a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/12/2017

Um post do tipo leve três pague um (mas sem coiso*)

Agora estou sentada praticamente dentro da lareira, frio não tenho mas é os pés – molhei-os na relva do jardim, relva quer dizer, não é bem relva, é uma espécie de erva que nasce e cresce selvagem com nanoflorzinhas amarelas dispersas e ainda a estas horas para lá das cinco da tarde conserva o orvalho da manhã. Uma poesia, portanto, e porque fui visitar a laranjeira que, vista do terraço, estava a exibir uma laranja no meio da folhagem. A laranjeira, agora vista de perto, é mais baixinha do que eu e dando-lhe uma volta completa não tem uma, não tem duas, mas sim três! laranjas. Têm o tamanho - vá - de morangos de grande calibre, mas são laranjas, daí a cor delas, e são as primeiras! da arvorezinha. Só que molhei os sapatos e meias.

Ontem fiz uma coisa muito interessante que foi deixar o meu computador dentro do avião, tipo esquecido. Só dei por isso uns vinte minutos depois de estar em Lisboa e por muita sorte ainda no aeroporto, de modo que me lancei em corrida estafante para dentro do guichet de lost & found, onde tive de aguardar que a senhora terminasse a chamada com alguém aflito como eu mas a falar algures da Escandinávia, esse alguém tinha optado antes por deixar o telemóvel no avião e eu foi o computador, raios raios. Torci muito as mãos e respirei fundo umas quinhentas vezes (mais ou menos hiperventilei) para conseguir esperar em modo calmo, a pensar que o avião podia muito bem tornar a descolar sabe-se lá para onde e o meu computador ai jesus que o último back-up foi há imenso tempo. Certo, sei, devia bater com a cabeça na parede sobre isto, mas agora a senhora desligou a chamada com a Escandinávia e olhou para mim sorrindo, boa tarde: boa tarde é como quem diz até certo ponto e depois então disse-lhe tudo. Em que lugar estava sentada, lembra-se? Lugar 9A se faz favor. Ela pegou no walkie-talkie e chamou o colega que estava a fazer o meu avião.

Hoje pela manhã encetei um novo estojo de lentes de contacto, a esquerda é sempre a primeira por uma questão de eu ser destra. A direita, ao pô-la, tive umas náuseas de ver tudo tão mal, tão mal, completamente torcido em meu redor, que nem a parede se safou. Penso que estou a ficar maluquinha e retiro a lente de contacto potente do olho direito. Torno a pô-la, a ver que tal. E a ver tudo torcido tornei, parede incluída, uma coisa do tipo Dalí e as náuseas, olá. ‘Tamos mal (não sei se é a idade).

Mas não muito muito porque 1) a lente do olho direito eram afinal duas encaixadas na concavidade uma da outra, oferta de fábrica ou então promoção de natal leve duas pague uma como este post mas este é três, 2) as meias e os sapatos entretanto secaram e 3) o computador tornou à minha mão duas horas e meia depois da cena com o walkie-talkie. Foi cá uma sorte e hoje claro que já fiz dois back-ups.


*Tive uma colega que terminava as frases quase todas coiso, era tão giro. 

21/12/2017

Todos ao léu

Este ano o natal chegou demasiado cedo. Por mim estaria a terminar maio, saindo com vagar o mês das flores, como se ainda pudéssemos evitar um verão desgraçado. É que não estou pronta. Do lado de fora da minha casa, quem olhar vê a silhueta luminosa da árvore de natal que arranquei aos braços em prestações curtas. Nunca antes tinha trabalhado tanto, tantas horas, tantos domingos e sábados, praticamente todos, noites e noites adentro. A publicação menos frequente de posts neste blogue em dois mil e dezassete vem daí. Mas então pode ver quem olhar da rua a luminosa árvore de natal cuja gambiarra de luzes veio da arrecadação a incluir, quando olhei bem, felizmente olhei bem, os fios de cobre junto à ficha que fica na extremidade todos ao léu, desordenadamente surgindo de dentro do isolamento em verde-árvore-de-natal e verde-árvore-de-natal porquê, por causa de camuflar na folhagem de plástico ou polímero especial, isso já não sei. Em vez de comprar uma gambiarra nova fui à loja exígua que também tem tudo o que a gente quiser desde chapas de matrícula até ao mais pequeno dos parafusos não faltando fichas elétricas mas não é chinesa, é portuguesa, onde foi a gambiarra reparada com sabedoria, destreza e substituição de peças. Exclamei inclinada sobre o balcão, mas isso da ficha fazia eu, e eles, não custa nada fica já feito, da minha parte foi só então lá deixar um euro e meio, depois da parte da árvore foi deixar-se iluminar à janela e da parte da janela, quando vista da rua, já disse.

Mesmo assim, o natal ainda não me bateu – e é capaz de não bater. Propriamente.

17/12/2017

Se o mau gosto fosse música

Há uma rotunda debaixo praticamente da ponte vasco da gama que está iluminada de natal por partes: está e não está, está e não está, está e não está. Ou seja, piscando a uma frequência aflita, e mais: o tom das luzes naquele branco de câmara frigorífica onde se pendura o gado já morto (imagine-se). Fez-me também lembrar por que deixei de ir a discotecas – a música do tipo obras na variante tábuas a bater-nos na cabeça muitas vezes e também no corpo todo, por dentro. Mas em luz.

(o bom, porém, foi ter conseguido - até que enfim - escrever poucochinho)

15/12/2017

Mas há orquídeas

Continua em força o papagaio, vigoroso, não morreu (ainda é novo). Hoje conversou toda a manhã sobre aquela situação lá dele que incide invariavelmente no mesmo, tchalp tchalp teren tchalp, como eu já tinha dito. Não sei ao certo quanto tempo dura um papagaio normal, do tipo muito falador e todo ele no espetro do verde (Teresa?), e admiro-me completamente de ter criado este sentimento tolinho por aquele que me azucrina tanto o juízo, como dizia alguém na minha infância. Apesar de já me ter apetecido, evidentemente (muitas vezes), lá ir arrancar-lhe uma pena a ver se ele se calava um pedaço ou mudava de assunto. Mas não fui, acobardo-me em casa a ouvi-lo. Na verdade, fosse eu mais de ficar vivendo no mesmo sítio em vez de andar a saltar de lado em lado, seria pessoa para fazer um papagaio feliz qualquer que fosse a sua cor, e tomava um todinho para mim. Além disso, custam uns mil euros os papagaios, e essa parte é que sinceramente, mil euros. De modo que é o seguinte: contento-me com duas belas orquídeas, uma toda em branco, única sobrevivente do pulgão da mesma cor, um pulgão com pelos bastante esquisito (e gordo, e gordo), outra em bordeaux com pintas, muito linda, ofertada o mês passado pelos meus ex-colegas e as orquídeas não se compara, quer dizer, são muito mais caladinhas.

(para não escrever sobre as saudades, muitas muitas, muitas e muitas da minha filha que está lá a fazer o Erasmus, saiu isto) 

13/12/2017

A grande palmada

- Esta tua mania dos voos low cost dá nisto, tu e as tuas manias!!!
Devido à neve que caiu nos últimos dois dias em vários países da Europa, muitos voos foram cancelados ou atrasados. Aquele em que eu me inscrevi para regressar a Lisboa entra no segundo grupo, foi sorte. Mas estamos agora na porta de embarque e eu enfim consegui sentar-me com o objetivo de puxar do computador e continuar o trabalho que quer ser entregue amanhã e vai mesmo ser entregue amanhã nem que a vaca tussa (por exemplo, por causa da neve). À minha frente senta-se uma rapariga que deve andar pela casa dos vinte com cara de portuguesa. A seu lado a cadeira está ocupada com uma amálgama que denota o cansaço da espera e que parece conter casacos enlaçados em outros géneros de bagagens menores, marcando o lugar de alguém que demora a chegar. Eu vou andando no meu trabalho. O lugar do nosso avião lá fora na placa ainda está vazio, de modo que a espera alonga-se mais um bocado e eu aproveito. Quando chega, não o avião mas o ocupante da cadeira da amálgama, faz-se anunciar largando uns palavrões e gestos bastante capazes de informar com clareza sobre o seu estado de espírito. A rapariga corrobora com a intenção dele de se sentar, e faz espaço na cadeira amanhando com os braços toda a trouxa. Amanhando é uma forma de dizer. Ele, porém, não é bem sentar-se, é mais atirar-se (o meu trabalho ficou esperando neste ponto que eu visse tudo até ao fim e até é possível que de boca aberta), é mais atirar-se, dizíamos, e depois escorregar pela cadeira abaixo para encostar a cabeça na espalda da própria, gesto durante o qual pragueja com a rapariga portuguesa como já se leu acima, sendo portanto ele português também e retomamos.
- Esta tua mania dos voos low cost dá nisto, tu e as tuas manias!!!
A rapariga encolhe os ombros, estala a língua e olha para o outro lado.
- Pá! ‘Tou aqui há 3 horas à espera do teu voo low cost!!! como é que queres que eu me sinta?!
Notemos aqui por favor que está ele e estamos todos. E notemos ainda que de acordo com este indivíduo o mau tempo apenas afeta os voos low cost, aos outros voos não se sabe o que faz.
Ela pega no telemóvel como que para se desligar dele concentrando-se no pequeno visor, mas este indivíduo não está feliz ainda e arranca-lho da mão com um gesto condizente com os impropérios e outras desinteligências já expostas, ri-se agora muito e ela grita dá cá isso! Os detalhes que aqui se expõem não é tanto de eu ser uma linguaruda, é mais de ainda estar de boca aberta a olhar, portanto prossigamos: ele afasta o dispositivo da sua dona esticando o braço para o lado da família seguinte que não levou um tabefe por centímetros e que parece tão admirada com este conteúdo de caráter como eu, mas eis que a nossa rapariga vai e zás!, desfere uma sonora palmada na perna do indivíduo, isto a acompanhar novo dá cá isso!, agora mais alto, a palmada levando tal força que até parece que a mim doeu. E doeu. Mas nem foi a palmada.

29/11/2017

Em que pensas enquanto aspiras a casa?

