogar às escondidas atrás das belezuras e portanto estou apreensiva; uma fortuna destas)

20/05/2015

Bolas verdes grandes e pequenas no sofá da mãe

A minha irmã acho que é muito fofinha, tem caracóis que saltam mesmo quando ela chora porque não chega ao aquário. Ela quer tirar o peixinho cor de laranja para brincar com ele e com o teletubie encarnado. O meu teletubie é amarelo e eu sou crescida. Os peixes só na água conseguem respirar, coitadinhos.
Hoje a mana foi buscar uma caneta de pintar verde e a mãe não viu. Não chorou com o braço esticado para o aquário que está na mesa alta, nem fez barulho nenhum. Eu pensava que ela ia fazer um desenho, mas não deve ter encontrado as folhas e eu fui fazer xixi, estava mesmo aflitinha.
Voltei à sala a correr depois de puxar o autoclismo e abrir a torneira para a mãe pensar que lavei as mãos. A mana já tinha feito o desenho no sofá que é branco e azul com riscas, eu acho este sofá mais giro que o outro todo azul, e ela também porque fez o desenho neste.
A minha mãe já estava a ver o sofá todo riscado com muitas bolas pequenas dentro das grandes todas verdes e nem estavam muito mal feitas, acho que a minha irmã tem jeito e fiquei admirada de a mãe não achar isso também e lembrar-se que ela ainda é pequenina. Eu é que sou crescida.
O teletubie encarnado estava deitado no chão perto do sofá e a mãe em pé a ralhar muito com a mana que tinha a cara virada para o chão e não se mexia e a caneta até caiu da mão dela. Pensei que ela podia morrer porque a mãe estava muito zangada e parecia que gostava mais do sofá do que da mana, mas isso eu não acredito, se calhar a mãe estava mal disposta e não reparou que as bolas verdes até estavam mais ou menos.
Para a minha irmã não morrer, eu fui para trás dela e fiz-lhe festinhas nas costas sem a mãe ver. A mana não chorou e estava a respirar, porque os ombros dela mexiam e eu é que estava quase a chorar com medo.
Quando a mãe se calou e se virou de repente e foi muito depressa para o quarto, apanhei o teletubie encarnado do chão e dei-o à minha irmã.



Eram assim no verão de 2002.

19/05/2015

Vai dois mil e quinze a meio

Saiu da reunião a meio de dois mil e quinze com o computador nos braços e um buraco negro no estômago com apetite para engolir o esófago, a traqueia e a voz também, depois os pulmões etc e no fim havia de deixar as pernas para que estas pudessem continuar a transportar o espaço que a alma deixou vazio.

Fundo, na garganta, ainda se agarrava uma bola de lágrimas velhas e secas de tanto serem choradas sem fluxo e sem fim, uma parvoíce destas, que chorar é tão bom. Pensou que as seguraria até ao infinito do tempo que lhe resta, pelo menos até as poder afogar no porto seguro de um momento de solidão.

Ao chegar à secretária, estava, ao contrário do que esperava, tudo no lugar. Tal como se não houvesse entrado um buraco negro a comer-lhe o corpo aos pedaços, a arrancar-lhe a fome e a ameaçar o resto, primeiro as cores e os sons, depois tudo. Mas por enquanto, na secretária, as coisas no lugar: a garrafa de plástico com água para beber nesse dia igual; o calendário aberto na página do mês certo como se o tempo soubesse onde está; a chávena almoçadeira a imitar o antigo, guardadora do ramo das flores mortas, duras, que são os lápis e as canetas com pó; o pacote de bolachas maria, encetado, a primeira da pilha a tornar-se mole devagar; o monte de papéis do lado esquerdo, em silêncio, apesar de carregar muitas palavras fixas e bem alinhadas em duas ou três línguas diferentes numa estática de perfeição fria; o ruído que vive na sala, um bzzzz contínuo que não se sabe de onde veio para ficar; o cheiro familiar de um local sem querer seu e a orquídea branca que lembra os dias de sol lá fora, a beira de um rio a brilhar enquanto uma gaivota o sobrevoa à procura de peixe, parece que se ouve o grasnar ou será a saudade a morder.

