a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 16

Cá temos mais uma contribuição da convidada especial, ma petite soeur, fait attention!

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Com certeza que, assim como eu, os meus amigos condutores que se deslocam em autoestrada com três faixas já repararam num flagelo chamado "condutores de faixa do meio". 

É bastante antiga a fama que têm os molengas de estrada de andar a pisar ovos. Em situações extremas, já sem paciência, o meu avô dizia que eles estavam a separar a clara da gema, o que eu sempre achei um piadão, essencialmente porque sentido de humor não era uma das qualidades do meu avô.

Então, já repararam certamente que esses condutores super zen, por vezes, circulam calmamente na faixa da direita, cumprindo (e muito bem) o limite de velocidade em que se sentem confortáveis (ou seja, MEGA devagar!) e subitamente, assim que veem uma saída, se atiram para a faixa do meio, em pânico que a faixa da direita sucumba e os leve a um universo paralelo em chamas, governado por hienas gigantes e famintas, ou coisa que o valha. 

Certo dia, um desses condutores, em plena A5, além de recear ser engolido pela faixa da direita, precaveu-se e, depois de se atirar com toda a pujança para a faixa do meio, logo em seguida, fez o mesmo para a da esquerda, onde eu estava, não fosse acontecer o mesmo à do meio, provocando, no meu pobre peito uma taquicardia que esteve a um danoninho de me levar à urgência do hospital mais próximo. E depois lá continuou, calma e alegremente, em velocidade tartaruga, em direção ao seu destino, na faixa da esquerda. E eu fiquei a hiper ventilar e a controlar o ataque de pânico que o moço (ou moça, não sei) me provocou. 

Assim, envio por este meio uma carta aberta aos adeptos do pisamento de ovo nas estradas portuguesas. Afinal, as redes sociais são um ótimo meio para estes desabafos. 

Então, aqui vai:

Caro amigo comparsa condutor que pratica ioga ao volante em plena autoestrada,

Vamos lá a ver, se a dita estrada está equipada com três faixas, há que utilizá-las à vontadinha, mas convenientemente. A faixa da direita é para circular a malta toda, que vive em estado permanente de calma (que eu muito admiro e invejo), a qualquer hora do dia ou da noite, dando oportunidade a toda a família de usufruir das belas paisagens portuguesas com todo o pormenor. Mas não receie, caro amigo. A faixa da direita não se evapora como álcool em dias de verão. Se o meu amigo estiver atento às setas que aparecem desenhadas no asfalto, as mesmas indicam quando há uma faixa que vai acabar, e tal não acontece assim, num estalar de dedos ou num piscar de olhos... a coisa dá-se com calma. E há tempo para mudar de faixa com toda a segurança. Muito tempo aliás, tendo em conta a velocidade a que o meu amigo se desloca. Assim sendo, atente às indicações que lhe são fornecidas no chão ou nas tabuletas que são tão úteis a todos e deixe-se estar na sua faixa sem se atirar para cima do resto do pessoal que não partilha dessa sua qualidade de circular com toda a calma do mundo.
Pode ser?

Pronto, já desabafei. A liberdade de expressão é fixe. Obrigada, Capitães de Abril!

Catarina Rodrigues

29/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 14

Se o novo coronavírus veio tirar-nos saúde, temporária ou definitivamente, também veio fazer suceder o contrário.
Quantos de nós fomos já poupados desde o início do isolamento, durante o qual as estradas ficaram livres de trânsito, de uma elevada taxa de acidentes e, consequentemente, de tantos mortos e feridos?  

