a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/01/2017

Mais medíocres à chuva

Hoje de manhã precisava mesmo de atravessar o rio e escolhi a ponte vinte e cinco de abril para o efeito. No caminho que tomei até lá, ora à chuva ora ao sol ora à chuva ora ao sol, havia muito congestionamento de tráfego como já se espera que suceda, mas hoje foi pior: fui abrandando cada vez mais até parar e parada para ali ficar. Claro que tinha havido um acidente lá à frente feito por condutores que também queriam chegar à ponte. Compreendi então que a meia hora de avanço que eu levava para o início da reunião ia ser ali toda consumidinha e talvez mesmo ultrapassada, pelo não andar da carruagem para dizer as coisas como deve ser. Aproveito pois para fazer um telefonema que já tardava, ligo para a Carla. E como foi a Carla a primeira pessoa com quem falei hoje, descobrimos as duas ao mesmo tempo que estou sem voz; veio de noite uma rouquidão para mim sem eu saber. Portanto, ai a tua voz!, ai a minha voz!, em uníssono. A Carla gosta tanto da dona Esmeralda como eu, mas talvez ela goste um bocadinho mais, porque continua lá no trabalho a almoçar da cantina onde a dona Esmeralda serve os pratos e eu não, eu estou parada nesta via de não acesso temporário a lado nenhum, aquém rio, à espera de escoar para lá do acidente. Portanto falámos, quer dizer, eu arranhei, ela falou, durante um bocado. Como está a dona Esmeralda? A dona Esmeralda, para além de ter pintado o cabelo, e ter mudado de óculos, ouve lá isto, prepara-me a Carla, agora tem facebook! A dona Esmeralda!
- A sério, Carla? Facebook?
- A sério, e queria pedir-me amizade lá no facebook, mas eu disse-lhe dona Esmeralda sua amiga já eu sou e além disso não tenho facebook.

Desligámos e pouco depois cruzo a zona do acidente, dois ou três ou quatro carros acidentados, sei lá, um estardalhaço tão triste. Acelero finalmente, entro na ponte, assisto a outro estardalhaço tão triste de um outro acidente, este no sentido contrário ao meu, vamos lá todos parar a olhar e ficar mais um bocadinho na ponte, e chego à reunião com meia hora de atraso. Depois de mim muito mais gente chegou, todos fora de horas, todos foi a ponte. Foi a ponte não: foi nós sermos condutores medíocres ao sol e ainda mais medíocres à chuva.

Isto não disse eu na reunião, mas digo aqui, que no blogue a voz está boa: em vez de andarem para aí a fazer os cartazes inúteis do post anterior, criavam escolas de reciclagem da carta de condução. Com aulas obrigatórias. Burros.

24/01/2017

Vamos lá para a frente

Vou a conduzir o meu carro pela avenida fora, até podemos dizer que é a avenida da república porque assim toda a gente a visualiza, é uma avenida onde já se podem encontrar uns dois ou três prédios bonitos, bo-ni-tos, coisa tão rara no restante da cidade, mas não era isto, era que vou a conduzir, já dissemos, pela avenida da república fora. Levo no carro o rádio ligado, o som a viajar dentro do habitáculo à velocidade lá dele (isto faz-me lembrar alguém) e nós vamos a menos de cinquenta, evidentemente, que eu tenho filhas para criar, quer dizer, acabar de criar, que começadas vê-se logo que já estão as minhas filhas, e está o locutor a anunciar situações em que estará patente ao público, em futuro próximo, música feita por jovens; são os nossos jovens músicos. Esta é a parte em que vejo à boca do túnel onde vou a entrar com o carro a cinquenta à hora, ou menos, e a música a muito mais, e agora somamos ou subtraímos as velocidades?, e vislumbro um cartaz gi-gan-te, tipo a toda a largura do túnel, ou seja, a valer aí uns dois carros lado a lado mais o intervalo, todo ele, o cartaz, de um vermelho em fundo e letras para aí pretas ou brancas, isso já não sei, dizendo mal de qualquer coisa que o governo fez, não retive devido à velocidade resultante que aqui vai ou então à ausência de respeito que levo por cartazes destes, do tipo oposição política a mal dizer o poder atual, como aliás é costume sejam quem forem uns e outro, a importantíssima absoluta e imprescindível prioridade política é dizer mal sempre e sem parar.

E nós também não paramos, que vamos dentro do carro, o carro já dentro do túnel, o cartaz lá para trás, os jovens músicos lá para a frente.


(Portanto: enquanto uns chapinham em maledicência e deitam dinheiro fora a fazer cartazes inúteis, o chamado desperdício visual, poluição também - aquilo é para quê?, outros compõem música e vão imprimindo beleza a este mesmo nosso pobre mundo. Bem hajam.)

