a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/03/2016

Constelação

Admito que me apaixonei por um livrinho de poesia que tomei de um trago e depois de muitos, um de cada vez, ainda não me saciei. Ando com ele. Primeiro passeei-o dentro da mala durante muitas semanas. De vez em quando, à sorrelfa de alguma coisa séria, retirava-o, abria-o na página com vontade de ser lida e tomava o poema. Logo uma torrente de palavras me enchiam a cabeça de sons e alegrias cruzadas ou então de ecos vibrantes, logo me enchia de uma vontade para discorrer uma coisa nova qualquer. Fechava o livro com força; dentro da mala aí, silêncio! Depois de semanas nesta marmelada coada pela luz da tarde, eu tinha de acabar com aquilo. Tentei zangar-me e tirei-o da mala;  levei-o para o meu quarto. Ficou de castigo no topo da pilha mais alta na estante de parede, psiu, sossegado aí. Passaram mais semanas por ele e eu também por ele, eu e paixão por ele, nada. E como nada, julguei-me livre e convidei para jantar a família da minha irmã, de uma irmã, com marido e com dois sobrinhos grandes. No fim do jantar, enquanto corria o café, ouvi-o chamar baixinho lá do castigo, está bem. Fui buscá-lo mas avancei devagar pelo corredor comprido. Retirei-o da pilha mais alta na penumbra do quarto e ele logo se me aconchegou na mão, quieto! De caminho, apanhei os óculos da terceira idade que já preciso de usar muitas vezes e entrei na sala com ele aninhado, trago-o pelo beiço. Sentei-me no meu lugar, abri-o devagar e logo um poemazinho surgiu. Estava vivo. Toquei-lhe as poucas letras, sossega lá tu. Pedi silêncio às pessoas, li. Lendo, ouvi-me cantar, ou foi sussurrar que ouvi, uma voz saiu de mim que não é a minha. Continuei com a voz esquisita e não minha e lembrei-me que ainda não houvera antes enformado poesia para fora, ai mas o que é isto. Eles pareciam não notar (não notavam). Em silêncio ouviram e eu li outro, vivo. E veio outro aos meus lábios (na tal voz, muito estranho) e depois prometi que era o último sem cumprir três vezes. Deitei vários poemas como se beijos falados soprasse, mas isto é uma tolice (só se fosse poesia é que não). Larguei-o ali, abandonei-o, mudámos de assunto.

O livrinho de poesia ficou sobre a mesa desse jantar. Saíram as pessoas, saíram os copos e as chávenas de café, saiu a toalha. Vieram outras pessoas, outros livros, outras conversas e o livrinho continua ali. Encontramo-nos sempre que à mesa me sento, olhamo-nos. Toco a sua capa sem o abrir, suspira (suspiro). Se o abro encontro um poema vivo. Pode ser grande o poema ou pequeno. Está vivo. Abro-o agora. Pede-me para o pôr aqui, para ver quem passa; está bem.

(este livrinho abre-me a mim, hoje volta para o quarto)

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Ideal: I deal

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o peso do inútil no meu peito

o peso no inútil do meu peito

o peso do inútil do meu peito

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METAMORPHOSIS

You become what you feel.


Sónia Balacó, in Constelação

24/03/2016

A poesia num mata moscas com voz

Dona Silvina fazia a limpeza lá do escritório. De dentro da sua pele cor de chocolate de leite, retribuía-nos os bons dias não a sorrir mas a rir. Como se viver agarrada à esfregona, a carregar baldes de água escada acima escada abaixo, de luvas amarelas de borracha, fosse caso para tanta alegria. Eu costumava perguntar-lhe à segunda feira como tinha sido o fim de semana. A resposta era invariável, eu sabia, mas mesmo assim queria ouvi-la: como foi o fim de semana, dona Silvina? e ela, a rir: foi ótimo! Uma vez houve que eu quis saber mais, intrigava-me toda aquela alegria: ótimo como, dona Silvina? Ótimo!, repetiu, no sábado abri as janelas, liguei o rádio bem alto e fiz a limpeza à casa toda, ficou a brilhar (e ria-se)! Dona Silvina conquistou assim o meu coração, que é mais fácil de se abrir para quem anda de esfregona na mão a ter fins de semana ótimos do que para quem exibe punhos de camisas caras e semblante sobranceiramente carregado. Um dia dona Silvina, no caminho para casa, ao atravessar a estrada na passadeira dos peões, foi colhida por um motociclo que depois de a fazer tombar fugiu. Ficou dona Silvina no chão com um pé partido e, depois de um tempo no hospital, um ano em casa a recuperar. O seu lugar nas limpezas lá do escritório foi ocupado, à vez, por várias colegas. Mas dona Silvina recuperou totalmente e regressou. Hoje de manhã, nas suas voltas com a esfregona, aproximou-se da porta envidraçada da cantina, que estava entreaberta, e ouviu uma voz. Parou sem largar a esfregona e pôs-se à escuta. A voz vem de dentro da cantina deserta e dona Silvina verifica através da porta envidraçada que a televisão está desligada. Mas a voz continuava e parecia vir dali, do lugar por cima da outra porta, a que dá para a copa mergulhada na penumbra, por cima da qual está pendurada a lâmpada de matar moscas, azul, sempre acesa e pronta a atacar. Dona Silvina fita a lâmpada: poderá vir dali esta voz?