28/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 13

- Ó mãe, porque é que vais comer queijo? Isso não te faz bem! Come húmus, eu fiz húmus!
Estou cortando uma fatia de pão com a embalagem de queijo flamengo fatiado que veio comigo das compras ali ao lado a ouvir a minha filha Saminhas que está totalmente convertida às modernices da alimentação.
- Filha, ainda é de manhã. O húmus é bom ao almoço, não de manhã. Agora é hora de eu querer queijo no pão.
- Mas mãe! Se eu faço coisas boas é para tu comeres e o queijo não te faz bem!
Ora o queijo e eu sempre fomos bons amigos e isto já lá vão imensos anos, mas tudo bem, é a juventude.
- Ainda por cima – resolvi pelo menos defender-nos, a mim e ao queijo – este queijo é sem glúten! Comprei assim para tu ficares mais contente e também comeres se quiseres.
- Sem glúten, mãe?...
- Sim, sem glúten!… (olhei para a embalagem) Ah… é sem lactose, afinal.
- Já pareces a Conceição a dizer “leite sem glúten”… - a Conceição é uma senhora de certa idade que assume uma postura descontextualizada da atualidade no entender de Saminhas.
- Mas o queijo, as coisas são como são, também não tem glúten! – defendo-me ainda, completa e totalmente cheia de razão.

27/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 12


Ontem fazia uma semana que tinha saído de casa pela última vez. Fui ao quarto e coloquei um par de brincos nas orelhas. Calcei os sapatos all-star, que ainda adoro para o caso de ser possível a palermice de adorar sapatos, vesti o meu casaco castanho curto de meia-estação como diz a minha mãe, e saí para a rua. Não optei por ir de carro. Precisava com muita veemência de caminhar. Por isso, escolhi o supermercado que está mais longe de entre os que estão perto. Os sacos de compras destinados a trazer as minhas vão dobrados dentro da mochila que levo às costas e que tem a sorte de ter a mesma cor que os sapatos (lindos). Ou seja, ninguém diria facilmente ao que eu ia. Então isto fez-me sentir de maneira diferente. Como se alguém me pudesse ver como uma dissidente, uma desrespeitadora de regras pela sanidade de todos nós, que é isso na rua? Ainda por cima, a meio do caminho, o carro comunitário passa por mim com o seu altifalante maluco emitindo o #fiqueemcasa. Mas paciência, agora estou indo. Cruzei-me com duas pessoas, uma de cada vez, que corriam de correr por gosto. Essas obviamente em comportamento permitido. Quando faço o caminho de regresso, que é a subir, com os dois sacos um bocado pesados, um em cada mão, sinto-me bem melhor. O sol batia-me na cara e eu engoli-o por todos os poros que estavam ao ar livre, disso podemos estar certos. Cruzo-me agora com uma mulher, talvez da minha idade, que desce a rua com um saco de compras vazio ao ombro e as mãos dentro de luvas de borracha. Assim, sabemos ao que ela vai. Sorrimos uma para a outra. (Sinto-me mais próxima dos outros.) Chegando a casa, pousei os sacos. Enquanto removia as minhas próprias luvas, que também merecem entrar no post, instruí a minha filha em como arrumar as compras com um pano embebido em sabão. Logo a seguir, tirei os sapatos dos pés e os brincos das orelhas. Até para a semana, queridos.

26/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 11

Mais uma contribuição da convidada especial para o post do dia!

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Conceito de “Banho rápido”

Versão filha:
- Mãe, vou tomar banho!
Passadas duas horas… a água ainda corre, a música está aos altos gritos e, dentro da casa de banho, está um nevoeiro digno do regresso de D. Sebastião. 
- Já chega, filha! Estás aí há montes de tempo!
- ESTOU MESMO A SAIIIIIR!!! (aos gritos, por causa da música)
Meia hora depois, a água desliga-se (e a música regressa a um volume aceitável).

Versão filho:
- Mãe, vou tomar um banho bué fast!
Passadas duas horas… (ainda não entrou, está meio despido a dar toques na bola e a fintar os gatos e as luzes da casa de banho, quarto e arredores estão todas acesas)
- Filhote, não ias tomar banho?
- Estou mesmo a iiiiir!
Meia hora depois, a água liga-se. Passados 10 minutos, desliga-se (e as luzes mantêm-se todas acesas).

Defendo a aplicação de uma “Taxa adolescente” nas faturas de água e luz, com um desconto de 10% (e já agora consultas de psicologia para a mãe incluídas).

Catarina Rodrigues

25/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 10

O que é isso de quebrar correntes bonitas? Eu não! De maneira que cá temos a minha bela orquídea, sobrevivente dos pulgões que comeram as outras, do pó das obras e dos assaltos múltiplos. Pode não ter sido suficientemente valiosa para ser roubada, mas que é capaz de em si nos trazer a riqueza da primavera, ai ela é.