O avião aterrou no aeroporto de Eindhoven, travou, rolou ainda pela pista fora até quase parar e depois sair normalmente para as vias secundárias que servem de ligação ao estacionamento. Uma senhora entradota na idade abriu o cinto mal pousámos no chão e já está de pé a tentar equilibrar-se por forma a conseguir quem sabe esticar o braço e quem sabe abrir a bagageira e quem sabe tirar a mala, mas o chefe de cabine agarrou no microfone e está a mandá-la sentar! sentar! sentar!, que só depois de pararmos é que se pode! A senhora não mostra ter captado a mensagem, continua de pé a procurar equilíbrio e o chefe de cabine retoma a ordem agora em tom mais alto Hello! Hello!, tudo isto acontecendo bem rápido (a escrever é lento). Como a senhora está a uma distância de braço e meio de mim, estico-me toda de dentro do meu cinto e agarro-lhe o casaco castanho de pelo macio dizendo em português a senhora tem de se sentar, dando até um puxãozinho para baixo ao casaco no sentido de ilustrar a minha mensagem, não fosse ela não entender português apesar de parecer. Aí entendeu e, deixando-se cair no assento com um ai, terá devolvido a paz ao chefe de cabine; o avião a rolar ainda por ali afora.
Vários dias depois, no voo de regresso a Lisboa lá estava a mesma senhora a embarcar com o seu casaco pelo braço, o mesmo pelo macio que eu puxara umas linhas acima para baixo, a senhora tem de se sentar e isto é uma senhora coincidência, ai é. De novo ficámos sentadas à distância de braço e meio, de modo que optei por tomar atenção aquando da aterragem, para verificar da eventual necessidade de me esticar de novo para ela, o resto seguirá como já sabemos. Porém não, desta vez manteve-se sentada, cumpridora até à imobilização do aparelho, tudo certo.

Sobre esta ocorrência, entretanto, passaram muitos dias e eu estava para esquecer completamente esta senhora. Contudo, caminhava hoje de tarde em passo apressado rumando à estação dos correios para ir levantar mais uma carta da autoridade tributária, mais uma, a ver se é desta que sossego na minha vida de contribuinte, etc, e cruzo-me com uma senhora entradota na idade. Isto é cara conhecida, penso eu, mas quem é, quem é, é conhecida mas parece que falta qualquer coisa nesta senhora, virá dos correios, do café ou da farmácia, e é então que se está mesmo a ver que me vai cair a ficha: o casaco! O casaco que trazia hoje é outro.

As escovas do limpa-para-brisas já não são escovas há imenso tempo, são borrachas.

Enquanto percorria toda a segunda circular logo depois de cair a noite, levava as escovas do limpa-para-brisas no modo ativo contínuo. Como são novinhas em folha (e em borracha) desde a semana passada que o carro veio da garagem a brilhar por todo o lado, não fazem barulho nenhum é tzz tzz muito lisinho. Eu estou sempre a tentar escrever uma coisa séria e com jeito e começo a descarrilar num abrir e fechar de olhos, mas vamos na segunda circular, tzz tzz. E levava no carro duas pessoas que tinha acabado de conhecer no evento da tarde. Iam apanhar o comboio para o Porto e iam chamar um táxi que os levasse à estação do comboio, ouvi-lhes eu dizer à saída do auditório. Então ofereci boleia.  
No carro não precisei de puxar assunto eu. Nem tampouco teve a chuva de ajudar oferecendo tema fácil, batendo nos vidros e no tejadilho com aquela energia toda trazida no cair. A minha passageira do lado quis saber de mim, quem sou, o que faço. Contei. Não é tão amiúde assim que sucede alguém perguntar quem és e o que fazes. Mas contei resumido. Ela ainda fez uma ou duas perguntas para preencher detalhes onde eu deixara abertas (pelo visto). Com o discorrer da conversa, acabo dizendo que a gare do Oriente já não está longe.
Mas não pensemos que não veio a vez de eles se apresentarem, veio. São então colegas de trabalho e deslocam-se muito a Lisboa. Informa ela, mais faladora do que ele sentado atrás, que no Porto há menos eventos destes, há menos gente para encher as salas, por vezes os eventos até são cancelados. Admirei-me: como menos gente?... (e depois descarrilei um bocado, não muito) então eu até costumo ouvir no rádio que a ponte do Freixo e a da Arrábida são muito dadas, as duas, a engarrafamentos, cheiinhas cheiinhas que se põem todos os dias, aquilo há de ser muita gente lá no Porto!, e eles não me levam a mal a brincadeira e eis que chegámos à estação do Oriente para não repetir gare, dado que nem sempre sou de repetir as palavras. Então adeus, boa viagem! Deixei-os debaixo da grande cobertura para não apanharem chuva, ocorreu-me logo a seguir que talvez não volte a vê-los nunca mais e rumei para casa, tendo antes passado no supermercado que já está todo enfeitado para o Natal.

26/11/2017

Grande intervalo

Domingo, 23h07, cozinha, cheiro a chocolate dos restos da sobremesa de ontem

A minha filha ainda estuda para o teste de amanhã na mesma mesa em que eu ainda trabalho. E distrai-se. E põe e tira os auriculares dos ouvidos. E mexe no telemóvel e eu ralho e ela diz ó mãe!!! estou a fazer um intervalo!, e eu acho é muito grande o intervalo mas torno ao trabalho e ela aos auriculares e ao telemóvel e então concede um ou dois minutos de atenção ao livro da escola, mas só um ou dois minutos e depois é como se saltasse na cadeira, lança os braços no ar, mexe a boca a fazer que canta uma canção muito alto e abana a cabeça e dança toda na cadeira, braços para a direita e para a esquerda e eis que toca uma guitarra imaginária completamente inclinada para um lado e eu zango-me outra vez e digo ou estudas ou vais para a cama, larga o telefone e para de dançar e ela, muito indignada para mim, suspendendo realmente todo aquele dançar inclina-se para a frente e atira-me com isto:

- Ó mãe!!! Tu também às vezes enquanto trabalhas danças!!! com os pés!!!

Com os pés.



A canção é esta (descobri).

23/11/2017

Não há fome que não dê em fartura

Na Finlândia fazem pão com farinha de grilos por razões diversas, extraordinárias, mas bolas que eu ainda estou processando a ideia de comer pão feito de grilos moídos.
Por outro lado, não me lembro de quando surgiu esta situação da Black Friday e até hoje nunca aproveitei nenhuma como má consumidora que francamente sou (já voltamos aos grilos).
Por conseguinte, ter levado hoje, logo hoje, o carro para a revisão anual não foi a melhor ideia possível, devia ter esperado por amanhã: dois pneus novos, substituição da bomba do líquido que refrigera o motor e que não é coisa pouca para além do resto que é costume. Para casa vim a pé logo após desistir dos táxis que não quiseram responder ao pedido rádio, e vim seguindo as instruções do meu telefone artificialmente inteligente. Foram uns trinta minutos e ainda parei satisfeita no centro comercial para fazer o que antes me fazia tão bem: comprar o jornal e tomar café enquanto o leio em cima da mesa com as pontas a pender para lá do perímetro circular daquela. Fazia tão bem, digo fazia: o jornal em papel hoje em dia dá tristeza, está um vazio enchido de publicidade.
Nem dizia nada sobre os grilos finlandeses moídos para pão sem glúten, por causa dos grilos é pão sem glúten, dizem  isso, e agora estou a pensar que também deve ser estaladiço. Gue.

22/11/2017

Sopa de caranguejo e tangerina*

Primeiro digo que foi esquisito há imensos anos quando a fnac passou de prestador de serviços de ar condicionado com música de Vivaldi constantemente presente nos anúncios televisivos (e por causa disso deixei de aguentar Vivaldi) a megaloja de livros, discos, puzzles, caixinhas com massagens corporais e outras experiências, computadores, auriculares, acessórios incríveis, guitarras, promoções e bilhetes de espetáculos entre outros.

Segundo digo que recordo o engraçado que foi o chocolate Raider passar de repente a chocolate Twix porque Raider era já nome de inseticida acho que do tipo casa e plantas, mas de matar os bichos e não a casa nem as plantas (a graça é por aqui se faz favor) e o chocolate joga noutra equipa.

Terceiro e último por ora, é a ideiazinha de se dar o nome Michelin, não é Miquelina, Marcoleta, Nicolázia, Esperanzídia, Deliciónia, não, é Michelin, às estrelas atribuídas a restaurantes muito bons, muito bons, muito bons, quando Michelin via eu já perfeitamente a partir do banco de trás dos anos setenta que é negócio de pneus com boa aderência ao asfalto, portanto recomendáveis pelo boneco cheio deles que lá estava sempre colado em reclames na traseira dos autocarros, nada a ver com sopinha de caranguejo e tangerina, é isto que eu digo.

* Comi na única vez que visitei um restaurante com duas estrelas dessas, em que com dois golos apenas devorei toda a quantidade da sopa servida em tacinha de porcelana branca de pequenas dimensões, de pé e de saltos altíssimos que ainda me lembro das dores que foi depois.

20/11/2017

Em Portugal temos muita sorte

Sentamo-nos na sala, prontos para conversar. À nossa frente temos as bebidas e temos, pode ser, uns biscoitos ou uns queijos, por exemplo aquele que tem nozes embutidas e é tão bom que parece mentira, ou também uma pasta de atum, e ainda um bolo que eu fiz e que tornou a sair mal, avisei, porém não tão mal como o último que foi direto para o lixo (enfim), mas eles querem provar e eu espero que seja do forno (mas pode ser de mim).

Perguntam-me como vão as minhas filhas e como vai Portugal, comentam ainda os incêndios que fizeram notícia em todo o lado. Pego da palavra em inglês que vai melhor que o holandês e conto o que sei, aproveito para incluir um resumo do recente discurso do Al Gore em Lisboa a propósito das alterações climáticas, as minhas filhas estão bem, obrigada. Já devem estar grandes, diz Hilde a sorrir, há tantos anos que as não vejo, oh sim, estão as duas grandes. E depois é a minha vez de querer saber.