Pousou o computador com cuidado para não o assentar em cima do fio do rato, que também se tinha mantido no lugar onde o deixara antes da reunião. Tirou o último lenço da caixa e tentou assoar-se a ver se podia. Depois levou a mão ao bolso das calças de tecido vincado com o ferro de engomar e retirou o papel dobrado que lá houvera metido nessa manhã vai dois mil e quinze a meio. Leu.

Leite, salmão fresco, espinafres, vinagre balsâmico, chocolate e uma caixa de lenços de papel.

(não fosse o chocolate e este post era triste)

17/05/2015

Jacarandás

Finalmente sento-me no terraço, pego no livro. O sol já desceu muito, está tudo torto. O dia muda-se para o meio do oceano, a manhã vem a caminho agarrada à noite, a semana vai chegar cedo.

As horas correm como as formigas grandes (não as agarro).

Mas finalmente o livro no terraço. Abro-o, começo a ler. A meio da página uma grande formiga de maio (mesmo grande) entra no meu campo de visão periférica sem ninguém a chamar e eu vai que lhe aponto a vista central e é isto: a sombra da formiga grande corre lado a lado com a sua dona, é ainda maior que ela mas não a consegue ultrapassar, corre a uns dois passos de distância (passos de formiga).

Devolvo, ainda com o sol no cabelo e convicção ora redobrada, a vista central à página do livro. Estamos sentados dentro do autocarro que circula numa rua estreita da cidade. Gosto de ler momentos íntimos das cidades, ver-lhes a tripa à mostra sem elas saberem que estou a olhar, descobrir-lhes um ângulo escondido, um suspiro de cimento vibrante, nem sei como gosto disto mas sempre gostei, as cidades são almas gigantes que me fazem sentir pequena e dentro delas me perco de mão dada com o livro.

Passa-me rente ao ouvido um insecto gordo e abelhudo, outro filho deste maio quente, vai a zumbir alto como seria de esperar de um insecto assim e a seguir choca inesperadamente com o pilar do telheiro, tac. De novo a minha vista central se apeia do autocarro, espreita debaixo do telheiro, não, o insecto não caiu, recuperou o norte que levava no pêlo e fugiu com uma dor de cabeça das grandes (e de maio), mas isto sou eu a dizer.

Desta vez entrego-me ao livro como me entrego a ti, a ver se vai. Sorrio por dentro do autocarro, que saiu da rua estreita e nos deixa ver exactamente o que te vou mostrar amanhã.

Os jacarandás começaram a florir.

13/05/2015

Em comum com as cerejas

Não tão frequentemente quanto vou a Moscavide, lavo o carro todo. Por dentro também (meia dúzia de euros).

Depois de pronto, detenho-me a olhá-lo com atenção. Provavelmente inclino a cabeça para desviar o olhar de alguma imperfeição pequeníssima, coisita de nada, faz de conta que não vi, dou a volta toda, devagar, vejo-me reflectida numa porta, eu torta, a porta não, e só paro com esta cena que é séria quando sinto aquilo. Cerca de trinta por cento da alegria de ter um carro acabado de comprar. Arredonda-se isto para meia dúzia de euros por um terço de carro novo, acho baratíssimo, compro logo.

Mas hoje viram-me em Moscavide. Enquanto para lá me dirigia, ao volante do meu carro que lavado já sabemos mas hoje vai sujo, paciência, ocorreu-me fazer a brincadeira de uma coisa nova por dia, quem diz uma diz duas, dado que não sei escrever textos giros e inovadores sobre o acordo ortográfico. Em andamento, lembrei-me de remover o casaco que trazia pelas costas visto que não estava frio nenhum, uma. Sentindo-me vitoriosa ao parar no semáforo que estava vermelho, tentei remover também a tosse que trago ao peito desde o fim de semana, mas isso é que nada.