Junta-se, então, à Sucessora da Julieta, à Violeta e à não-se-sabe-o-nome este belo exemplar, cuja primeira flor abriu há uns quê, três dias, está fresquinha.


24/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 9

Pieter De Hooch - Pintor holandês
(n. 20 de dezembro de 1629, Roterdão; m. 24 de março de 1684, Amesterdão)

Mensagem que fotografei ao lado do quadro acima, no Museu Rijks em Amesterdão, em maio de 2014. A tradução é minha e feita um bocadinho à pressa:

"Pode ser difícil ver beleza e interesse nas coisas que temos de fazer todos os dias e nos ambientes em que vivemos. Temos de ir para os empregos, pagar as contas, limpar as casas e mantê-las a funcionar e ressentimo-nos profundamente do que exigem de nós. Parecem desviar-nos das nossas ambições reais, de conseguirmos uma vida melhor. Achamos que a arte e as galerias de arte estão longe de tudo isto: são para um dia livre, para as férias.
O próprio armário da roupa de casa podia facilmente ficar ressentido. É uma materialização do que poderia, em circunstâncias desfavoráveis, ser visto como aborrecido, banal, repetitivo – mesmo nada sexy. Mas a imagem toca-nos porque reconhecemos a verdade da sua mensagem. Se ao menos pudéssemos, como De Hooch, saber reconhecer o valor da rotina diária, aliviar-nos-íamos de muitos dos nossos fardos. Ele dá voz à atitude certa: os grandes temas da vida – a procura de prosperidade, felicidade, bons relacionamentos – estão sempre fundados na forma como encaramos as pequenas coisas. A estátua por cima da porta é uma pista. Ela representa dinheiro, amor, estatuto, vigor, aventura. Cuidar da roupa de casa (e tudo o que isso representa) não é incompatível com estas esperanças grandiosas. Pelo contrário, é o caminho para elas. Podemos aprender a ver quão fascinantes são aqueles que cuidam das pequenas coisas, de nós inclusivamente.
Esta é uma mensagem à qual dificilmente aderimos, porque nos ensinam constantemente outra coisa. Este quadro é pequeno num mundo grande e barulhento – mas o facto de tantas pessoas o apreciarem traz esperança; significa que sabemos, no fundo sabemos, que o que De Hooch estava a querer dizer é importante.
Doença
O trabalho vulgar é de escravo.
Eu quero é aparecer na televisão."

23/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 8

Dei uma volta pela casa (tão grande que só a esta hora é que o post sai, onde é que já se viu) em busca de "mais" "uma novidade" para fazer o referido e ainda vamos no dia 8.

É certo que temos a máquina da loiça lavando direitinho ao fim da jorna caseira e com uma configuração interna diferente a cada ciclo, evidentemente, mas considero pouco. Há o estendal da roupa, mais colorido e até, enquanto a roupa está fresquinha, perfumado. Também aqui muda a disposição das peças e é numa boa frequência, o cesto já não tem hipótese de encher devido ao sol e ao tempo que se tem para dar vazão, mas idem. Então falar do quê? Pela janela a paisagem muda é nada. Carros que não passam, gente que não circula, apenas um ou outro cão com dono, isso sim.

É que ainda por cima, também não temos o papagaio do quiosque das flores. O insistente palrador que sempre vinha com a mesma conversa alto e bom som para quem quisesse ouvir e quem não quisesse também. A única e mínima perturbação no estado das coisas é ter-me chegado uma dúvida com relação a ele. Estará o bicho fechado dentro do quiosque das flores dia e noite como antes ficava só de noite ou a sua dona, sim dona, tê-lo-á levado empoleirado para outro lugar?

Aqui chegados, temos três vezes a palavra dono e dona relativa a animais de companhia (cinco). E não tutora, falo por mim. E agora?

22/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 7

Mais uma contribuição da convidada especial, que hoje nos traz um subconvidado especial!

(não sei qual é a graça de pôr gatos no blogue, tss tss, esses sim devem andar à solta, ora)

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Se o meu gato tivesse Facebook, esta seria a sua foto de perfil.