Hilde está aposentada da profissão de professora e faz voluntariado. À quinta feira dá aulas de neerlandês a refugiados acolhidos na Holanda. Da Síria, principalmente. Mas também de outros lados.
- E conseguem aprender bem, esses teus alunos?
- Não muito, fazem progressos, mas lentamente. É difícil, porque o alfabeto é totalmente diferente… e além do mais alguns nem sabem ler ou escrever na língua deles.
- A sério?...
- Sim, alguns dos mais velhos. Mas apostam muito nos filhos – as famílias vieram juntas em muitos casos – e esperam que os filhos aprendam e consigam depois um bom emprego.
- Então não têm emprego, esses teus alunos.
- Não, não conseguem arranjar. E por isso ficam muito desocupados. Mas claro que têm uma vida aqui muito melhor do que a que tinham no país deles, isso nem se compara...
- E eles querem voltar?
- Querem. Na maioria querem voltar, acreditam que o país se vai reconstruir, reorganizar. Têm esperança.
E depois pergunta-me:
- Já imaginaste, Susana, estares numa situação em que o teu país não tem nada, está tudo destruído, nem reconheces os lugares onde sempre viveste, e só te resta fugir para um lugar desconhecido na esperança de sobreviver?
- Não… acho que nem consigo imaginar…
- Nós temos muita sorte, aqui na Holanda – continua – e eu tento não me esquecer disso nunca, da sorte que temos. E tentamos, eu e os outros voluntários, fazer estes refugiados sentirem-se bem-vindos aqui. Pelo menos isso creio que conseguimos.

Antes de ir buscar mais bebidas à cozinha, e continuando a não ser capaz de imaginar como se sentem os refugiados, eu ainda disse que também nós, em Portugal, temos muita sorte.

09/11/2017

Web-it Sum-it (lembrei-me)

Sento-me antes da hora numa das primeiras filas e entre cadeiras vazias, mesmo assim já passa das dez e penso no meu computador. Se o tivesse trazido adiantava trabalho aqui no colo. Só que a sala começou logo a encher com uma dinâmica muito boa e em menos de nada tinha já um eslavo à minha direita que cheirava um bocadinho mal e um jovem europeu à minha esquerda e um casalinho à minha frente mesmo a cheirar a chinês. Atrás de mim ouvem-se duas jovens a conversar em português, uma diz à outra que ele não devia ter feito aquilo no insta, achas normal?!, aquilo o quê não sabemos, que os acordes já habituais se elevam a anunciar a entrada de Paddy Cosgrave, para abrir mais um dia de Web Summit no Altice Arena!
Há vibração, claro que há. É magnífico estar aqui. O Paddy lá vem de t-shirt com as três montanhas do logo, não sei como não tem frio neste ar condicionado puxadote ainda por cima ele tão magrinho, e diz, vi aqui pessoas sentadas desde as oito e meia da manhã, por isso toca a levantar e agitar os ombros, mexer os braços, roda, solta, solta, e cada um de vós apresente-se aí a três pessoas, digam lá quem são e de onde vêm, e vamos começar!
O eslavo virou-se para o outro lado, portanto fiquei com o jovem europeu que é italiano – ah sim? tenho uma filha em Itália – que não posso ficar calada com estas coisas e ele todo admirado com isso e ainda mais quando eu lhe disse que no meu caso não venho de longe, sou mesmo uma sortuda aqui de Lisboa, o chinês do casal da frente virou-se para trás e disse-me que vinha da França mas vive agora em Londres e eu, eh pá, mas olha que pareces mesmo chinês, e sou de origem chinesa, diz então a rir-se, já sabemos que os chineses se riem muito e, falta um, do outro lado do chinês um homem bojudo de óculos e nome impercetível que vem da Jordânia e eu parece que nunca tinha falado com ninguém da Jordânia, três, já está.

E está muito bem, o Web Summit está mesmo muito bem.

02/11/2017

Loendros em flor

Hoje de manhã cedo fui meter-me em autoestradas umas a seguir às outras em direção a norte e em todas vi os loendros com dois dias de atraso. Eles dão flor entre maio e outubro teoricamente e as flores ainda estão lá muitas nos loendros. Tanto em rosa como em branco. E estão a contrastar imenso com os vestígios dos incêndios de um lado e doutro – tanto castanho e tanto preto, que o embaciado do vidro já não era só da chuva também era de mim.

Ao regressar a casa, pela hora de almoço, estaciono o carro em espinha no pátio da frente ao lado da carrinha daquela vizinha que parece estar permanentemente zangada com qualquer coisa, não se sabe o quê. E estaciono tão juntinho ao muro que delimita do outro lado, tão juntinho, que fui lá ver: um centímetro ou menos. O muro tem uma textura prometendo arranhar carros sem problema nenhum (tipo o meu) portanto este centímetro é muito aproximado. Não sei como fiz isto, eu que, segundo disse o vizinho das luvas na reunião de condomínio uma vez, parece que tenho medo de bater com o carro na parede, e tenho mesmo. Mas tenho muito mais medo desta merda muito grande das alterações climáticas e de a gente continuar todos a poluir tanto.

31/10/2017

Uma salva de palmas

O lançamento do novo livro de António Damásio na sua versão portuguesa - “A estranha ordem das coisas” - começou esta última manhã de outubro já o sol estava alto e o local do evento à pinha, como se costuma dizer. Gente em pé era aos molhos que os lugares sentados, sendo muitos, já não havia. Estimei oitocentas pessoas presentes, uma grande parte das quais alunos da escola secundária.
Durante o discurso esteve um silêncio contínuo na sala, a ouvir, todo igual. As palavras de António Damásio ligam os cérebros a que se dirige, o seu timbre de voz faz a massa de gente tornar-se uma, fruto de encaixes perfeitos das suas partículas, humanas. Terminou deixando-nos num transe uníssono, nem uma tosse se ouvia e, se os jovens não são de tossir nestas ocasiões, também os donos de cabelos brancos não o foram. Havia agora lugar para quatro perguntas de alunos da escola. A primeira foi posta e foi respondida. Foi pedida a segunda pergunta.
E é quando aquela senhora se levanta da assistência e começa a caminhar pela coxia que divide a plateia, dizendo urgências pouco percetíveis. Alguém da organização avançando para ela tentou detê-la mas a senhora desvia-se, continua a andar aproximando-se do palco, a senhora o que deseja, não pode, espere, pode esperar?, as perguntas são dos alunos…
- Não posso esperar, não – e para enfim, baixinha, cabelo curto, óculos quadrados, nenhum ornamento para além da urgência latente e, com voz suplicante mas firme, disse – professor António Damásio, o meu filho está no hospital entre a vida e a morte com um problema muito grave, eu já tentei de tudo, só faltava vir aqui para lhe perguntar, o professor deve saber, o que posso fazer mais por ele?

- Pode deixar aí o seu contacto e eu tratarei de encaminhar.

Estalou uma salva de palmas que se demorou a ecoar nas paredes altas do edifício. 

E deixo-a agora a ecoar aqui. Não podendo uma salva de palmas salvar o filho daquela senhora, salvou-a pelo menos a ela, naquele momento, de se sentir tão só na sua horrível dor. Tive a certeza.

24/10/2017

Um post e peras!

Continuamos na cozinha. Na cozinha há cores, cheiros, processos, químicos, mas quase sempre saudáveis, algum glúten contra o qual eu não sou, lactose fresca vinda de Espanha, lê-se na etiqueta, e peras. E peras é mesmo e peras. Uma pessoa apesar de ter lactose espanhola no frigorífico (a pessoa faz de conta que não sou eu) tem empenho em comprar fruta nacional, o que leva a pessoa a comprar sacos do tipo embalagem fechada que trazem muitas peras, mas que jeitosinhas. Pelo aspeto devem ser umas trinta. Mas tendo todas deitado pouco corpo, o otimismo trata do resto e a pessoa pensa – ah, isto comem-se duas de cada vez ou três.
Depois passam-se os dias, as semanas e as peras continuam no cesto a fazer vezes de fruteira em verde (as peras) adiando a hora de se darem a comer (o cesto, castanho). Sucede que veem as peras chegar e partir vários cachos de bananas e uvas pretas e brancas, comem-se muito bem, algumas demãos de laranjas de mesa, maçãs reinetas à grande (a pessoa adora maçãs reinetas) e várias batatas doces muito feias para a sopa (éne sopas). Até que um belo dia a pessoa chega à cozinha dando os bons dias às peras enquanto faz o café, já a pessoa conhecendo bem as da camada superior, olá peras, e eis que se nota perfeitamente que se passaram para o amarelo as peras. Todas (a pessoa inspeciona as camadas inferiores).

De modo que umas dezoito hão de atalhar para o lixo, uma vez que (1) a pessoa não teve sete filhas para dar conta da totalidade das peras em tempo útil, (2) os comensais residentes não se dispõem a arranjar uma indisposição de frutose mesmo sendo nacional e a pessoa gostava imenso de (3) saber como se viram as outras famílias não numerosas que também acolhem por tempos um saco de peras e peras!

19/10/2017

Creme (ilustrado) de beterraba e lentilhas vermelhas

- Então o que me querias mostrar, mãe?

Tirei o meu telefone esperto (embora não muito muito) de dentro da mala e busquei ecrã após ecrã, até ser exibido o texto pretendido: toma, lê isto.

Estamos sentadas junto à janela, frente a frente e frente aos nossos almoços, um de salada, o outro de hambúrguer com boa fama por isso ainda vá, batata doce e sumos naturais completamente vitaminados e coloridos. Olho o seu rosto sereno enquanto lê, as pestanas longas, os olhos grandes varrendo o texto no ecrã. A palavras tantas, solta uma risada. Depois retoma o ar sereno, que linda esta miúda, e continua. No fim da leitura, quando me devolve o telefone, pergunto:
- Então? Vamos fazer para o jantar?
- Vamos!
- O que te fez rir no texto, Saminhas, posso saber?
- Foi aquilo dos abusos físicos, mãe. Tu fazes exatamente o mesmo…

Ao cabo do almoço, antes de tornarmos a casa, passámos no supermercado: uma beterraba grande, escolho a maior para incentivo à intensidade do deguste, uma cebola do mesmo calibre, cenouras já lá temos, o molho de coentros frescos vai já este, falta a embalagem de lentilhas vermelhas, está ali.