19/01/2017

Wouldn’t it be good?

A propósito de uma coisa qualquer, lembrei-me disto (que vou contar a seguir). Primeiro hesitei, não, essa história não interessa nada, o blogue não precisa saber. Lá isso não precisa. Mas que a vida nos traz histórias assim, traz, confirmas? Absolutamente, traz. Então porque não?

Quando era adolescente ia de vez em quando a festas nas quais dançava até ao último acorde, dançava muito. Lembro-me de Queen (Crazy Little Thing Called Love), SuperTramp (It’s Raining Again), de Rod Stewart (Da Ya Think I’m Sexy?), The Cars (Tonight She Comes), lembro-me do Nick Kershaw (Wouldn’t it be good?), dançava isto tudo e muito mais; não dançava os slows (havia os slows). Nos slows ficava sentada. Não para descansar que disso eu não carecia, mas porque a ideia era virem os rapazes pedir a dança e eles não vinham. Eu, pelo meu lado, nunca me atrevi a ir tentar a sorte, porque podia muito bem ser azar e não queria levar uma risada na cara. Portanto ficava sentada até acabarem os slows. Mas houve uma vez, numa festa em casa de uns amigos – atenção - dos meus pais - aquilo era festa com pais mas os pais ficavam noutra sala - em que um dos rapazes que lá estava se dirigiu para mim logo no início do primeiro slow. E eu cá para os meus botões, olha queres ver que…? E era mesmo: perguntou-me se eu por acaso quereria dançar com ele. Disse que sim, evidentemente, está aqui uma raridade, etc, fui. Pelo menos aquela dança não a passava sentada como de costume, às vezes até me punha a fingir muito entretida com uma coisa qualquer na palma da minha mão ou na costura da saia, para disfarçar o desapontamento. Enquanto dançávamos o slow, esse rapaz e eu, andava por lá um homem com idade para ser meu pai, ou pai dele, ou seja, fora da sala onde deviam estar todos os pais e afins, e andava a fazer ligações destas: ia buscar um rapaz e levava-o a uma rapariga que estivesse sentada para os pôr a dançar, depois outro e assim sucessivamente, ia emparelhando quem ainda não se tinha emparelhado. Eu estava a achar aquilo pindérico, pífio, não quereria eu ser alvo daqueles arranjinhos nem por nada, mesmo sendo o meu costume aquilo que agora já se sabe, e disse ao meu par este homem é um bocado parvo. Sempre era uma forma de meter conversa para quebrar a falta dela, como é que se faz isto dos slows, não se fala?..., parecia-me esquisito dançar assim sem falar. Ele não respondeu, e eu pensei que talvez não me tivesse ouvido, a música tocava alto. Repeti, mais para encher o vazio de conversa do que por má índole: este homem é um bocado parvo. Nada. Será que ele não ouve bem, este rapaz? Esperei um bocadinho, a dança continuava, conversa nenhuma, o rapaz calado e eu tornei: este homem…
- Este homem é o meu pai.

O resto do slow foi dificílimo e depois desse é fácil adivinhar que fiquei sentada em todos os outros.

16/01/2017

Nesse dia ficou sem carica

Era ainda nitidamente criança quando o meu avô me levou, a mim e às minhas irmãs, a visitar a fábrica da Laranjina C onde também se produzia o Trinaranjus de laranja, nessa altura ainda só de laranja. Eu não gostava lá muito de Trinaranjus, era sem borbulhas, isso é verdade que sim, bebida lisa, fácil de engolir, mas gostava mais um bocadinho de Laranjina C que recebia as borbulhas que o Trinaranjus não tinha, apesar de me fazer lágrimas nos olhos do esforço de beber as borbulhas.

O meu avô conhecia alguém da fábrica e quis levar-nos lá, mostrar-nos como “se fazem coisas”. Eu achei tudo uma sujeira logo à entrada, para começar. Depois, havia tanto barulho que quase não se ouvia nada do que o senhor amigo ou conhecido do meu avô nos estava a dizer, e o sítio também cheirava esquisito; os meus sentidos levaram portanto certo tempo a adaptar-se (não muito).