Quando acabei de beber o café, toquei no vidro do meu telefone e parei o poema falado que encontrei aquidirigido a quem diz não ter tempo para a poesia. Saio da copa a pensar nisto, não apago a luz que não tinha acendido e, através do vidro da porta entreaberta, vejo dona Silvina a olhar para o mata moscas pendurado por cima de mim.

A alegria escolhe quem não só tem tempo para a poesia, como é capaz de a encontrar num mata moscas com voz.

21/03/2016

Uma riqueza de post

- Au! - numa banda desenhada das boas, esta havia de ser a última palavra, palavra não, ditongo, que as bactérias, os micróbios e coisinhas afins todas pequenininhas porém más como tudo diriam antes de falecer numa mesa de hospital.

Isto porque, soube hoje, umas nanoparticulazinhas de ouro, muitas muitas, dispostas lado a lado em camada nanofininha por cima daquelezinhos maléficos acima mencionados, apanham alfinetadas de uma luz específica toda infravermelha (que a gente não vê) e que se lhes atira com total energiazinha. E depois (Au!) o ouro, naqueles nanopedacinhos, que fica excitadinho em partes, enche-se de uns calores repentinos para a situação e dá cabo das bactérias, micróbios e coisinhas afins mesmo que não queira. Frita-os. Ou seja, em vez de as bactérias, micróbios e coisinhas afins irem ao microondas ou ao forno lá do hospital ferver em pouca água, tipo nanoágua, não, ficam numa de não-saia-do-seu-lugar, chove-lhes o ourozinho em cima que deve dar cócegas e depois os fotõezinhos vêm fazer o resto (isto sendo tudo do nanomundo temos de usar os diminutivos, é desculpar o tempo extra que demora a ler, sim?), os fotõezinhos, dizíamos, incidem e Au! morrem aquelezinhos todos, os maléficos.

Este post está livre de erros e errozinhos, mas lança um desafiozinho, que é como quem diz, megafácil: qual é o símbolo químico do ouro?

(inspirado aqui)

18/03/2016

Um post nada meu

E sim da minha irmã, de uma delas. Daquela que participa em desafios para escrever textos de 77 palavras e, como se não bastasse semelhante restrição, semelhante e tramada, ainda há mais outra qualquer, que vai variando. Desta vez foi: escrever apenas palavras que comecem com as letras A T E M P O S e mais: por esta ordem! (argh)

E eu gostei, está aqui.

Os copos do bar, a serra da estrela e o miúdo

Saio do edifício e atravesso a estrada, alcanço o passeio do outro lado, ladeio os arbustos aparados que servem de sebe ao espaço comum de um prédio, contorno a curva e estou na rua principal. A tontura vem atrás de mim mas no ginásio ficou fora da coreografia quadrada, só sabe as piruetas que ali não temos e eu quase me esqueci dela, apesar de levar o medo de cair. Agarrando a folhagem do arbusto com os olhos, concentrei o cérebro no frio da noite, continuei a caminhar depressa e levei a mão ao cabelo. Puxei o elástico que o prende num rabo de cavalo como se nada fosse, isto para a despistar. Chegada à passadeira atravessei para o lado onde começa a fieira de prédios que inclui aquele em que vivo. Meto a mão dentro da bolsa da mochila e troco o elástico que me prendia o cabelo pelo molho de chaves, anseio por entrar em casa e tomar o melhor duche de todos que é este (a seguir ao ginásio).

- Olá!

Viro a cabeça e dou com o rapaz que passeia os cães, vem a sair do primeiro prédio e vem sozinho, foi decerto entregar uma encomenda de quatro patas. Sorri, como sempre.