À noite, encostamos ambas à cozinha. Eu atiro-me ao creme de beterraba e lentilhas vermelhas, nunca tinha eu ouvido o termo “estalar cebola”, mas segui o instinto quanto a isso, normalmente vou lá assim. A minha filha trata dos filetes de peixe espada preto. Os filetes beneficiam, por unanimidade, de parte do molho de coentros e levam tratamento à bulhão pato, ó mãe isto até cheira a conquilhas!

Quando mergulho a varinha mágica no caldo cozido depois dos quarenta minutos prescritos para passar o preparado a creme, oiço ao meu lado: ah, mas isso está muito líquido! Então não era para ficar puré?!...

- Não, filha, creme é espécie de sopa...

Mas estarei eu certa ou estará ela?



Para já confirma-se: é um belo creme, degusta o palato e degustam os olhos. Muito obrigada à Mãe Preocupada pela receita.

Quanto aos filetes à, tipo, bulhão pato, vamos lá dizer estalados em alho, azeite e coentros, adaptaram-se muito bem, eles, a batata cozida e, no meu caso, o copo de vinho branco.

14/10/2017

Ave Maria

Agora, na cauda da irritação que me elevou a ponto de gritar-te ao telefone, oiço Pink Floyd. As tonalidades desta música são para além do rosa, são para me ligar ao mundo urbano, e isso é tão real: acolhem-me as esperas nos semáforos, as luzes dos carros refletidas no asfalto da noite depois da chuva, acolhe-me o cheiro do monóxido de carbono dos autocarros que já viajam vazios a essa hora, o brilho do reclame luminoso por cima dos cafés ainda abertos na avenida, enternecem-me os nomes escolhidos sabe-se lá por que sonhos, e tu estás a milhas. Se me apetecer ponho-me já a caminho do São Carlos, simulo uma noite do próximo mês julho, é La Traviata, e a seguir claro que morrerei mais rica. Isto se morrer alguma vez.
Esqueces-te – tão cheio de ti te constróis – que te sei por dentro. Escusavas de vir para mim com a tua infinita fome de ti próprio, tamanha necessidade tens de te ouvires, encheres-te soberbamente - cuidado não rebentes; mas não o faças comigo. É inútil.
- Estás-me a falar assim porquê? – dizes, obtuso.
Ontem, ainda me lembro, entrei no dia ouvindo a Ave Maria de Bach no rádio velhinho. Um dos lugares mais belos do mundo, a Ave Maria de Bach. Desses onde nunca entrarás por causa do tamanho absurdo do teu ego. E Bach é um lugar em forma de música que me liga a mim à eternidade, que está para além do urbano, mas também isso não sabes o que é. Estar ligada à eternidade é ser mais forte, é, ouvindo Pink Floyd, escrever isto se morrer alguma vez.
Burro, continuas a deixar cair os teus dias em chão estéril.
Falo-te assim, grito-te, mas sei que não ouves nada para além do enorme vazio de que te vestes, achando que é esse o caminho da tua fama. Como é que ainda não viste que estás só. 

06/10/2017

The end (o post)

Brinquei para aí um minuto às casinhas com o blogue: pus-lhe um tema com figos para experimentar (do mostruário), o blogue ficou bem e a mim dá-me água na boca os figos, acontece-me há imenso tempo, mas depois nem pensar. É certo que o tema dos figos é de considerar para ao blogue aplicar, que lindo, ainda por cima cortados ao meio a deixar ver os veiozinhos rubros, ai jesus que lá vem o natal, mas não é que desapareciam os meus blogues da lista lateral nessa mudança e, mais, que eu vi muito bem: sumiam os seguidores! Os figos sim senhor mas de resto minimalista e eu olha olha, querias. Não chegámos a acordo. Portanto manter-nos-emos fiéis ao look out-of-fashion if you don’t mind and now, guys, what about going on in English, like, throughout the very post down to its very end, I do simply adore these very expressions and… all right, sure, this isn’t write, no, this isn’t right, let’s thus come back (happily ever after) to the cold cow, ou é aqui que a porca torce o rabo, eu ando é um bocado cansada. Hoje disse: sobrecansada. E apesar de a palavra não existir, há toda a verdade nela.
Entretanto fui arrancada ao processo criativo que se estende acima para ir apanhar jogadoras de vólei ao local do treino, que mudou, e eu preciso do meu telefonezinho esperto conectado à tecnologia que a gente já nem nota que traz no carro, os satélites ajudam-me a chegar ao sítio que fica por trás por trás por trás duns prédios, é dificílimo mas lá cheguei, e dizia que fui arrancada ao processo criativo para ir transportar as jogadoras e distribui-las por vários endereços diferentes, uma delas minha filha, está-se mesmo a ver, falam as jogadoras todas ao mesmo tempo no carro, e é alto que falam, olá mãe da Saminhas, como está, eu sou a mãe da Saminhas, nem elas sonham o que eu adoro aquele vibrar de vida, o bem que sabe ouvi-las discutir os mandos do treinador, mas que acabo com a cabeça em água, acabo, e se primeiro fui eu, agora é o post.

The end.

(o meu forte não são os títulos ou o meu forte não é os títulos - mesmo assim, este blogue não está nas últimas)

29/09/2017

Impressão offset

Acabo de constatar satisfeita o efeito benéfico da última atualização do quê, do software, posso dizer software, do meu telefone esperto. Foi parece-me que ontem. É que o dispositivo chega-me hoje a esta hora da noite com cinquenta e nove por cento de bateria em vez de quase morto, como andava acontecendo antes da benéfica atualização. Há dias em que gostava de saber mais dos mistérios eletrónicos e nanoeletrónicos, para esclarecer. Se este blogue não merece conversa melhor do que assim tipo esta? Ah pois merece.

Quem escreve em diários como eu faço, eu quer dizer, eu é em semanários, que esta frequência bloguística de diário tem pouco, sabe que de vez em quando está um tema muito periclitante para sair na escrita, um tema que até pode doer um bocado ao sair, que venha arrancado de células mais internas e ainda pode fazer sangrar tudo pelo caminho, quente e a queimar, quem escreve sabe, dizia eu, que se pode optar por avançar com o que vou chamar de tampão, para estancar um tampão é o ideal, como aquilo ali do parágrafo anterior.

De maneira que antes que o caldo se entorne passamos já para o segundo tampão, mais encorpado e resistente: eu tenho uma dúvida. Alguns cartazes desses de rua relativos à campanha eleitoral trazem duas ou mais fotografias de duas ou mais pessoas, respetivamente, podendo ler-se aqui opcionalmente candidatos em lugar de pessoas. Mas notamos, enquanto bocejamos ligeiramente parados nos semáforos observando uma dessas impressões offset, que as múltiplas fotografias num mesmo cartaz foram objeto duma montagem posterior, não notamos? Ora a minha dúvida expõe-se como segue: se estes candidatos duma ideia comum, juntos numa cor só, e num cartaz só (para reforçar), não puderam fazer equipa no momento da fotografia para o referido cartaz da campanha, vão poder fazer equipa em momentos posteriores, mais complexos, mais exigentes, mais tipo não sei quê?

23/09/2017

What's up?

Caminho ao longo da parede do edifício e confirmo no relógio que falta um minuto para a hora marcada, estou a ir bem que a porta é já ali à frente e, dentro, está a receção onde me devo anunciar. E é neste ponto que o vejo ali sentado no que me parece ser uma pedra no passeio, junto aos carros, a cabeça baixa. Tem uma camisola vermelha que contrasta em beleza com a sua pele cor de chocolate amargo, o cabelo espetado e uns jeans de um azul médio, constante. Terá idade para ser meu filho. Vejo-lhe os ombros sacudidos, oiço-o soluçar. Uma das mãos segura um dispositivo do género telefone esperto, na outra apoia a cabeça, o cotovelo repousa no joelho correspondente, este miúdo está a chorar muito, penso eu. Continuo a caminhar e à velocidade do pensamento vejo-me a perguntar-lhe o que tem ele que chora tanto, talvez a socorrê-lo, talvez a levá-lo a algum lado, talvez a cancelar o meu almoço. No momento em que vou estender a mão para lhe tocar no ombro, ele atira a cabeça para trás e dá uma gargalhada das grandes.
- Ah!... pensava que estava a chorar… – disse eu.
- Não!... estou a rir… é aqui duma coisa no whatsapp

O almoço decorreu como previsto. Aliás, melhor do que o previsto. Tranquilo, recheado de conversa de atualização e também de legumes e queijo para dar entrada ao naco de peixe ladeado de uma açorda especificamente aromática e doce, rematado o almoço com um folhado quente de maçã fazendo cama a uma bola rústica de gelado branco que descaía de propósito para um lado e que portanto não era exatamente uma bola. Quando a chef veio perguntar se estava tudo em ordem e ao nosso gosto, disse-lhe abertamente que sim, estava o repasto muito bem e está tudo em ordem: à minha direita estende-se a serra de Sintra encabeçada pela nuvem que ali ganhou o hábito de assentar, à esquerda avista-se o cabo Espichel para lá da linha curva de praias, leito que acolheu passos dinossáuricos para sempre preservados. Mas guardei para mim o miúdo, lá em baixo, sentado no passeio a rir. E não a chorar.

Sim, está tudo em ordem.

15/09/2017

Busca-polos

A loja chinesa que está implantada aqui no bairro tem absolutamente tudo. Atenção que sempre que lhe fui desafiar as referências do inventário, a loja ganhou: a ver se tem este tamanho de parafusos muito específico, ou agora esta lampadazinha LED de uma cor razoável que não tipo a duma câmara frigorífica industrial, ou ainda um cabo de esfregona com rosca na ponta em vez de ser de encaixe – tinha. E pauzinhos de cheiro, agrafadores, jarrinhos de vinho, temporizadores em forma de tomate mas também eletrónicos, candeeiros, alguidares para a roupa feitos em Portugal, sim, sim, em Portugal, e papel para a impressora em resmas de cem folhas. Tem pijamas, caixas de óculos, meias, meias são imensas, pilhas de todos os tamanhos e chaves busca-polos, há tanto tempo que eu não escrevia chaves busca-polos, a loja tem tudo. Hoje fui lá e noto em mim que gosto de ir lá. Em primeiro lugar, já não cheira tanto. Aquele cheiro comum a todas as lojas chinesas que deve ser dos químicos mal curados, trazendo as moléculas ainda retorcidas como se não tivessem tido tempo de se rearrumar na matriz a que pertencem, isso já não tem. O melhoramento no cheiro dever-se-á talvez aos alguidares feitos em Portugal (ou posso ter achinesado eu). Trouxe um cor-de-laranja com peixinhos em baixo relevo do lado de fora, muito adequado o alguidar e nem era preciso os peixinhos.
Em segundo lugar, o filho mais novo dos donos da loja costuma lá estar. Mas hoje não o vi.
- Não está o pequenino? – perguntei à dona (o filho mais velho estava metido dentro do seu telemóvel a um canto, com o bigode imberbe a querer crescer-lhe ali mesmo junto aos chinelos de quarto pendurados, há de todas as cores).
- Já tem escola - diz a mãe num português achinesado.
- Em que ano está ele? – pergunto.
- Quatlo… ai não sei dizer. – e ri-se um bocadinho.
- Quarto? - experimentei.