Catarina Rodrigues

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(náo sei se lhe diga que esta foto de gato! já era de perfil ainda os avós do rapaz que inventou o facebook não tinham nascido... aprende-se muito com aquilo, aprende)

21/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 6

Não sei se terá muito interesse, mas queria dizer que o meu rato caiu de um modo diferente no chão do Cliente Grande. Isto claro que se deu noutros tempos. Atualmente vou ao Cliente Grande sem sair de casa. Nesse feliz ido dia, estávamos o rato referido e a minha pessoa em presença de alguém lá do meu Cliente Grande que viu o processo ocorrer e disse, ai veja lá o rato. Eu ver vi, mas não serviu de nada. O pobre rato lá morreu. Não foi das pilhas que se tivessem exaurido ou desajustado nos alvéolos delas, como em vida acontecia, mas sim das peças que não aguentaram o tombo. Então uma pessoa vai e faz o quê? Isso: compra um rato novo. Assim foi numa loja perto de mim e, ainda, nesses outros tempos. Só que o novo acessório informático vem estranho e não há mesa, superfície ou tapete específico que lhe agrade. A verdade é que isto me trapalha os movimentos e o trabalho não espera por caprichos de ratinhos novos. Tentei de todas as cores e reflexos, texturas, as superfícies. Sem sucesso. Só que devido a nos encontrarmos agora em tempos diferentes, ir à busca de um novo rato mais cooperante deixou de ser prático. Antes, porém, de me dedicar às pesquisas online de ratos para entrega ao domicílio, ainda fui jogar uma última cartada e ofereci-lhe mais uma superfície especial para ele experimentar e que é a contracapa da minha agenda não eletrónica (apesar de ter eletrões nela, muitos). E não é que ele gostou? Sim! Está outro, trabalha e tudo! A vantagem é que lá poupei uns trocos que noutros tempos já teria, entretanto, gasto. A única situação é só poder usar a agenda nos momentos em que o referido acessório faz as suas pausas para descanso. Mas isso também não tem mal. Nem mal nem muito interesse, mesmo.

20/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 5

- Precisas de ajuda aí no teu trabalho? - perguntava-me ela à distância, há dias, sabendo que ando a rebentar de trabalho por outros motivos.
- Precisar precisava, mas dado que não dá, que tal se me ajudasses noutra tarefa? - respondo eu também à distância.

A minha irmã acedeu e já começou a mandar contribuições para o movimento em vigor.
(Entretanto mandou dizer, mesmo sem ninguém lhe pedir opinião, que não concorda com isto de eu soltar os avós e agora ainda menos, etc. Só digo que é preciso ter cuidado com ela.)

Mas cá vai.

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Em época de isolamento, hoje fui fazer uma caminhada. Sem ajuntamentos, claro!

Peguei nos ténis com teias de aranha, no smartwatch que ressonava dentro da gaveta da mesa de cabeceira, acordei os músculos que se julgavam de férias nas Maldivas e lá fui eu.

Não foi uma longa caminhada, mas, neste momento, tenho o smartwatch a fumegar de cansaço e os músculos em protesto, a organizar uma manifestação reclamando excesso de trabalho.


Catarina Rodrigues

19/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 4

Hoje foi dia de despejar os caixotes de lixo amarelos e os azuis no bairro. Se antes o ruído inerente se dissolvia no bulício da cidade em redor, hoje destaca-se. Estivemos, então, ambas à janela, lado a lado a observar o processo. Observar e admirar.

Foi aí que uma de nós fotografou a outra.


Além disso, posteriormente, o google veio e quis fazer uns efeitos no resultado. Tanto que fez mesmo. Ora eu vá lá desta vez deixei.

(Ja tinha o post na calha quando leio o comentário da Cláudia Filipa - unimos, portanto, as vozes.)

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Para amanhã espera-se aqui, neste blogue, uma convidada especial contribuindo com o post diário!

Teaser:

"Ó Susana, mas por que soltaste os [nossos] avós?..."