- Olá Renato! - ele abre os braços, abre sempre os braços quando me vê, mas não me abraça, baixa-se parece que meio metro - não sou eu assim tão baixa, é antes ele assim tão alto - e dá-me dois beijos na cara, tem o capuz enfiado na cabeça. Está mais magro, está muito magro e, assim de noite, não se lhe veem as cicatrizes do rosto nem sequer o brilho dos piercings - como estás?

- Cansado.

A resposta é esta, na verdade é sempre esta quando o encontro e, sem deixar de sorrir, continua - comecei às seis para levar os cães antes de os donos saírem para o trabalho, os que não me dão chave de casa, e hoje ainda vou trabalhar, agora trabalho num bar, ali em baixo perto do rio mas é só apanhar copos, copos por todo o lado, até na casa de banho há copos, é só o que eu faço, mas esses que estão na casa de banho pego com um guardanapo (ri-se). Sem eu perguntar, explica-me o porquê do guardanapo, mas o leitor, que é esperto, não precisa de explicação, eles estão bêbados, continua, lá para as tantas já estão bêbados e às vezes o dono do bar põe-nos fora, eh! fora! (Renato faz o gesto do dono do bar a pôr os bêbados fora, uma espécie de pontapé na noite), e volta aos cães - pega no telefone, que também é esperto mas muito menos que o leitor, evidentemente, e mostra-me as fotografias da cadela arraçada de serra da estrela e do beagle (o beagle é lindo, a minha irmã a seguir a mim tem um beagle daqueles) a brincarem na relva ao sol, a esta tenho de a cansar, conta-me, é muito forte e depois, à noite, se não a canso quer brincar com o miúdo, joga às escondidas com o miúdo, joga joga, eles têm um miúdo, ainda é bébé, o casal que mora ali (aponta para outro prédio), ele é dentista, e no outro dia ela empurrou o bebé para fora da cama, ah! mas não o magoou, queria brincar às duas da manhã, eu bem lhes disse que ela ia crescer e eles não acreditavam, agora ela já me dá por aqui - a mão a marcar a altura da cadela na perna fininha. Eu estou a transpirar e começo a sentir frio, preciso do tal duche que me vai tirar uns poucos de anos ao aspeto, borrifar-me as pétalas, rosar-me as faces, quem toma duches destes sabe muito bem como é.
Por isso não lhe perguntei mais nada, ele está a sorrir e gosta do seu trabalho, agora tem dois, parece feliz o Renato, apesar da vida sem pai e sem mãe e sem ninguém, apesar dos maus tratos da infância, apesar de ser só ele e os cães e agora os copos do bar junto ao rio. Ah! E a velhota de um cão que já morreu e que o chama quando precisa de arranjar o esquentador ou mudar uma lâmpada, o Renato sorri e eu vou tomar duche.

Adeus, Renato, gostei de te ver, bom trabalho!, entrei no prédio. Subi a casa e, só quando uma nuvem de vapor já me escondia de mim própria, me apercebi que a tontura passou.

(Renato tinha tudo para estar no desemprego e levar a vida a queixar-se e a revoltar-se. Mas não foi essa a sua opção.)

15/03/2016

As mãos como os pombos

De manhã, junto à consola da entrada, veio uma grande tontura apanhar-me os pés. Sem a esperar, vi-a subir-me à cabeça. Aí, fez uma espiral funda em duas voltas que me escureceram os olhos por dentro a velocidade constante. Depois continuou, desenrolando-se em duas e tomando por meus braços fora; a grande tontura cortou-me a meta nas mãos. Ágeis como os pombos, agarraram de pronto, em uníssono, a consola da entrada que, simultaneamente, não caiu.

Só depois abrandei. O semáforo espera-nos vermelho e do outro lado, mais perto do rio, os pombos debicam no alcatrão. São quatro ou cinco dispostos pela via, não sei se pedrinhas se pedaços de pão. E quando o vermelho se faz verde e os carros largam piso acima, os pombos, ágeis como as minhas mãos, levantam voo a tempo inteiro.

12/03/2016

Um miminho horroroso (quarenta beijos)

Enquanto não relatar a ocorrência neste blogue (tem de ser neste), ela não deixa de me ecoar na cabeça, género conta-me, conta-me. Como se ela, a ocorrência, soubesse que eu, ao contá-la, revivo-a com uma intensidade que desejo. Mas precisava de um pretexto.