Enquanto fechava a gaveta de onde tirou o troco para me dar, confirmou, qualto, sim.

(se esta família estivesse no seu país de origem, talvez este menino com quem às vezes converso não tivesse tido a chance de vir ao mundo)

10/09/2017

A banana não quer saco

Ontem de manhã, achando que estava puxando do cabide o par de calças velhas de ganga das que não dá para ir trabalhar mas dá para ir ao carro buscar o telemóvel que lá ficou esquecido, pôr o lixo no contentor ou ir ao supermercado do bairro, estava sim puxando o par de calças ainda mais velhas, que só dá para a parte da ida ao contentor do lixo se for de noite para o caso de surgir algum vizinho respeitoso e me ver para ali assim. As calças rasgaram com os tempos. Primeiro na coxa direita, depois na esquerda. Para andar em casa é na boa, as minhas filhas até ai mãe que giras essas calças (e são). Pelas minhas contas foram mais de sete anos a formar rasgões pacientemente trabalhados e localizados onde pertence. Mas à tarde, para o supermercado, mudei então as calças e depois fui comprar batatas, café e uma sobremesa higiénica para o jantar com a Teresa, que está em dieta e eu também devia. Na caixa de pagamento estou atrás de uma senhora que pôs em cima do tapete das compras um saco de plástico fininho e translúcido com um cacho de bananas dentro. As bananas, para começar, envelhecem mais depressa dentro do plástico, asfixiam, transpiram, elas detestam e, para continuar, constituem um fruto que vem de origem revestido de casca própria, espessa e adequada à proteção do seu molinho e delicioso interior. Digo não digo, digo não digo. Mas mesmo dentro das calças certas, eu-não-disse-nada-à-senhora.

O sal de mesa já vai surgindo com micropartículas de plástico que o mar não quer mais e devolve à gente, tomem lá; o peixe que ingerimos, micropartículas de plástico ingeriu antes de nós, e as bananas dispensam o saco. Eu devia ter dito à senhora. Ou não devia?

06/09/2017

Post-it: uma borboleta pode causar um tufão

Enquanto uma porção da humanidade ainda não destruiu a restante parte com mísseis, bombas de hidrogénio e outros frutos do ódio, a vida vai continuando.

De manhã estava a casa silenciosa. Só está uma das minhas filhas que dormia ainda e que ontem à noite a hora a que chegou não sei qual foi. A outra filha está a veranear por diferentes paragens. Chego pois à cozinha já quase pronta a sair para a reunião intensa que durará todo o dia. Tomo o pequeno-almoço olhando o rio ao fundo; o rio corre indiferente ao mal que germina longe. Em cima da mesa, o bloco das listas de compras capta-me o olhar. Cebolas, pensos rápidos, orégãos, pão. A folha branca ainda tem espaço a seguir a pão. Então pego na caneta que jaz ao lado e escrevo em letras grandes, imaginando-a a abordar a mesa ensonada, logo depois de acordar, preparando o seu pequeno-almoço lento e tardio, eu nessa altura com o turbo do trabalho no máximo lá na reunião, que é sempre como eu faço, e dizia eu que escrevo em letras grandes isto assim: a minha filha é linda!!! Porque mais não cabe na folha da lista de compras. Depois fico a olhar as minhas letras que ficaram tortas, e acabo de comer. Corro a escovar os dentes, visto o casaco, enfio a mala do computador ao ombro, mais a outra mala dos papéis que vai na mão e, junto à porta, dou as quatro voltas à chave.
E só então é que vejo colado à minha frente o post-it amarelo: bom dia, mãe, e boa reunião!

Um post-it amarelo tão poderoso que se pode colar no coração. 



E agora olha, desafio cada leitor e leitora deste texto a escrever um post-it destes hoje ou amanhã, hoje e amanhã, como quiser e a quem quiser. Um que seja poderoso, que se cole no coração.

28/08/2017

kscsercsksksrscscscsrrscsksks

As nuvens já se haviam anunciado com os aviões a aterrar para o outro lado há dois dias mas hoje, pela hora de almoço, notei que aqueles entretanto voltaram ao sentido habitual, que é darem o trem de aterragem a quem circula pela badalhoca da segunda circular, porém que não nos safámos duma fabulosa trovoada, não safámos. A reunião começou bem na hora em que os trovões concordaram com os relâmpagos em virem ao mesmo tempo. O trovão completamente ensurdecedor, traaummmm, mas ficou lá fora, já o relâmpago, essa descarga de energia elétrica abrindo um caminho mais curto da ordem para aí das dezenas de milhar de volts, ou centenas, entrou por uma tomada na parede da sala. Fez kscsercsksksrscscscsrrscsksks muito alto como se também estivesse na ordem de trabalhos. Por sorte estava agarrado à tomada apenas um cabo de computador portátil que por causa de ter ali por alturas do meio comprimento um agradável transformador muito computer-friendly em trovoadas do género, o respetivo computador praticamente não deu por nada e lá se safou de fritar as eletronicazinhas bastante delicadas que ele tem, com o raio tresmalhado. Ora a meio da tarde de trabalho a trovoada já tinha saído e a minha cliente disse que estava na altura do nosso café e estava mesmo. Levantou-se e, enquanto eu pus os óculos de ver melhor ao perto para ler uma folha que ela acabou de me estender, foi tirar dois cafés à máquina que trouxe para a sala. Tendo a máquina ficado portanto com menos dois cafés, de maneira que é fazer as contas.

Quanto ao texto, pergunta-se: o que trouxe a minha cliente para a sala?

(este é um post cem por cento unissexo ou como se há de melhor dizer, para toda a gente e... certo, certo, não se fala mais nisso)

25/08/2017

Macondo e depois dar um pontinho

Foi cá um dia de praia, este! Só do que eu não gosto na praia, arrumamos já isso, é o protetor solar mesmo que seja dos de pulverizar. É tão aborrecido aquilo, o protetor adere a tudo e à areia, que na praia há muita, e depois arranha a espalhar, etc. Mas de resto adoro. Adoro por exemplo ler na praia e logo me resolvi a levar uma leitura tão principal como Cem Anos de Solidão: a verdade é que ainda não o tinha lido nunca. Esta leitura de boa que é, faz-me ficar a oscilar entre continuo aqui no ripanço tremendo a ler ou vou mas é dar um mergulho.
Mas quando fechei o livro para ir à água, fui. Estando um bocado fria, embora não muito muito fria que fizesse doer os ossos, entro devagar. Numa ondazinha que vem ter comigo parece que a dar-me as boas vindas, fazendo-se verde-água (daí o nome) na crista, um verde-água a pôr-se ainda mais transparente, vejo um peixe que até vou dizer um peixaço nesse dorso da onda, uma beleza ali a passar, mesmo lindo. Algumas ondas depois já estava completamente dentro do mar, toda molhada com o cabelo incluído, boiando a olhar o céu e a olhar as nuvens, poucas, a deixar vir as ondas em crista, uma e depois outra, subindo nelas, descendo na cauda, nas maiores elas por cima, nas menores eu.
De regresso à nossa instalação de chapéus, toalhas e a bola de vólei que faz tipo parte da família, as minhas filhas estão completamente pretas a vinte e cinco de agosto - é normal. É normal e é muita praia com elas mas não comigo. Deito-me ao sol a usufruir do contraste com o mar que parece que trago dentro, um frio que se quer quente, um filme de gelo derretido debaixo da pele, falta-me aqui uma poesia para dizer aquilo que já toda a gente sabe mas ainda assim falta-me. A verdade é que não há lá muitas coisas melhores que esta, embora haja algumas. Estou por isso toda feliz, apetece-me a vida, e vejo pelo canto do olho uma veraneante ali em biquíni e em pé a conversar num telemóvel, quando a noto tão branca em contraste, outro, com as minhas filhas pretas, que comunico assim: aquela senhora está esverdeada de tão branca.
- Qual senhora?...
- Aquela, em pé, a falar ao telefone.
- Ó mãe!! Tu estás muito mais branca do que aquela senhora!!!
Portanto fechei o canto do olho e dediquei-me a sentir somente o contraste térmico até me secarem as mãos e tornar a pegar no livro, reentrar em Macondo e deixar-me ir.
À saída do dia, para rematar com uma cereja no topo deste bolo tão macio e delicioso que foi a praia, nós equipadas com a instalação desmontada e às costas, chapéus, cesto, toalhas, a bola de vólei debaixo dum braço, subimos o areal. Antes daquele momento em que já é mesmo para calçar as chinelas se não queremos espetar os pés em catos secos, pedras ou pauzinhos, está um casal que já passou dos sessenta, ou sessenta e cinco, sentados à sombra dum chapéu de sol de várias cores, cada qual na sua cadeira de praia. Ele observava-nos a nós, creio, a subir com as tralhas, ela cosia qualquer coisa, dava um pontinho, como dizia a minha avó, que gostava de se sentar a dar um pontinho. Eu olhei-os e, terá sido recordarem-me a minha avó ou terá sido aquela paz de estar que eles me ofereceram, sorri e ele viu. Então, para fazer um nadinha parte deles, eu disse:
- Assim não perde tempo! – apontando com um inclinar de cabeça para ela, que estava concentrada a enfiar a agulha no pano às florzinhas, puxando a linha devagar.
Mas riram-se os dois e ele confirmou.
- Ai não perde, não!
Quando chegámos ao carro coberto de pó, já as minhas filhas tinham ouvido o quanto a bisavó delas gostava de se sentar assim, concentrada, a dar um pontinho.