18/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 3

Os meus dias de trabalho têm começado mais cedo por outras razões, que também as há. Antes de pegar ao serviço, cumpro o ritual de abrir as janelas, deixando entrar a luz e também o ar da rua. Nos últimos dias, o ar tem vindo quieto, como se estivesse oco. Envolto num silêncio espantado, o ar da rua tem entrado, ainda assim, polvilhado pelo canto primaveril de um ou dois melros inocentes. Hoje, porém, trouxe-me um presente maior. O ruído de um martelar alternado com o do manusear firme de chapas de metal e suplementado pelo rumor enérgico de uma máquina atarefada. Nos interstícios destas notas, ainda um ou outro comando de voz humana. Em suma, um agora mesmo promovido a agradável barulho de obras.


(quando nos imaginamos perante uma escada, estamos muito mais prontos a subi-la do que a descê-la)

17/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 2


"As intermitências do trânsito"

E no dia seguinte, ninguém esteve em filas de trânsito.


Nova coleção primavera-verão 2020 de trazer por casa. 

(a sombra de orelha de gato é fruto de um extremo interesse por todas as lides)

16/03/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 1


Se
entre o zero e o um há uma quantidade infinita de números,
no olho de um malmequer há animais mínimos vivendo à grande e
de uma mancha amarela se pode fazer o sol como terá dito Picasso,

vamos a isto.

Primeiro post: um retrato feito à moda do promotor do desafio, Pipoco Mais Salgado.



13/03/2020

Fora da caixa

Depois de insistentes investidas pelo supermercado afora ou adentro (já tinha dito) na busca de encontrar o siroop, uma espécie de xarope com que se besunta as panquecas e disso se pode fazer um jantar se se quiser, dou finalmente com ele junto do açúcar e complementos para bolos. Como só faltava recolher este produto da lista que levo, daí me encaminho para a caixa. Nesta pacata e pequena cidade holandesa a chegar-se à fronteira alemã, o novo coronavírus se entrou ninguém deu por ele. As prateleiras que visitei no encalço do siroop e não só, o siroop destinado ao meu próprio chá a ver se lhe tira o desenxabido, continuam como se nada fosse, cheias, abastecidas. Por exemplo, as etiquetas das promoções em vigor ostentam a sua existência bastante habitual. Ora chegando a minha vez na caixa, onde já estamos, introduzo o cartão multibanco na ranhura do terminal de pagamento. Mas o cartão, destoando do contexto costumeiro em que nos inserimos até aqui, pagar não pagou. Os meus olhos pousados nas familiares palavras que um bitezito inteligente dele faz ativar na língua portuguesa e se exibem no visor, “AGUARDE POR FAVOR” aguardam obedientes o desfecho e o desfecho não vem. Diz a moça da caixa que o meu cartão se calhar não dá naquela máquina, vendo agora que ele tem uma cor estrangeira. Eu afiancei que sim, o cartão funciona sempre, que ainda há dez minutos tinha feito disso uma demonstração em outra loja perto de si. Ela chamou pelo interfone a gerente ou alguém desse tipo. A gerente veio num segundo (detalhe que impressiona qualquer pessoa, eu acho) e olhou para o meu cartão de cor estrangeira tendo de seguida levantado as mesmas suspeitas que a moça da caixa. Ah, esse cartão não sei quê. Eu repito no meu esburacado holandês que o cartão tem sido competente em toda a gama de caixas multibanco destas bandas. A gerente foi-se embora para outro lado dizendo coisas profissionais que eu não entendi. A moça da caixa também falou e depois chamou nova gerente pelo interfone. A nova gerente demorou outro segundo a aparecer (incrível, também achei). Entretanto, eu olho as pessoas na fila atrás de mim, que cresce. A nova gerente torna a pôr em causa o cartão e o seu aspeto estrangeiro. Eu – tive oportunidade de melhorar o esburacado discurso – repeti, tal tal, defendendo o cartão. Esta segunda gerente quis agora ler a mensagem no visor do terminal multibanco, ainda em modo de encravado. “AGUARDE POR FAVOR”. Então tem um recuo de cabeça, um levantar de sobrancelhas e um esgar de lábios. Ah, está noutra língua!, exclama. Está na minha língua, digo. Ao menos haja aqui qualquer coisa do meu lado, e este terminalzinho de pagamento, c’amooor, só lhe falta começar a tratar o meu cartão por tu! Mas isto eu não digo, trata-se de um pensamento (na caixa). Pago pois com dinheiro, enquanto as pessoas na fila atrás de mim são despachadas para outras caixas. 
Depois está-se mesmo a ver que ao caminhar para o estacionamento, encaixar a mala de compras na bicicleta e pedalar para casa, levo os pensamentos já todos fora da caixa. É espetacular.