De manhã, ao invés de engolir o pequeno almoço, comi-o sentada. E isso deu para ler duas páginas do livro dos pequenos almoços, que é um habitante da cozinha com vista para o rio e o sol nascente, especialmente para o sol nascente e não é de receitas. Clarice Lispector. Esta manhã falava sobre dar muitos beijos aos filhos, quarenta beijos aos filhos. Eu leio-a e oiço-a falar, eu leio-a e queria perguntar se foi vinte beijos a cada filho ou quarenta a um e depois quarenta a outro (são dois filhos). E hoje, por causa dos beijos que Clarice deu nos filhos, conta-me, conta-me.


A minha primeira filha tem seis anos e já desenvolveu instinto maternal para com a irmã, que tem três e é marota o melhor que pode. Deitei-as, li-lhes com certeza uma história, bocejei muitas vezes durante a leitura, arrumei o livro, dei um beijo à mais velha, depois vou dar outro à mais nova, que tapa a cara com o lençol para se esconder e não deixa que eu a beije.

- Pronto, se não queres, a mãe não dá, durmam bem. - e saí do quarto.

A meio do corredor já oiço a algazarra, quero!, quero!, mãe! vem cááá!..... ao que eu não respondi, fui fazer uma coisa qualquer sempre a ouvir a gritaria do quero! quero! já a descambar para uma choradeira estratégica de me amolecer o coração. A irmã, que até agora não tinha emitido opinião, grita lá do quarto, mãe!, anda lá!, coitadinha, ela já está a chorar, é só um beijinho!! De maneira que o concerto foi agora a duas pequenas vozes até eu ceder e retomar o caminho de volta ao quarto. Entrei e vi a cabeça mais pequenina destapada, os olhos muito abertos para mim, calou-se a vozinha reclamante e a mais velha ainda repetiu, mãe, coitadinha, ela já estava a chorar... Aproximei-me da coitadinha e dei-lhe um beijo devagar, mas depois esqueci-me de vir embora e fiquei ali a sentir o cheirinho morno e doce da minha filha, quedei-me aos beijos naquela testa, nas bochechas, nos caracóis macios, sei lá eu, outro e mais outro, ela agora satisfeita, aquilo já ia no beijo número quarenta, sim, talvez quarenta, quando se ouve da cama ao lado

- Ó mãe!... também não era preciso estares aí nesse miminho horroroso!...

(claro que os próximos quarenta beijos foram de seguida depositados na menina de cabelo mais escuro, também encaracolado, aqui da cama ao lado)

10/03/2016

Para o carro não colar

Já quase toda a gente saiu. Instalo-me na espécie de hangar, no canto do fundo, ainda iluminado, a usar da minha mão-de-obra para avançar um trabalho que não é bem meu. Os colegas que vim render deixaram-me o rádio ligado numa estação que é do gosto das minhas filhas, mas que bem isto me soube. Até ouvi uma canção de que gosto muito. O trabalho é repetitivo, mas serve-me para descomprimir da batalha da reunião da tarde. À excepção de parteira e segurança pessoal, talvez eu gostasse de fazer quase tudo, desde que faça avançar o mundo um bocadinho (parteira não podia porque desmaio com sangue e segurança pessoal também não por ter pouco músculo nos braços).

Mas eis que passa a dona Esmeralda desfardada, com o seu cabelo à lua, no passo apressado que não a larga, e me deita lá do fundo um cumprimento em voz bem alta: até amanhã, menina, então hoje está aí?, estou sim, dona Esmeralda, calha a todos, até amanhã! E então é que fica o edifício todo vazio, tirando o rádio e eu e mais uma data de tralha inanimada, estou sossegada que é como gosto. Olho para a quantidade de trabalho que ainda tentarei fazer hoje, e decido que é até ali, depois deste monte é mais um.

Quando vou a meio do segundo monte, surge, proveniente do escuro do lado oposto desta sala-hangar, o segurança que traz intenções de fechar tudo à chave (e se calhar também traz músculos, mas eu daqui não vejo). Eu preparo-me para lhe recordar que tenho chave e que ligo o alarme antes de sair. Ele para a uns dez metros de mim (muitos metros) e quase grita de lá: ainda fica muito tempo? fico mais um bocadinho, eu depois fecho, não se preocupe (grito eu daqui). Ah... mas olhe que estão ali a fazer o piso e depois tem de esperar, aquilo vai ficar mole.

- Vai ficar mole?!

- Sim, fica mole e depois o carro cola quando sair, tem de esperar que seque!