20/08/2017

Ah, o Algarve em Agosto...

Imprimi numa folha de papel branco que fica arroxeado quando o sol lhe incide de viés à volta das três e meia nesta altura de agosto, isto porque a impressora está sempre a postos com o papel metidinho no alimentador dela e está à janela (ai que ia rimando), mas então imprimi numa folha um quadrado preto com um A aberto a branco, porquê? Porque, devido à intensidade com que uso o meu teclado (sem fios) para escrever o trabalho que é todo ele muito de se escrever este trabalho, o A já foi e o S está para ir também (para onde não sabemos). De modo que imprimi o quadrado e ando a ver de que modo o acomodo ('tá querendo rimar) na tecla com jeitinho que é para não ficar sem tecla, que já uma vez fiquei sem uma, mas não era o A, por causa de tentar arrancar uma migalha de grande porte que estava um pedaço debaixo dessa tal tecla e outro pedaço estendia-se num interstício a caminho de teclas vizinhas e eu torci o teclado um bocado para incentivar a migalha a desalojar-se com a ajuda da gravidade, o teclado de cabeça para baixo a abanar vigorosamente, claro, mas o que foi acontecer foi que eu arranquei a tecla (e depois a migalha) e mesmo com vários vídeos tutoriais visionados posteriormente sobre “Cuide do seu teclado: como reencaixar aquela tecla que se soltou!”, não foi possível repor a tecla, aqueles vídeos são uma treta tão boa como os cremes rejuvenescerem as mulheres (os homens não sei). Ela estava disposta a encaixar só de um lado, a tecla, ou só de outro, só de um lado, ou só de outro, só de um lado, ou só de outro, mas como isso não queremos, acabou dentro da gaveta de cima, num cantinho, no final do dia. Isto foi há dois teclados atrás, no tempo em que eu comia bolachas e ainda não tinha incorporado estes quatro quilos que agora não me largam e não são meus, são para devolver. Vou tentar colar o A na tecla que perdeu o dela e como, por um lado, o vizinho S também está de saída, o assunto dá em post.  

Por outro, ainda não fui à praia. 
(um título da série "Ah, o Algarve em Agosto...", por causa do A, evidentemente, e de prometer uma coisa e depois não ser nada isso)

15/08/2017

Um bocado esquisito este post

Havia pousado em Lisboa há poucas horas quando torno a sair de casa lançando-me na rua a pé ignorando o carro na garagem numa continuação já de muitos dias sem se mexer, quero crer. Nem sequer o vou visitar, a garagem é um lugar tão feio. Há estes momentos em que me chega um rasgo de vontade de não ter carro nenhum. Vou assim nesta filosofia descartável à primeira necessidade, evidentemente, pelo meio do agosto macio e quentinho, quase deserto, e vou com os pés a escorregar nas sandálias que me estão um pedaço largas mas foram caríssimas e são mesmo lindas. Já sabemos que sapato de mulher ou é lindo (e todo desconfortável, chegando mesmo a proporcionar o desconforto de nos atirar ao chão se for preciso) ou é um conforto muito doce mas parece sapato de homem, mesmo que cheio de purpurinas cor de rosa, que isso não interessa. Então vou assim pela rua a escorregar nas sandálias e a entreter-me com o meu telefone esperto, que anda todo queriduras comigo não sei porquê, mas tipo talvez para fazer pirraça ao carro lá sozinho no escuro e na companhia das caixas de caçar ratos. Hoje por exemplo recebo nele uma mensagem muito linda sobre uma promoção a começar amanhã numa espécie de loja e eu mesmo a precisar duma compra daquelas, ai jesus, logo eu que sou contra promoções por causa dos nervos que me dá tanto lixo informativo. Este post está um bocado esquisito, mas é posts destes que eu mais gosto de escrever, que engraçado. É que a gente andando no carro vê um pior nas pessoas, não vê? Eu mesmo a pé e a esforçar-me para continuar dentro das sandálias, vejo. E vejo um automobilista a irritar-se imenso, imenso, imenso com um taxista ali à frente porque este parou para largar duas passageiras que iam lá dentro e as senhoras já não eram assim tão novas. O automobilista naquele excesso de irritado pespega-se parado ao lado do taxista a largar gritos incompreensíveis (felizmente) e a seguir acelera para dentro do meu próprio bairro a uma velocidade para aí quase o dobro do limite indicado na tabuleta. Portanto pensei no âmbito da minha filosofia, ora cá está, ao volante a pessoa revela-se pior: este exemplar histérico quer regras para o taxista cumprir mas para ele próprio não é preciso nada disso, é primeiro parar na via a importunar enquanto larga a gritaria dele e segundo é acelerar para dentro do bairro feito autoestrada.

Terceiro e por falar em sapatos, tive esta boa ideia ainda dentro das sandálias: automobilistas dedicando-se muito a serem ridículos talvez lhes caia bem um tratamentozinho adequado do género do abaixo sugerido.

09/08/2017

O Steinway, a gola e o ferro

Anton veio jantar. Chegou com a habitual pontualidade que se fosse britânica não seria mais exata. Ajudei-o a despir o casaco fino de verão, que pendurei no vestíbulo. Entrou e, quando se sentou na cadeira que lhe estendi, notei-o cansado.
- Estás cansado – verbalizei.
- Sim, um pouco – riu-se – estou a ficar velho – acrescentou.
Nasceu em Amesterdão há noventa e seis anos e de vez em quando diz que está a ficar velho.
- Hoje despedi-me dum cliente de mais de quarenta e cinco anos – anuncia.
Eu tenho de traduzir os quarenta e cinco mentalmente, que em holandês se diz ao contrário, cinco e quarenta.
- Quarenta e cinco - repeti.
- Sim. É um belo piano de cauda, aquele, um Steinway. Mas foi a última vez.
- E sentes-te triste? – perguntei.
- Sim, claro. É triste. Agora cada cliente que visito é a ultima vez.
Ainda trabalha no seu ofício de sempre, pianos. Mas desde há uns meses anda a despedir-se: de cada vez que vai afinar um piano, comunica ao cliente que já não volta.
Falámos ainda um pouco sobre o seu trabalho na fábrica de pianos, que fechou há décadas. Fazia controlo de qualidade e arranjou no chefe da produção um inimigo, ele queria produzir muito, mas era preciso rejeitar os pianos que não estavam bons, diz Anton.
Hoje, por ser verão, vem sem gravata. A camisa de manga curta tem gola de abotoar, mas noto que os botões estão fora das casas. Mentalmente revejo a senhora baixinha, asiática, que lhe faz a limpeza do apartamento desde que vive sozinho depois de ter enviuvado, há uns anos. Cruzei-me com ela uma ou duas vezes, e agora lanço sobre ela a responsabilidade desta pequena falha que, num homem que usa gravata todos os dias exceto quando o calor aperta um bocadinho, é uma considerável falha. Mas para não ser injusta com a senhora asiática nem sequer mentalmente, e porque sei dizer passar a ferro em holandês, perguntei:
- Quem é que te passa a roupa a ferro, Anton?
- Eu mesmo.
Terei certamente aberto muito os olhos e levantado as sobrancelhas, porque ele se chegou um pouco mais a mim e querendo talvez amenizar a minha admiração, baixando a voz, confidencia:
- Mas não passo cuecas nem meias…

Lembro-me de já ter ouvido, a algumas pessoas com um terço desta idade, dizer que não sabem passar a ferro. Tirando o esquecimento de abotoar a gola, é possível aprender-se a passar a ferro aos noventa anos. Caso se queira, evidentemente.

02/08/2017

Esgadanhei-me é tão feia

Quando eu era miúda, e durante uns anos, ia na “carrinha” do colégio para casa, depois das aulas. Havia umas quatro ou cinco “carrinhas” (daqui em diante designadas apenas por carrinhas) cada uma destinada à sua volta na zona da cidade que lhe fora atribuída. Aguardavam por nós, passageiras, no pátio traseiro do terreno do colégio. A minha era a da dona Efigénia. Cada carrinha tinha a sua dona e isto embora possa parecer, não se trata dum café, repare-se que dona está a sair sem maiúscula se faz favor. A dona Efigénia, vamos lá a ela, era muito feia e era má. Eu preferia ir na carrinha da dona Glória, onde ia a minha amiga Ângela, mas essa não passava pela minha casa. A dona Efigénia também não gostava de mim. Um dia foi dizer à minha mãe, a estúpida, não sei como, já que a minha mãe nunca estava em casa quando a carrinha chegava, foi dizer que eu era uma mosquinha morta. E porquê uma mosquinha morta?! Porque era sempre a última a entrar na carrinha. 
- Porque és sempre a última a entrar na carrinha, Susana?
- Porque fico à espera que as outras raparigas entrem.
- À espera porquê?...
- Porque elas dão empurrões e puxões e encontrões, todas querem ser a primeira a entrar. E por isso eu espero.
Quando entrava, em último, havia lugares vagos de sobra, a carrinha era mesmo comprida. Sentava-me e ia olhando o caminho, que não era curto. Como não tinha amigas nessa carrinha da dona Efigénia, olhava pela janela sem falar. Quando passava pela casa em ruínas, uma casa grande e medonha que havia no cimo de uma pequena colina ao lado da estrada, pensava que era ali a casa do papão. Toda a gente sabia da existência do papão, que era tão mau e perigoso como hábil a esconder-se. Mesmo que eu espreitasse muito para dentro da casa em ruínas e virasse a cabeça para trás o mais que podia até a casa desaparecer ao longe, nunca o consegui ver.
Lembro-me que no dia seguinte àquele em que calhou o diálogo com a minha mãe acima reproduzido o melhor possível, pus-me à frente à porta da carrinha da dona Efigénia, e mal a porta abriu, esgadanhei-me toda (esgadanhei-me é tão feia como a dona Efigénia) e fui a primeira a entrar. Levei umas caneladas e cotoveladas, empurrões, mas ia preparada, retribui cotovelos com força e entrei. Desejei que ela me tivesse visto, para perceber as coisas, mas não sei se viu. Depois, nos outros dias todos e até conseguir crescer e livrar-me daquela carrinha odiosa, voltei aos meus costumes e a ser a última a entrar. E não houve mais recados da dona Efigénia. A burra (claro que ela também era burra).