Deixei de tentar ouvir as explicações do senhor amigo ou conhecido do meu avô quando a minha atenção foi capturada pelos movimentos estranhos que havia ali. Certos, precisos, repetitivos, contínuos também: estranhos. Eram garrafas de Trinaranjus, olá!, que passavam por nós em fila, umas atrás das outras, impossível distingui-las (tipo eram todas iguais), iam com pressa e eu achei-lhes cá uma graça, ainda vazias, alinhadas num tapete rolante, apertadas em calhas, assim claro que não caem. Depois, mais à frente, sigo-as junto à linha, era linha de montagem mas eu isto não sabia porque não ouvia nada do que o senhor amigo ou conhecido do meu avô dizia, sigo-as então junto à linha e mais à frente, já cá estamos, são preenchidas as garrafas com o Trinaranjus de laranja propriamente dito e não é que ficam todas com a quantidade igual, mesmo igualzinha, faz um risquinho contínuo a superfície do Trinaranjus de laranja que se agita ligeiramente nos gargalos dentro das garrafas em fila e em andamento, a sério. Continuamos - venham - ao longo da linha, que agora dá uma curva para trás senão o edifício tinha de ser muito comprido, elas não param, as garrafas, todas direitinhas parece que sabem ao que vão, e é para levarem com a carica na cabeça, olha as caricas!, há uma espécie de braço mecânico, damos-lhe só agora o nome de braço mecânico, que desce a todos os gargalos a enfiar uma carica, tchoncponc, o som já não posso garantir, isto é uma barulheira, mas seria tipo tchoncponc, movimentos tão certinhos, a começar e a parar sempre no mesmo sitio, não se engana o braço mecânico num único gargalo, deve, tchoncponc, ter olhos.

Creio que foi nesse dia que me inaugurei no fascínio por fábricas e hoje de manhã, tantos milhares de manhãs depois, quando observei com atenção os meus óculos novos e me inquiri como teriam sido feitas as hastes, se moldadas, se quê, de um lado pretas do outro transparentes a deixar ver dentro um motivo colorido que não se percebe o que é, lembrei-me daquela visita à fábrica da Laranjina C, pousei os óculos no colo um momento, a dar-me tempo para ir e voltar e agora resta só acrescentar, já que aqui estamos, que nenhuma garrafa daquelas que passaram à minha frente nesse dia ficou sem carica.

(não digo que a minha memória não tenha sido reavivada ao ler isto)

12/01/2017

Noite de lua cheia (um post intragável)

Este blogue está a ficar quase todo fora de moda desde há… bué (com licença). Mas tenho pouco tempo para ele, queria ter mais só que há o telefone esperto que me arrebata os dedos de manhã à noite a espaços, quase me apaixonei, isto desde o dia, eu sei em que dia foi mas não interessa, sei imensas coisas em que dia foi, é estúpido, ninguém vai acreditar em mim, etc, também dou largo tempo ao computador, ele é o meu único colega de trabalho, agora não tenho mais nenhum mas tenho tempo, garantido, para a minha coleção de chávenas de café, às quais só falta é poesia. E afinal estou o quê?! Estou a precisar de mais tempo para desmanchar a árvore de natal completamente (sério, e isto é um post sobre o tempo).

Também me ocorre (ai jesus) - principalmente quando não me lembro doutras coisas - escrever dissertações à vontade sem medo nenhum sobre o que gosto tanto dos outros blogues, um de cada vez, uma dedicação mesmo boa. Só que depois enfim (vou trabalhar).

(hoje há peixe espada para o jantar, mas não sei como)

11/01/2017

Silêncio

Entro numa das carruagens que traz o dois pintado para não calhar na primeira classe e assim estar de acordo com o preço que paguei pelo bilhete de comboio; é de segunda. Está um bocado de frio mas não muito, a neve que caiu há dias nesta parte da Holanda já derreteu. As luvas até acabei de as meter no bolso, fica um alto de lado no casaco que não dá jeito nenhum mas vou já transferir o alto para dentro da mala, é só sentar-me. Estou de volta a casa, a Lisboa, e ainda me faltam uns dois mil quilómetros. A carruagem com o dois pintado do lado de fora que me calhou é a do silêncio. Eu não faço planos de fazer barulho algum durante a viagem que vai durar pouco mais de uma hora, por isso não faz mal ir na carruagem do silêncio e tiro-lhe uma fotografia (para se ver o silêncio). Logo a seguir à fotografia entram duas jovens mulheres muito iguais, que se sentam à minha frente, viradas para mim. Uma de cabelo liso e outra encaracolado, mas é só isso, de resto iguais. Roupa igual, maquiagem muito carregada igual, exclamações iguais, gargalhadas são as mesmas (para não dizer sempre iguais), telemóveis também. Partilham uma excitação, falam sobre alguém, desdenham. Mostram mutuamente assuntos nos respetivos telemóveis, assuntos a que acham muita graça. Parecem umas parvinhas, mas podem não ser. De qualquer modo não se portam de acordo com a carruagem, silêncio. Têm as calças rasgadas nos joelhos, nos quatro joelhos de modo igual, já disse, são iguais. Concluo que trabalham numa loja moderna daquelas que impõe um outfit padrão às empregadas não vá elas quererem andar de calças sem buracos e cara lavada, tipo lanchonete. Ou talvez perfumaria, sabe-se lá. Cá para mim estão a caminho do trabalho, arrumo-as assim. Cada uma delas, nos intervalos das gargalhadas, dá dentadas na respetiva sandes de salmão que desembrulhou da embalagem, também em nada diferentes as sandes. Não se engasgam, não borram o batom, que é marrom. Continuam com as gargalhadas a cada novo ecrã que visualizam uma no telefone da outra. Já estou a ficar farta. Penso: vou dizer-lhes que estamos no silêncio. Mas não foi preciso. Um senhor altíssimo, de cabelo grisalho apanhado num rabo de cavalo e óculos redondos, sai lá de trás e chega aqui à frente dizendo silêncio às barulhentas, e depois aponta para a indicação silêncio. Este senhor quer trabalhar e assim não pode. E eu quero ler. A do cabelo liso pediu desculpa, a outra não. A do cabelo liso baixou o tom, a outra não. A do cabelo liso pôs a embalagem da sandes de salmão no pequeno recipiente para o lixo, a outra deixou a dela em cima da mesa. 