Lancei-me então à caneta, por vingança, e ao caderno que trago sempre comigo. Comecei a escrever isto e continuei a escrever isto, em cada semáforo vermelho, até chegar a Moscavide. Quando estacionei, tinha as mãos no volante e a caneta enfiada entre os dedos da direita sem querer, voilá. Contabilizam-se, portanto, duas coisas novas neste dia, estou a ganhar (hoje fazem-se contas aqui).

- Como está a senhora?

Conhecem-me na loja onde entrei. No entanto não sou bem uma senhora (ainda), tenho medo de ser uma senhora, penso que se tornará tão aborrecido que bocejarei muito e correrei o risco de adormecer com frequência. Mau para a condução de máquinas.

Na loja, devido à característica que tem em comum com as cerejas, a conversa seguiu fluída e fiquei a saber que se trata de estabelecimento muito antigo, criado, dizia o dono, deve ser o dono, precisamente no ano em que nasci... ai sim?

- Está a ver a senhora, faça as contas, é uma loja muito antiga.

Engoli em seco sem fazer as contas e saí.

Serei mesmo uma senhora e ninguém me informou?! Acho incrível.


(uma coisa destas devia vir nas instruções, não é?… hã? … não interessa quais… vinha no AO, pronto, sempre está muito actual... ai... atual?)

12/05/2015

Pseudo post

Se é verdade que a Palmier Encoberto revela uma inteligência superior, um sentido de humor magnífico, a habilidade de se manter sempre respeitável e respeitadora? É.

Palmier Encoberto é um dos blogues geniais que conheço. Com ele, tanto se pode aprender como sair de lá a limpar as lágrimas de riso e a dizer para dentro "esta mulher é demais". É um lugar onde se testemunha talento.

Mas preciso sobretudo de dizer que o que li aqui me comoveu, me encheu o coração. De facto, foi um dos momentos mais bonitos que passei nos meus anos de blogues. Linda Pseudo, obrigada.

Abraço forte às duas.

11/05/2015

Não muito vertical mas linda

- Boa tarde, dona Isaura.

- Boa tarde - e desligo. 

Não é fundamental lembrar a empregada da clínica médica que não sou nem dona nem Isaura.


Acordo hoje com um pedregulho dentro da cabeça e não a levanto. Estico o braço para alcançar o telefone e mando mensagem a avisar que não vou trabalhar. Durmo mais o par de horas que a noite não me quis trazer e depois dessas sento-me noutra a suar toxinas. O pedregulho parece que se tornou entretanto relativamente poroso por causa do comprimido ingerido ali atrás à beira da mensagem, estou convencida. 

Transporto o meu estranho corpo sem destino através de um dia de repente desprogramado e parece-me que pairo num vazio onde me sinto florescer, mas isso foi por ter olhado a minha bela orquídea que vive na janela da cozinha e deita um olho ao rio.

(em lugar de desenvolver o florescer através de um dia vazio, viro-me para a orquídea, que te parece?)

Foi-me oferecida pela Salomé na esplanada da Casa do Preto, em Sintra (adoro o nome Salomé).

- Não a afogues, ouviste? É pouca água que deitas. Depois a flor vai cair, parece que todo o pé morre, mas não. Há-de tornar a florir. – a Salomé topou-me bem a inabilidade para coisas delicadas, mas é minha amiga e sabe do gosto profundo que carrego pelas flores, por todas as flores.

(Isabel, como se limpa isto? não posso omitir a Salomé, compreendes?)

Aprendi, a prova é mais abaixo que está.

Assim, parecendo que mais leve depois da visita à orquídea - o poder das flores não sei quê e é verdade - deslizo para trás do computador e dou um longo passeio por muitos blogues novos e velhos, grandes e pequenos. Hoje parecem-me todos bons (semeei comentários em alguns) e se não fosse um palerma de um sindicalista esmagar a tolerância restante de muito boa gente a greves de pilotos, tinha regressado ao encaixe no suor que me escorre pelo corpo – mesmo sem dançar, sem nada - a sentir um orgulho cintilante, quase total, nos meus compatriotas que se expressam por aí.

Ah! Mantenho a teimosia de escrever blogue. Para não ficar entupida num g órfão de pai, pobrezinho sem continuação, que eu falo bem é português portanto pego no telefone.