(Mas porquê isto agora? Porque estava a notar o meu blogue ainda ali com o post de há imenso tempo, um post que desencadeou outros também servidos em hashtag, muito bonitos, e depois todos esses outros autores já escreveram mais coisas, várias, bastantes, boas, e eu ainda assim.)

25/07/2017

#parecesasvelhotas

- Ó mãe, pareces as velhotas!
Trabalho muito tempo junto a uma das minhas janelas. Uma ou duas, mas mais uma. E enquanto penso – o meu trabalho requer um mergulho interno, ora agora, ora mais tarde, para pensar. Por acaso adoro. E enquanto penso, dizia eu, deixo os olhos caírem lá em baixo na rua, eles parece que pedem um alongamento destes e digo assim (hoje disse assim), olha lá vai o vizinho das luvas outra vez, tem a mesma camisola de ontem!
- Ó mãe, pareces as velhotas!
O vizinho das luvas é das-luvas porque muda os pneus furados dos seus carros calçando luva branca de algodão, que eu meti uma vez conversa para chegar perto, então vizinho teve um furo, e poder confirmar o algodão. Até contei no blogue porque achei aquilo tão giro.
- Ó filha, vê-se que é a mesma camisola por causa da cor! Eu não digo que seja mal ele usar a mesma camisola, mas com aquela cor vê-se logo e isso é o que eu digo.
Também observei da janela que ele (a cor é um rosa clarinho), ao passar por um dos seus carros – que não cabendo na garagem está na rua, todo lavadinho, estão sempre lavadinhos aqueles carros – olha muito o carro, muito o carro, e até dá uma boa meia volta em torno da viatura (para não repetir carro) a ver qualquer coisa, mas isso, da meia volta, já não disse à cachopa minha filha, para não, de novo,
- Ó mãe, pareces as velhotas!
E pareço, por acaso pareço.

Mas não sou, se fosse #nãotinhaumamodernicedestasnofimdumpostnemnotítulopoisnão?

(próximo post pode bem ser: E tu, já tens o teu próprio #[oteupróprio] ?)

20/07/2017

That's life

Enquanto aguardo que o portão da garagem percorra, lentamente e com um nhéééééc muito conhecido, o curso vertical que fez sabe-se lá quantas vezes (ninguém sabe), deixo o olhar assentar numa gota de água que desliza do lado de fora do vidro do carro. Não choveu: a gota resta do esguicho que ali impus para o para-brisas ir limpinho arrumar-se no lugar dele. O portão toma o seu tempo e eu largo a gota quando ela se espraia na horizontal da borracha limpadora que ali repousa e viro-me para o ouro lado – lá vêm o pai cego com a filha adolescente passeando o cão branco de braço dado, conversam. No céu azul um avião segue subindo. O rádio do carro, que vem ligado desde o centro da cidade, emite a canção que veio ajustar-se a este quadro e que se pode encontrar abaixo. O momento está no ponto e a cereja do seu topo dentro da mala: levo, quietinha ali, encostada à carteira, à caixa dos óculos e ao pacote de lenços, “A Sibila” de Agustina Bessa-Luís. Ando deste modo antecipando o prazer que lhe adivinho há dias, porque ainda não demos início ao enlace da leitura eu e ela. Mas, na primeira página esquerda que não foi deixada em branco, posso avançar, leem-se as palavras “Fixação do Texto”. Não lhes conhecendo o significado exato, ensaio imaginá-lo e é certo que acabarei a pesquisá-lo. Por agora: foram Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira os autores dessa outra arte, que o portão já alcançou o fim do seu curso e o carro deixo-o deslizar rampa abaixo, ele vai muito bem.


(esta canção também me lembra um filme de quinze minutos que vi no verão de 1992, em Sevilha, no intervalo de um calor abrasador que fazia no recinto da chamada Expo, dentro do pavilhão dos Estados Unidos da América - chorei quase convulsivamente, palavra que foi, eu, e acho que toda a gente - gostava tanto de encontrar esse filme)

18/07/2017

A seguir a um café

Por causa da novidade que este ano foi, primeiro, cobrar iva aos meus clientes e depois aprender a entregá-lo a quem de direito, o estado, quer dizer, Estado - sendo composto por tanta gente o melhor é não lhe negar a maiúscula – arranjei uma contabilista. Por acaso até arranjei duas, que da primeira não gostei. Dispensei-a logo mais ou menos à cabeça, ela ficou um bocado zangada comigo (mas não tanto como eu com ela), e de maneira que procurei a segunda. Encontrei-a num escritório mesmo ao lado de uma fieira de prédios, um deles tem um café.
Entrei, empurrando a porta diretamente da rua. Dentro o espaço é amplo. Tem pilhas de papéis em todas as secretárias à exceção de uma e dentre elas vejo surgir a minha nova contabilista, que traz um sorriso cordial. Cumprimentamo-nos, é a primeira vez que nos vemos. Ela encaminha-me para uma sala de reuniões e tratamos dos meus assuntos. O que a mim parecia um molho de brócolos num leque de incertezas, a ela apresenta-se como uma situação do tipo velha amiga e, com muita calma, segurança, tranquilidade e sempre formal, desatou a minha contabilista ali os nós para mim. Saí toda aliviada, afinal a autoridade tributária talvez não me odeie nem me queira castigar por exemplo por eu ter nascido, ou seja, aquilo não é por mal. Entretanto vamos na terceira reunião e a formalidade continua mas eu já sei ao que vou. Uma paz assente em pilhas de papel, as secretárias, o espaço amplo, a tranquilidade, a possibilidade de acreditar, quando de lá saio, que sou uma contribuinte feliz, digamos com futuro sorridente. A minha relação com a autoridade tributária, grande nome, que até há pouco tempo se pautou por abundante estabilidade pode dizer-se a roçar a monotonia, tem agora altos e baixos e nos baixos eu vou lá a correr à minha contabilista. Ela sorri ligeiramente mantendo-se tranquila, formal já disse, portanto não se assustando com nada. Sentamo-nos e depois guia-me no preenchimento dos campozinhos no sítio lá do portal, vai falando baixo, está sempre serena (adoro ver e com sua licença também tomo notas). Voltei lá na semana passada. Como cheguei uns minutos antes da hora marcada apesar das voltas para estacionar o carro decentemente, fui ao café da fieira de prédios tomar um. Dali são meia dúzia de passos até alcançar a porta, que empurrei, lá vem ela do fundo dos papéis, o sorriso cordial, boa tarde, como está? Cumprimentamo-nos, já se sabe que é beijinho beijinho mesmo na formalidade, eu parece que com receio de a incomodar na sua paz.
- Esteve a tomar café.  
- Estive…
- Nota-se, cheira.
- Ah, desculpe…
- Desculpe nada, que eu adoro esse cheiro, adoro! Uma pessoa até fica com outra disposição!
E depois, sim, claro que desatou os nós que eu levava, a carta da AT que agora não escrevo por extenso e que vinha bastante amachucada de eu tanto a estudar, pois então preenchemos os campozinhos, escrevemos uma situação, ela explicou-me por que motivo recebi aquilo, é normal, nada a temer, saio daqui sempre mais leve. Mas desta vez teve Ricardo Araújo Pereira, mixórdia de temáticas, Facebook, Facebook!, férias e afins, idades dos filhos respetivos e características inerentes, uma ou outra cena familiar, enfim, estive vai não vai para lhe dizer que adoro óculos de massa vermelha, ela tem uns, mas isso fica para a próxima.

Que não sei quando é. Só sei que a seguir a um café.

(Este post tem um erro, mas é difícil de descobrir - não tendo sido propositado, não o corrijo, a ver se alguém o quer encontrar)

13/07/2017

Oito minutos

Fui encontrar as duas no quarto de Muzi, a mais velha, em conversas de irmãs. Posso entrar ou são segredos?, não, disseram, podes entrar, mãe. Logo Saminhas, a mais nova, me pediu que lhe massajasse as costas, mãe faz-me lá uma massagem nas costas. Então põe-te a jeito. Ela pôs-se e os meus olhos, enquanto os dedos pressionam músculos e o que houver em redor, nas costas, bateram nos objetos pendurados que a irmã espalhou pela parede, recordações de momentos e outros temas bastante importantes.
- O que é aquilo? – apontei com o queixo para um destes objetos que não sei descrever convenientemente, uma coisa pendurada com letras.
- Aquilo? Foi da festa das flores, lembras-te?... – responde Muzi.
- Lembro. Aquela festa à qual te fui buscar e fiquei de mau humor? – era uma festa em tempo de aulas, a meio da semana, até tarde, sou contra - mas hoje em dia os universitários festejam muito muito tudo tudo e nada nada também festejam.
- Sim… - confirma Muzi a inclinar a cabeça e levantando as sobrancelhas em desaprovação do meu mau humor.
(não nos esqueçamos que a massagem está em curso na outra filha)
- Claro, chegaste oito minutos atrasada ao carro – recordei-lhe.
- Mãe, por oito minutos, oito! – ainda lhe dói, não foi assim há tanto tempo.
E então a dona das costas sofrendo massagem usa da palavra dirigindo-se à irmã.
- A mãe precisava era de um grupo de apoio para pais de adolescentes.