Afinal não eram iguais.

09/01/2017

Muito frio no Peru

- Ó mãe, olha!! que fofo!!! Esta loja no Peru acolhe os cães vadios durante a noite para eles não ficarem na rua ao frio!! – e vejo o olho esquerdo da minha filha mais nova a tremer daquele jeito que acompanha sempre tudo o que é “fofo!”

- Hã?! Qual loja?

- Esta, mãe, no Peru!! Olha aqui no Instagram!!... – e mostra-me a fachada de uma loja iluminada, com vagamente o que parece um cão, ou dois, lá dentro, isto no ecrãzinho do seu telefone.

- No Peru?... Por causa do frio?!

- Sim, no Peru… Turkey não quer dizer Peru?!...

06/01/2017

É menino

Por causa do nevoeiro que Lisboa transpirou todo aquele dia, houve atrasos em muitos voos, incluindo o meu. Uma coisa é por causa doutra, que é: os atrasos na descolagem deviam-se à questão de os aviões não terem aterrado e portanto não estarem presentes; sem lá estar, um aparelho não pode descolar por muito bons motores que tenha. Como a cada mês que passa os bilhetes de avião estão mais baratos e mais baratos e mais baratos, já ultrapassam os do comboio a toda a velocidade e daqui a pouco quem sabe os do autocarro, mas adiante, por serem muito baratos os bilhetes, os respetivos passageiros são muitos muitos e são tratados como se fossem uma massa fluida, una, bastante homogénea, que deve no entanto ocupar cada vez menos espaço, portanto o hangar do terminal dois, aquilo é um hangar, a-b-a-r-r-o-t-a-v-a de gente. Assim pequeno, sujo e esquisito, o dito hangar ofereceu-me apenas superfícies verticais ainda disponíveis às quais me andei a encostar nas duas horas de espera do atrasado voo, foi uma sorte. Havia quem se sentasse ao colo tipo segunda fila e no chão então era mato, como se costuma dizer, portanto a tal massa fluida, homogénea; mas eu aí não, epá não.

Então tive uma ideia: vou comer um pãozinho com queijo, assim tenho uma boa desculpa para me sentar na parca zona das comidas nem que seja dez minutos. Mas comi o pãozinho com queijo em pé, pois comi, porque a zona das comidas estava igual ao resto, porém consegui encostar-me à loja dos lenços a cinco euros que oferecem acho que é um massajador de costas na compra de dois lenços daqueles, muito bom. Em vez de aproveitar a promoção, tive outra ideia: ir à casa de banho. Sempre, talvez, não é, conseguisse sentar-me, vá, dois minutos.

Deixando os detalhes em que encontrei o sanitário à imaginação das pessoas queridas que me leem e ainda aguentam isto, não me sentei, embora tivesse visitado o pequeno compartimento, eu, o meu casaco, o trolley, o computador e o pãozinho com queijo na barriga. Lá fora, na zona comum da lavagem das mãos, ouvi uma voz de mulher elogiar uma barriga de outra, que barriga linda (por falar em barriga). E a da barriga linda dizia pois é, e o meu umbigo está perfeitinho, mesmo lindo. Eu um bocado admirada com aquela conversa, saio do cubículo depois da ginástica necessária à operação, e dou de caras com um bebé todo dentro de uma barriga, o umbigo a olhar para mim, duas mãos ou três, sei lá, a passarem na pele da barriga.
- Está mesmo lindo o meu umbigo, nada saído, nada.
- Pois está, podes crer (mãos a passar a passar), é menino ou menina?
- É menino.

Quanto ao umbigo, confirma-se (eu olhei): nada saído. Saí eu sim dali para fora, logo após lavar as mãos, e fui à procura de mais uma boa ideia para me sentar.