A consulta ficou marcada para a dona Isaura, é amanhã à tarde. Mas talvez ela melhore até lá.

(não ficou a fotografia muito vertical, mas ficou linda)

08/05/2015

Outra vez o café, chocolate não e a lotaria oxalá

Faltam duas horas e catorze minutos para as seis e um quarto virado a sul, muito sol, duas boas assoalhadas, ai não era isto, perdão, divergi. É de ser sexta feira, ié, evidentemente. Não sei escrever ié, mas o som, ao ler, está certo.

Levanto-me para obedecer ao desejo e ir à máquina do café buscar um. A dona Esmeralda anda a limpar as mesas da famosa cantina e não está a cantar.

- Então, dona Esmeralda? Hoje não canta?

- Não, filha. É sexta feira – e ri-se porque sabe que a razão não é essa mas acredito que não saiba que razão é.

Em primeiro lugar, sempre que uma pessoa mais velha me trata por filha, abre-se uma porta no meu coração mole e eu não me importo.

- É sexta feira, ié – imagine-se aqui em redor das letras uma clave de sol muito bem feitinha e uma colcheia, uma semicolcheia, um arranjo de notas musicais que nos catapulte para a conhecida música rap, ié.

Ando empenhada num novo projecto de blogue que é continuar este mas com posts menos enormes de vez em quando. Para não ficar toda a noite a escrever e assim cuidar melhor da minha pele.

- Sabe aquela música “é sexta feira, ié”, sabe, dona Esmeralda? – eu torno à carga enquanto a máquina do café treme imenso ao expelir com esforço o fio espumoso e aromático fazendo um barulhão que me obriga a gritar.

- Sei, filha – esclarece, enquanto dobra em oito o pano molhado que tem na mão – sei até muito bem, eu tenho esse disco.

De qualquer maneira, o empreendimento não se torna simples de concretizar, uma vez que se  pudesse eu escrevia durante todo o dia até me fartar, e penso que não me fartava nem aí.

- Bem, não é um disco – a dona Esmeralda, com o pano muito bem dobrado a viajar agarrado ao corrimão paralelo ao balcão das sobremesas, a esta hora já vazio, continua – é o canal da meo. É um canal de música e eu ao sábado, enquanto limpo a casa, ponho naquele canal que começa sempre com o Tony Carreira. Gosto muito de música.

Sorri abertamente na palavra música detendo-se quieta com a limpeza por dois segundos, e mostra-me a falta dos dentes que lhe conheço há anos.

O meu café está pronto e eu regresso ao trabalho com a chávena fumegante na mão e a memória das suas palavras de um dia já longínquo, quando alguém lhe perguntou o que faria se ganhasse a lotaria.

- Mandava pôr os dentes que me faltam, filha.
  


E agora vou imitar os blogues simpáticos e desejar um bom fim de semana e ainda deixar uma canção que me faz sorrir a mim, que tenho a sorte de ter os dentes praticamente todos.


06/05/2015

Camelo amarelo de plástico

Devido à ingestão que fiz, ao almoço, de cebola crua picada polvilhada de salsa nos mesmos preparos em cama de grão misturado com atum aos fiapos e ovo cozido disposto em moléculas apartadas umas das outras, mal disposto o ovo, nada ali está inteiro se não se olhar ao grão, creio precisar de ajuda localizada.

Cumpro. Aprovisiono um rebuçado de mentol descascado, potente, branco translúcido, e levo-o, confiante, à boca.

Enquanto o efeito se decide, oiço Beethoven durante dezasseis minutos seguidos e leio pela centésima vez esta semana a inscrição "I love Qatar" que o camelo pequenino, de plástico amarelo, bochechudo (e bochechudo não é fácil de pronunciar com este rebuçado às voltas em emissões gasosas ardentes), tem em exibição permanente em cima da minha secretária.