Estão a preparar-se lá fora, nesta quase penumbra do fim do dia, para deitar um tapete novo de alcatrão na passagem estreita pela qual o meu carro passará e na qual colará (segundo a opinião do segurança) se ainda estiver mole o piso. Caso eu opte por passar a pé, colar-se-ão os meus sapatos de salto alto que eu hoje não trouxe outros e não há forma alternativa de sair daqui. Pensei na Teresa, que já estaria a caminho para o nosso jantar, combinado e adiado duas vezes. Desligo o que estou a fazer, separo bem a metade do monte feita da não feita, arranco uma folha de papel do bloco que está ali a ouvir música comigo, rabisco uma nota à pressa para o colega da manhã que vai continuar, arranco a ficha do rádio da tomada da parede, corro para o quadro elétrico e desligo as luzes, vou à minha sala também a correr, passo pela casa de banho mas não entro, não dá tempo, dispo o equipamento de trabalho, pego na mala e no casaco e corro porta fora, subo a rampa a correr onde já vejo máquinas a rugir e a posicionarem-se para iniciar os trabalhos, uma delas com cilindros de calcar estradas mas o piso ainda está intacto e eu tenho boas hipóteses. Dirijo-me ao condutor da máquina-cilindro e meto a cunha: olhe se faz favor, o senhor...

- Hello?! - o condutor do cilindro parece irlandês e eu acabei de perceber por que não foi o segurança a mandar esperar este homem.

- Hello?! Do you speak english?!... - eu admirada e esbaforida.

- Yes. Only english, sorry.

- Ok... Will you please wait with that machine until I take my car out of here?

- Sure, madam. Go ahead.

Enquanto passava com o carro no piso ainda esburacado, pensei que talvez não tivesse sido muito esclarecedor escrever no bilhete para o meu colega da manhã, "fiz até aqui, tive de sair à pressa para o carro não colar".

08/03/2016

Asafoetida e o dia da mulher

Parti a cebola em fatias e depois outra vez na perpendicular para obter pedacinhos quase cúbicos. Seguiu-se a batata doce, descasquei-a, é muito irregular na forma: desenhar uma batata doce, perguntar a uma criança de dez anos o que é isto e depois vê-la inclinar a cabeça, virar a folha de papel quatro vezes e devolver... uma lagarta gigante?!... Parti-a então, em fatias finas, depois repeti a perpendicularidade duas vezes para completar as três dimensões a que vivemos todos quer queiramos quer não e obtive novos pedaços praticamente cúbicos, na cebola uma das dimensões já vem cortada, é a das camadas, a mãe natureza dá essa ajuda, que já teve  mais que tempo para se dedicar ao melhoramento da cebola. Reservei. Nas receitas, a palavra reserve fica muito bem e aguça o apetite, portanto reservei. No tacho deitei azeite, uma mão de sementes de mostarda e outra mão de folhas de caril que se agarraram logo ao azeite e continuei a arrumar os sacos de compras do supermercado de costas voltadas para o fogão. O coco feito leite, o coco ralado, os coentros, o tomate que vai de lata porque já passa das oito, o caril dos dois tipos em pó ainda tenho na despensa, os cominhos, o gengibre e a asafoetida, que cheira muito mal mas é indispensável, dizem, tem é de ser só uma pontinha da colher de café, o caril já disse que são dois, um é picante o outro não e por fim a água para o arroz que deve ser basmati. Chamei a minha filha mais nova e pedi-lhe para fazer três exercícios de energia cinética ao pé de mim, a mais velha já cá está a arrumar a loiça lavada enquanto me enuncia os planos para sábado à noite, mãe são os anos da Inês. Descasquei uma tangerina e parti-a para um prato que coloquei em frente do livro de física com os exercícios a pedido, toma, filha (esta filha adora tangerinas). Descasquei mais uma e tentei enfiar um gomo na boca da outra filha (que prefere laranjas) no intervalo dos planos para os anos da Inês, ela em movimento diz não, mãe, prefiro uma laranja, portanto a segunda tangerina veio oferecer-me a sua energia cinética a mim e comecei agora a ouvir o crepitar das sementes de mostarda, que são capazes de saltar no azeite como senhoras sementes de mostarda e as folhas de caril não. Juntei então os cubinhos de cebola que acalmaram estes calores e com a colher dei uma ajeitada ali, lentamente, já cheira bem. Depois o tomate em lata foi acalmar ainda mais os tais calores, fez-se mesmo um silêncio, shhhhh, uma tranquilidade. Aumentei então a potência do fogão e quando o crepitar regressou de onde tinha ido (agora precisávamos de um poeta para saber), mergulhei-lhe os cubos de batata doce, o leite de coco e o seu granulado, os pozinhos já enunciados e o sal e tapei o tacho, reduzindo a potência outra vez. Acabei de arrumar as compras, dobrei os sacos que são feitos de tecidos laváveis muito bem conhecidos da máquina da roupa, fui metê-los dobrados dentro da mala para não esquecer, tornei à cozinha, espetei a ponta da faca num cubinho de batata doce que cedeu, já está quase, e foi a vez dos coentros, lavados e picados lá para dentro, agora são três minutos até acabar. Regressei então à energia cinética da minha filha, mostra lá meu amor, a minha filha tem uma letra muito bonitinha e muito pequenina, aquilo estava tudo arrumadinho, a vermelho o número do exercício, a lápis o resto mesmo direitinho e eu tenho de ir buscar os óculos.

