a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

26/09/2020

O processo de apalpação

Quando, nas instalações de deteção de metais no aeroporto, alguém passageiro faz o sistema alarmar-se, esse alguém segue para o processo de apalpação, não vá trazer consigo alguma desgraça. Levado a cabo por pessoal especializado funcionário do aeroporto, o processo de apalpação tem um requisito a cumprir: homem apalpa homem e mulher mulher. Esta manhã não alarmei o sistema: levo cinto sem metal, tiro os brincos e o relógio, os All Star muito lindos (não sei se já disse) que levo nos pés não apitam - tudo preparos meus conhecidos para conseguir não ficar ali de braços à Cristo-rei a ser apalpada. Portanto, o que nos traz aqui hoje é outro gatilho, vamos lá ver. 

- Quantas mulheres tens aí nessa máquina? - lança pelo ar um funcionário homem para a colega mulher que, nesta máquina onde vou eu a passar passageira, visualiza os conteúdos das malas e cenas afins num ecrã. 
- Aqui? - olha a colega mulher em redor a contar as mulheres-colegas - quatro! 
- Então dá cá duas! Aqui não temos nenhuma! 
(e se uma mulher faz muita falta onde quer que seja, duas idem) 
Prossegui o meu caminho sem observar a transferência sexista que se anunciava, concluindo facilmente que alguma passageira fez alarmar a máquina do lado e não havia quem tivesse as competências requeridas que a pudesse apalpar, ou seja, uma falha na gestão dos recursos (tss).
Como se irá resolver este requisito do processo de apalpação quando alguém se lembrar de pôr @ no lugar dos "a" e/ou dos "o" indefinindo sexo e género para ficarmos todos contentes e abrangidos é o que eu acho divertido.

24/09/2020

Um açaime, digo eu

Então liguei à GNR local e passei a mensagem. Expliquei, por exemplo, que em toda a minha vida é a primeira vez que tenho medo de um cão. Ele é altíssimo, descoordenado nos movimentos, penso que até perturbado na sua mente canina e – comprovado agora – morde as pessoas. Anda solto pela aldeia da serra, hoje em dia muito mais habitada, a horas em que a sua dona decide serem boas: os moradores estarão instalados no sofá a ver novelas muito cedo. Tanto que ela se engana. No dia em que corri para compor melhor a distância entre mim e o cão, os seus dentes cravados na minha memória quente, caí num monte de areia e enchi os sapatos dela. Por isso liguei eu agora à GNR local, uma vez que de todos os moradores da aldeia serei praticamente a única nativa e portanto dominando melhorzinho o português. Incluí, até, na minha súplica, a pergunta relativa a querermos nós (o agente da GNR meu interlocutor e eu) que o cão primeiro magoe, por exemplo, uma criança pequena a sério – visto que por enquanto só mordeu - ou vamos fazer já alguma coisa para evitar? Isto resultou. Os agentes visitaram no mesmo dia a dona do cão. Se a visita surtiu efeito não se falará mais deste cão aqui. Caso contrário é provável. 

05/09/2020

Uma viagem à feira do livro

Há seis anos, mais ou menos por esta altura, perguntou-me "mãe, posso casar com o José Luís Peixoto?". Hoje, na Feira do Livro, ficámos ambas a vê-lo assinar autógrafos. Perguntei-lhe, quando percebemos que era o dia do seu aniversário, ela não arredando pé do posto de observação, "queres lá ir, filha?".
- Não, tenho vergonha. Ele até já me conhece, mãe.
De tantas vezes ela o abordou. Depois suspirou, voltou-se enfim determinada a continuar caminho, e disse "Ai... ele é tão charmoso!".

(Aproveito para recomendar, para quem não leu, "Dentro do segredo - uma viagem à Coreia do Norte")

04/09/2020

A patine é certa como os impostos e não só (deve ser da idade)

O passadiço que corre quieto sobre o pouco de rio e que na primavera sofreu de uma falha nas tábuas transversais do piso conferindo um perigo ao local, já exibe o remendo que levou este verão em completo acabamento. Por diligência, alguém foi e, a tábua toda novinha era julho, a instalou bem ali, inserida entre as outras, calminhas, sabidas de embeber vapores ao caldo fluvial. Mas ela passou metade do verão espetando-se para sul, uma prancha toda para nada, exagerando num comprimento estimado por excesso. E eis que, já o sol nos dá setembro, o novo inserto de tábua (não pode uma pessoa ausentar-se três semanas) não só está cortada enfim na medida exata, como também revela o início do seu percurso de aproximação às vizinhas em cor e patine! Não fotografei o processo. Doem-me os olhos de muito os enfiar no pequeno ecrã. Olhei antes lá em baixo, toda a vez, os pequenos caranguejos aflitos, sobre leito de lodo morno, sempre laterais na abordagem, eu gostando assim muito deles e sem saber lá porquê.