(a segunda parte do post, a que falta aqui, diluiu-se nos vapores potentes já mencionados, de maneira que o resto da tarde fiquei calada a respirar só pelo nariz, não fosse o camelo amarelo de plástico derreter nos eventuais calores remanescentes e eu gosto muito dele, por acaso gosto)

05/05/2015

Post finalmente pequenino

Portanto é de aproveitar, leve três pague dois. Ai não é.

É, isso sim, o chocolate do post anterior, não demora nada.


Em vez da moeda de dois euros que estava muito suja e pouco fotogénica, está a minha mão para ajudar a estabelecer a ideia do tamanho. Pequenino.

04/05/2015

Cereais muito magros e cheios de fibra

Vai a tarde de trabalho a meio e dou conta de que estou mergulhada numa vontade indomável de comer chocolate, isso e sair para a rua em maio, numa proporção de um para um. Contamos dois zero, por conseguinte levanto-me à minha vontade.

Não levo o carro, uma vez que em dez minutos pequenos (do holandês kleine tien minutentjes ou coisa assim, gosto muito de traduções), em dez minutos pequenos, portanto, chego ao supermercado mais próximo, do outro lado da avenida, todo remodelado, vou a pé, planos ecológicos e saudáveis próprios da minha pessoa, quem me dera não ter medo de ser atropelada por doidos ao volante, caso em que traria a bicicleta todos os dias comigo ao colo.

Atravesso o pátio e olho o meu carro de lado, ficas aí, endireito as costas como manda a professora de dança sempre que olha para mim, e sigo pelo túnel que dá acesso à avenida, um túnel de vento, daqueles bons para testar tubos de pitot, que são uns tubos muito adequados para os aviões, viajam espetados do lado de fora do avião, a medir a velocidade com olhos atentos, um frio dos diabos, é o que é. Adiante.

Isso queria eu, mas do lado de lá do túnel o vento está mesmo desalmado e o meu casaco ficou dentro do gabinete, afinal isto é novembro ou é o maio que se zangou, ó maio olha aí. Abrando o passo e tomo a decisão que me leva de volta precisamente ao meu veículo estacionado e entro no habitáculo protegido e fecho a porta e arrumo o cabelo devolvendo-o ao sítio e estremeço e ponho o cinto e a ordem pode não ter sido esta.

Dois também pequenos minutos depois, estou a estacionar frente ao edifício todo remodelado da grande superfície onde um dia tive um problema solúvel em revolta resignada com uma família de ciganos gordos, digo gordíssimos, e oleosos, sujos, todos os extras incluídos, até posso dizer asquerosos, não adoro ciganos que me oferecem tareias no supermercado, e noto então que já chove como na rua, portanto a minha decisão de poluir a atmosfera para fazer duzentos metros cobre-se de razão e trago seis chocolates mas cinco são pequenos, aliás pequeníssimos, uma embalagem de caramelos com capacidade para fazer crescer água na boca, em qualquer uma, de não se poder parar de comer, nem de esticar este parágrafo, ai jesus, outra de lencinhos húmidos para o rosto do seu bebé, testados dermatologicamente, nunca se sabe, e por fim a cereja no topo do bolo que se traduz num pacote verdadeiramente promissor de cereais do tipo muito magros e cheios de fibra, vulgo muesli, isto para compor a minha imagem, não vá a televisão andar por aí a fazer reportagens sobre os hábitos saudáveis dos portugueses em maio e agora sim, podemos respirar.

(quinze minutos depois...)

-         Dona Esmeralda, deu-me lulas com arroz ao almoço, eu dou-lhe um chocolate, tem aqui, para o caminho – o meu sorriso revela, estou certa, a simpatia que não posso negar nutrir por esta mulher trabalhadora que se levanta às cinco da manhã para apanhar o barco e canta coisas desconhecidas mas muito bem entoadas a meio da tarde enquanto varre o chão da cantina.

-          Tão pequenino?!

Post atrasado do dia da mãe

Hoje o post não é meu. Ou melhor, é. Deu-mo a minha filha mais velha.