O dia da mulher é todos os dias.

(e este post tem um erro, quem é a mulher que o descobre?)

(nitidamente inspirado aqui)

02/03/2016

Dicionários acordados ortograficamente

Naquela tarde, levei dois dicionários para cima do balcão da livraria. Não me pus a pensar quantos livros haverá numa livraria, por exemplo naquela; um número certo, inteiro, saberá dar a resposta mas ninguém vai saber qual é, digo nunca (lembrei-me disto agora). Levei então um dicionário mais portátil, que ia passar a ser completamente meu e outro bonito e fácil de consultar, que levei para emparelhar (rimou). Entrei em conversações com a senhora que me atendeu atrás do balcão, enquanto a outra ajeitava os papéis de embrulho cortados de tamanhos predispostos a embrulhar livros para homem ou senhora, e eram as conversações sobre o interior do dicionário quase meu, se a questão do acordo ortográfico sim ou não e como, etc, isto assim. A senhora que ajeitava os papéis de embrulho predispostos ficou caladinha a ajeitar a ajeitar. Até que entrou um senhor com idade para ser meu pai, um senhor que a minha filha mais nova teria imediatamente classificado com um mãe, tão fofinho sussurrado ao meu ouvido caso ali estivesse, um senhor que passou por trás de mim, se dirigiu à senhora dos papéis e lhe estendeu o telemóvel enquanto as duas, a dos papéis e a minha, largaram toda a atenção dada às respetivas tarefas, para a depositar no tão-fofinho senhor, ó: boa tarde senhor Carolino, como tem passado? (sorrisos e tudo, as duas) Há muito tempo que não vinha cá, senhor Carolino, etc. O dicionário esquecido na mão da minha senhora, ai o aborrecimento, vamos lá embora que a minha vida não é isto (pensei eu).

- Ehh! Senhor Carolino! Mas isso é telemóvel que se apresente?! Assim todo sujo?! - e com o braço esfregou o tecido da camisola no ecrã do aparelho, isto a senhora dos papéis.

- Deixe lá isso menina, não está nada sujo, eu só queria ligar aí a internet mas não consigo, ligue-me aí aquilo do.... como é que se faz para ligar?... - ele sabe que é fofinho, porque olha para mim com as suas sobrancelhas despenteadas e fartas, branquinhas, e quase me pisca o olho, como que a pedir solidariedade para a situação (e eu com pressa para escolher dicionários acordados ortograficamente).

A minha senhora, que me tinha abandonado e aos livros (para não repetir dicionários, que leva mais tempo a escrever), retomou a viragem aleatória de folhas para cá e para lá no meu futuro livrinho e diz não sei deixe ver (duas vezes). Eu sugeri uma palavra, directo, veja aí se tem o c ou já não. Já não. Pronto, levo esse. E o outro? O outro é lindo, mas fica, desses já tenho.

- Cuidado menina, olhe que essa senhora engana-se muito nas contas - agora a menina sou eu e esta é a voz do senhor Carolino, que se ouve no momento em que o dicionário se torna meu e os dezassete euros da livraria se tornam, todo cheio de confianças comigo, a apontar a minha senhora com o queixo duas vezes seguidas e rápidas, para se fazer todo maroto e engraçado. Ela regista a compra na máquina enquanto abana a cabeça sinalizando que já ouviu estas insinuações mais vezes, e depois diz ai este senhor.

Claro que lhe sorri cortesmente, ao senhor Carolino, e nada mais devido à pressa, mas a minha filha teria razão. Só não precisaria de me sussurrar ao ouvido mãe, tão fofinho, que ele está fartinho fartinho de o saber.