a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

16/01/2017

Nesse dia ficou sem carica

Era ainda nitidamente criança quando o meu avô me levou, a mim e às minhas irmãs, a visitar a fábrica da Laranjina C onde também se produzia o Trinaranjus de laranja, nessa altura ainda só de laranja. Eu não gostava lá muito de Trinaranjus, era sem borbulhas, isso é verdade que sim, bebida lisa, fácil de engolir, mas gostava mais um bocadinho de Laranjina C que recebia as borbulhas que o Trinaranjus não tinha, apesar de me fazer lágrimas nos olhos do esforço de beber as borbulhas.

O meu avô conhecia alguém da fábrica e quis levar-nos lá, mostrar-nos como “se fazem coisas”. Eu achei tudo uma sujeira logo à entrada, para começar. Depois, havia tanto barulho que quase não se ouvia nada do que o senhor amigo ou conhecido do meu avô nos estava a dizer, e o sítio também cheirava esquisito; os meus sentidos levaram portanto certo tempo a adaptar-se (não muito).

Deixei de tentar ouvir as explicações do senhor amigo ou conhecido do meu avô quando a minha atenção foi capturada pelos movimentos estranhos que havia ali. Certos, precisos, repetitivos, contínuos também: estranhos. Eram garrafas de Trinaranjus, olá!, que passavam por nós em fila, umas atrás das outras, impossível distingui-las (tipo eram todas iguais), iam com pressa e eu achei-lhes cá uma graça, ainda vazias, alinhadas num tapete rolante, apertadas em calhas, assim claro que não caem. Depois, mais à frente, sigo-as junto à linha, era linha de montagem mas eu isto não sabia porque não ouvia nada do que o senhor amigo ou conhecido do meu avô dizia, sigo-as então junto à linha e mais à frente, já cá estamos, são preenchidas as garrafas com o Trinaranjus de laranja propriamente dito e não é que ficam todas com a quantidade igual, mesmo igualzinha, faz um risquinho contínuo a superfície do Trinaranjus de laranja que se agita ligeiramente nos gargalos dentro das garrafas em fila e em andamento, a sério. Continuamos - venham - ao longo da linha, que agora dá uma curva para trás senão o edifício tinha de ser muito comprido, elas não param, as garrafas, todas direitinhas parece que sabem ao que vão, e é para levarem com a carica na cabeça, olha as caricas!, há uma espécie de braço mecânico, damos-lhe só agora o nome de braço mecânico, que desce a todos os gargalos a enfiar uma carica, tchoncponc, o som já não posso garantir, isto é uma barulheira, mas seria tipo tchoncponc, movimentos tão certinhos, a começar e a parar sempre no mesmo sitio, não se engana o braço mecânico num único gargalo, deve, tchoncponc, ter olhos.

Creio que foi nesse dia que me inaugurei no fascínio por fábricas e hoje de manhã, tantos milhares de manhãs depois, quando observei com atenção os meus óculos novos e me inquiri como teriam sido feitas as hastes, se moldadas, se quê, de um lado pretas do outro transparentes a deixar ver dentro um motivo colorido que não se percebe o que é, lembrei-me daquela visita à fábrica da Laranjina C, pousei os óculos no colo um momento, a dar-me tempo para ir e voltar e agora resta só acrescentar, já que aqui estamos, que nenhuma garrafa daquelas que passaram à minha frente nesse dia ficou sem carica.

(não digo que a minha memória não tenha sido reavivada ao ler isto)

10 comentários:

  1. fiquei com vontade de beber um trinaranjus...
    de laranja :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. e eu bebo um de limão, à nossa, Manel!

      (deve estar aí um baita dum frio, não?)

      Eliminar
  2. Bolas, Susana... Escreves tão bem que até dá nervos... ;)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bem, NM, mas é com os teus posts que eu me farto de rir...

      E que bom ver-te por aqui. :-)

      Eliminar
  3. Sou um tanto sem graça, eu sei, mas sempre preferi bebidas lisas ( no que a sumos diz respeito). O que vale é que não conheço nenhum grupo ativista nem a favor nem contra... Ou existirá?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não, em princípio os grupos ativistas ainda não se lembraram das bebidas sem borbulhas, tipo Grupo Ativista de Defesa das Borbulhas Expurgadas das Bebidas Que Não as Querem? Acho que não...

      (agora, menina luisa, isso do sem graça é que não, viu? 'tá com nada)

      Eliminar
  4. Gosto de fábricas, das coisas alinhadas num corropio para saírem perfeitas, já sumos, não sou apreciadora, só se forem laranjas espremidas :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Então já somos duas, GM. :-) (a gostar de fábricas)

      E também somos duas a preferir as laranjas espremidas (isso de beber sumos açucarados já larguei há décadas :-))

      Eliminar
  5. e o sumol, que era tudo o que os outros não são? :))
    boa noite, Susana.
    beijinhos,
    Mia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Acho que o Sumol veio depois, nessa altura já não havia a Laranjina C.
      E nunca cheguei a perceber se gostava mais do de laranja se do de ananás.

      Beijinhos, Mia, e boa noite. :-)

      Eliminar