"Estou eu sentada no sofá, a passear pelo feed de notícias da minha conta de facebook. Hoje tenho uma quantidade assustadora de senhoras anafadas e sorridentes com os seus filhos no meu feed, é dia da mãe.
 Os rebentos, que neste caso fazem parte dos 427 amigos que compõem o meu facebook, elaboram descrições para os tais retratos, competindo entre eles e descrevendo as demais qualidades da progenitora em questão. Clico em “gosto” numa foto em que reconheço a senhora anafada.
Continuo o scroll e deparo-me com um tipo diferente de post- um rapaz que se revoltou com a quantidade de afeto demonstrado no seu feed; talvez as mães dos seus amigos não sejam só anafadas, talvez tenham também verrugas e bigodinho. Escreve ele – “Dia da mãe? Não vai ser com fotos no facebook que lhe dão o devido valor lol. Eu cá acordei às 17h fui ter com a minha mãe e pedi-lhe para me fazer o almoço, depois dei-lhe um beijinho e disse “quem tem mãe, tem almoço”".
Eu cá concordo com ele, também não vou postar uma fotografia da minha mãe. E porquê? Primeiro, porque me recuso a partilhá-la com os 427 facebokianos que têm acesso ao meu perfil e segundo, porque, tendo eu uma mãe de extrema elegância para exibir, poderia ferir susceptibilidades.
Mas, o problema com que me deparo, é que nunca peço, principalmente às cinco da tarde, para me prepararem o almoço. E, mesmo na hipotética possibilidade de tal acontecer, a minha mãe será a última pessoa à qual irei recorrer com tal pedido - à minha irmã talvez, ao meu pai até, se estiver bem disposto, mas nunca!, nunca à minha mãe. E se não estiver mais ninguém em casa? E se nem tiveres restos para comer? Perguntariam os meus amigos, ou mesmo o já referido facebokiano. Nesse caso, meus caros, quando a preguiça é tanta e não há restos, mais vale voltar para a cama e fingir que a fome não existe. O almoço foi à uma.
Embora não me prepare refeições fora de horas, eu gosto muito da minha mãe e gosto especialmente de lhe dar prendas. Não quer dizer que ela goste muito de as receber, mas eu gosto de as dar. E, apesar de o fazer com gosto, admito que quando era mais pequena, dar prendas do dia da mãe era extremamente fácil e absurdamente mais económico. Passo a explicar: até aos 10 anos todas as crianças são privilegiadas com o fornecimento de ideias e até de material, para a produção em massa das prendas para o dia da mãe: ora um colar de papel colorido, ora uma moldura com conchas, ora um marcador de livro. Tudo isto com a atenta supervisão dos professores, não vá o menino sujar-se! Em caso de verdadeiras dificuldades na realização dos trabalhos manuais, o meu portanto, os professores também intervêm, perguntando só as cores que a mãe do menino prefere.
Eu quando tinha 6 anos tentei diversificar: fiz-lhe uma salada, acordei cedo e, para o pequeno almoço a minha querida mãe teria uma salada, uma salada, porque ela gosta mesmo de salada! Achei que iria gostar. Aprendi então, que as saladas não fazem parte do pequeno almoço, de acordo com a nossa dieta mediterrânea e que tinha que descascar as cenouras antes de as ralar para a saladeira e de lavar a alface e de cortar os tomates em pedacinhos... Depois dessa manhã decidi que as prendas feitas na escola eram perfeitas e que a minha mãe as iria receber, todas!
Mas, um filho cresce e fica sem professores dispostos a ajudar, sim!, que eu bem que perguntei à minha de biologia, mas ela deu uma forte gargalhada na minha cara e nem me respondeu! Fiquei portanto sem saber o que dar à mãe e, já há alguns anos que ela diz que não quer prendas, que já tem tudo. E agora?! O que dá uma filha quase maior e sem dinheiro a uma mãe que diz que não quer prendas e que já tem tudo?! Beijinhos e muitos miminhos? Isso já lhe dei eu a minha vida toda! Torna-se um pouco repetitivo...

Decidi, então, arrumar o armário da casa de banho, lavar a loiça e fazer a cama, deixando o meu quarto no exacto limiar de desarrumação que ambas definimos. Pode ser que ela goste."