06/03/2020

Veruska

A senhora que aparece ao final da tarde para limpar os gabinetes no Cliente Grande é cidadã russa e faz-se anunciar com estrondo de balde, o balde com rodas. Usa o cabelo apanhado com ganchos que parecem aflitos para sair dali, mas devem ter medo. Fala bem alto em cima das suas socas crocs e numa língua difícil que vem com mistura. O meu problema - e claro que é isto que a traz aqui ao blogue - é ela ser suficientemente cómica para me pôr em cuidados no sentido de evitar risos inapropriados no contexto ali. Hoje, quando a minha cliente lhe disse "Até amanhã, Veruska" - penso eu que tentando obviar o assunto e aliviar-nos da banda sonora de repente ali instalada - ela prontamente corrige "Até 'manhã, não! Até tarde, eu venho só de tarde!".

E de facto assim é, confirma-se o caso.

04/03/2020

Ia escrever sobre o rato coitadinho que hoje caiu ao chão e morreu, mas num lugar querido

Não querendo ser insistente ou aborrecer alguém, cá estamos de novo.

Uma certa tarde de um junho recente, encarei de frente, sem medo, uma estante de livros mais para o pequeno e aí, inclinando o suficiente a cabeça, sorvi-lhes o suco das lombadas. Digo sorvi porque foi essa a verdade embora em silêncio. Rodando a estante, que era das de rodar, mas pouco, fui andando assim até que um dos títulos se quis atravessar no processo de aspiração - como dizer o ato de sorver em substantivo? portanto aspiração serve - então vou e alcanço-o com a mão para o arrancar dali. Abro-o. Era um livro de poesia, precisamente tal como eu já desconfiava. Uma poesia desconhecida para mim, mas isso são muitas muitas. Dei os olhos à primeira linha e depois sucessivamente até engolir ali mesmo em pé o poema todo sobre a página, sem mastigar. Caiu-me como uma pedra. A pancada deu-se em seco no fundo da minha alma doente do calor e do junho. Ou será doente de não saber digerir um poemazinho que se estende largo sobre uma página de um livro mais para o pequeno saído de uma estante que roda mas pouco? É tramado.

(enfiei o metidinho do livro no lugar dele e saí dali a resmungar mas confirmei que os poemas têm eles próprios alma, cada um a sua, querem existir e escolhem quem os vai escrever - ah confirmei!)

Pois se estamos dois marços à frente e temos tanta atualidade de que falar, por que veio este assunto meter-se onde ninguém o chamou?


02/03/2020

A jardineira

Não se trata daquele prato com batatas, ervilhas, cenouras e carne que eu comi uns milhares de vezes na infância e que não apreciava especialmente devido à carne, às ervilhas e às cenouras. Só as batatas é que ainda vá lá. Não se trata. Trata-se, antes, da nova jardineira estagiária que pretendia parece que realizar um pequeno projeto de jardinagem consistindo em transplantar o exemplar exótico e raro que eu trouxe para me alindar a sala no pós-obras das quais já se falou aqui um bocado. A jovem jardineira procedeu primeiro a uma avaliação da envergadura da obra, depois meteu mãos ao trabalho, mãos quer dizer, é uma maneira de falar, ora ela escavou, escavou, a seguir criou distanciamento para avaliar o resultado (isto concluo eu, já que ela é de poucas falas) e depois escondeu-se, porquê não se sabe. Parece um mistério.
A transplantação não foi bem sucedida, mas o exemplar exótico experimentou ângulos diferentes, alternativos (que eu, receosa, me apressei a corrigir).

Isto serão, penso eu, saudades da terra. 

Segue a reportagem em imagens para alindar agora aqui.