(Isto traduzido em português quer dizer que a mãe, eu, precisava de ver casos graves na adolescência para não ficar de mau humor com um atraso de oito minutos a seguir à meia-noite)

Não temos apps para isto

Aborrece-me de cozer o bacalhau. Mas apanho-me sozinha a jantar, que é muitas vezes que me apanho, e vai de cozer uma posta de bacalhau do salgado e depois dessalgado (não se percebe lá muito bem, mas é assim que se faz ao bicho) que só eu é que gosto de o comer cá em casa. Então de cada vez que me deito a cozer uma posta deste belo fruto do mar com uma batata no tacho ao lado, temos o caldo entornado (não o da batata). Temos porque ponho a posta na água, dentro do tacho, ligo o fogão e depois opto: ou espero um tempão ali em pé a contemplar o bacalhau aquecendo-se todo despacito e a aborrecer-me que nunca mais acaba, ou, boa ideia, vou-me embora sem observar o processo, otimista género vou-mas-é-estender-a-roupa-e-já-cá-venho-seu-maroto, mas a roupa é mais que a conta, e o caldo entorna sempre, o do bacalhau, evidentemente, sempre. No seguimento, vem o fogão para limpar da água peganhenta e malcheirosa, não adoro lá muito. Nem adoro lá muito, nem há apps para isto não sei porquê. Se fosse ao almoço, ainda me punha à janela enquanto vigiava a fervura da água, engendrando modos de ver o papagaio que segue entretendo o bairro com a sua palração ininterrupta o dia in-tei-ro e eu continuo querendo ir arrancar-lhe uma pena das verdes para castigo, que ele doutras não arranja, só que isto do bacalhau dá-se mais ao jantar. A essa hora está o papagaio recolhido dentro do quiosque das flores, fechado à chave, caladinho que nem um rato, sozinho no meio das rosas, gladíolos, gerbérias de várias cores, vendem-se muito bem, margaridas, agora também em azul, petúnias nesta altura do ano e coroas imperiais. Mas coroas imperiais não tenho a certeza.

05/07/2017

O quadro

Não sei que efeitos terá uma infância sem quadros nas paredes. A minha, feliz de mim, teve-os. Neles muito viajei, nalguns ancorei ensaios de eu (tinha escrito de mim mas ficava mal a repetição) em versões paralelas.

No quarto dos meus avós, um quinto andar de uma perpendicular à avenida da República de Lisboa, havia um quadro fascinante. Não era grande nem pequeno, mas era fundo. Sempre que me apanhava sozinha com ele, fixava-o bem e entrava. Era um quadro silencioso e escuro, um quadro só e triste. Era também perfeito para uma tal versão paralela porque era a antítese de mim. Além disso, ninguém, absolutamente ninguém, parecia reparar nele (só eu); era portanto um quadro ignorado. Estava numa parede por cima da cómoda que ficava aos pés da cama. Mostrava uma pequena casa de pedra sem janelas (e não tendo janelas não tinha nada), em avançado estado de ruína (quer dizer, tinha de certeza bichos) e toda escuridão (por exemplo, cobras e ratos). Havia também uma nora, totalmente perra, inerte, junto à casa (a nora não tinha importância). A fazer-lhes uma sombra permanente estava uma frondosa árvore em grande plano, cheia de folhas verde-escuro, quase preto, secundada por muitas mais que se desvaneciam para longe (o fundo do quadro) desenhando a margem de um rio que banhava a casa e explicava a nora. O rio, esse, corria vivo (óbvio), a água tinha espuma branca aqui e ali e claro que era fria ou completamente gelada. O céu estava carregado de nuvens escuras mas ainda não tinha começado a chover (nos quadros nunca chove) e eu ficava cheia de frio e de tristeza, de medo, de solidão, ficava perdida e quase morta dentro desse quadro. Mesmo assim, mantinha-me lá. Ganhava coragem e entrava para dentro da casa, para encontrar os bichos que não se viam (cobras, já disse, e ratos), alguns mortos. Também para sentir o cheiro a mofo podre e o frio gelado nos meus ossos. Ficava no quadro até já não aguentar mais o ensaio de bravura a que me submetia. E então tomava a saída. Deslizava o olhar para a moldura dourada que o aprisionava, toda trabalhada em muitos relevos, refletindo brilhos nas curvas da madeira pintada. Aí, respirava fundo primeiro. Depois, ia a correr para junto da minha avó.

(este post nasceu deste outro, que me reavivou a memória, embora o tema se desvie um bocado, não muito)

01/07/2017

Oldeberkoop (no supermercado)

Quando o barco entra, a deslizar, no pequeno porto, reconheço o lugar. Já cá estive há sete anos, precisamente. Lembro-me de uma particularidade do supermercado que na altura me ficou por explorar, mas de hoje não passa. O pequeno porto oferece serviços de apoio de lavandaria e duche quente, entre outros, e podem levar-se bicicletas emprestadas ao centro da pequena cidade para, por exemplo, ir ao tal supermercado. Escolho a bicicleta que tem o selim na posição mais baixa: se em Portugal terei estatura média, na Holanda o caso é diferente. Mesmo assim, preciso da ajuda do lancil do passeio para me pôr em cima dela e começar a pedalar. No máximo chego com uma biqueira de sapato ao chão, uma de cada vez. Os velhinhos passam por mim a pedalar depressa, trrimm trrimm, ok eu espero. Dou umas guinadelas no arranque devido ao desajuste de alturas, mas depois vai. Lembrava-me muito bem deste sistema de travagem, interessantíssimo, que é o de pedalar para trás, incentivador de uma queda lateral no fim da viagem para uma pessoa como eu: ou se trava ou se põe um pé no chão – para quem pode – ainda em andamento, claro. Mas o supermercado não fica longe. As casas em pedra escura, telhado preto, ajardinadas, janelas e portas floridas, são belíssimas. A cidade está em ordem, tudo arrumado no seu lugar e isto, curiosamente, confere-me certa confiança em cima da bicicleta demasiado alta e a travar daquela maneira maluca, é como se aqui ninguém pudesse cair, nem sequer eu. Antigas e algumas com dizeres em letras serifadas por cima da porta principal, as casas atraem-me o olhar. Porém, não estou capaz de ver nada com vagar, muito menos ler, preciso de pedalar a olhar para a frente não vá vir do outro lado um velhinho disparado, ou velhinha, e zás ou coisa assim, deus me livre. E parar é o cabo dos trabalhos. E depois recomeçar também.
Chegando ao supermercado, ensaio a travagem com sucesso, alço uma perna por cima do quadro da bicicleta e salto para o outro lado ainda um pouco em andamento, é o melhor que consigo. Depois abro o descanso já com o veiculozinho parado, finalmente, e tranco a roda traseira, meto a chave no bolso. Adoro isto de trancar uma bicicleta para ninguém a roubar quando na verdade podia roubá-la eu se quisesse, a chave foi só tirá-la lá do sítio onde se lava a roupa, mas claro que não quero. Entro no supermercado e levo dois fitos, o óbvio: materializar a curta lista de compras em produtos para dentro do carrinho, e o outro: observar os empregados deste estabelecimento - há sete anos, quando cá estive, eram todos pessoas com deficiência. Faço então o percurso de acordo com a lista que levo na mão, bananas, maçãs, tomate, iogurte, pão e cruzo-me com um empregado que está a fazer reposição numa prateleira. Tem seguramente mais de dois metros de altura, é incrivelmente magro e sim, é portador de deficiência, não há dúvida. Falta ver na caixa. Só há uma caixa e estão lá duas pessoas: um rapaz a passar os produtos no registador e uma rapariga sentada atrás dele aparentemente a aprender o ofício. Coloco as compras em cima do tapete e antes de ter oportunidade de olhar bem para eles, não quero ser indiscreta, já o rapaz se está a levantar, leva os sacos de maçãs e tomates e o cacho de bananas nas mãos, diz qualquer coisa como era-preciso-pesar-as-frutas, e vai ao centro da loja, vejo-o daqui, fazer as pesagens que eu devia ter feito na balança que lá está para o efeito. Peço desculpas à rapariga aprendiza que aqui ficou à minha frente e ela diz que não tem importância, sorri. São ambos, também estes, pessoas com deficiência.
Acomodo as compras pendurando-as no guiador da bicicleta, que está onde a deixei tal como se fosse minha, destranco a roda traseira e uso de novo o lancil para o arranque da viagem. Não sem antes deixar passar a carrinha branca que lá vem, preciso da estrada toda para cumprir os ziguezagues iniciais.


(depois de devolver a bicicleta ao lugar de onde a tirei e pendurar a chave na casa das máquinas do pequeno porto, fui consultar: trata-se de uma cadeia de supermercados com lojas pequenas, fora dos grandes centros, que emprega pessoas com certo grau de deficiência, pessoas que têm mais dificuldade que as outras em encontrar trabalho - curiosamente, nunca antes me tinha acontecido um colaborador de caixa se levantar do lugar e ir de imediato fazer a pesagem da fruta por mim)

28/06/2017

Carga de água parece um bom título

A tarde instalou-se numa tranquilidade plana a perder de vista como se costuma dizer, ou pelo menos a minha mãe costuma dizer (mas não foi hoje). Contemplo o movimento oscilatório do barco relativamente à firmeza de solo onde pasta uma pluralidade de vacas. Eu estou sentada na linha de transição de estado a deixar-me hipnotizar pelo movimento já referido, penso em como é tudo tão mais lento quando se está num barco e depois lembro-me de Herberto. Ele escreveu que um poeta estava sentado na Holanda contemplando vacas, se não foram estas as palavras que usou, são estas as que uso eu. E é agora que toca o meu telefone. Atendo o número, que desconheço, mas de Portugal nunca se sabe, estou sim? Do outro lado uma voz masculina pergunta se sou eu que aqui estou, sou. E depois diz que fala do banco Fixtín.
Não percebi bem o nome do banco, Fixtín?, e pergunto: como disse que se chama o banco?
- Fixtín, minha senhora – mostrando indignação, continuou – tem aparecido publicidade nossa em horário nobre na televisão e na rádio!
Continuei a perceber Fixtín e abstive-me de o inteirar, a este senhor que interrompe a contemplação em que eu estava mergulhada, sobre os meus parcos hábitos de televisão e, ultimamente, também de rádio. Entretanto já vai ele lançado a explicar-me aquele aborrecimento sobre ir ser gravada a chamada, quando eu esclareço, para poupar tempo, que não preciso de mais bancos, que já tenho o suficiente relativamente a bancos e contas, muito obrigada, uma boa tarde e…
- Mas eu não venho falar-lhe de contas!!!!, eu venho falar-lhe de um cartão!!!!!!
- Mas cartões eu também já tenho e boa tarde e…
- Mas este é um cartão grátis!!!!! GRÁ-TIS!!!!! Não tem anuidade, não paga nada, minha senhora!!
Esta é a parte em que me seguro para não lhe dizer que “não sou a sua senhora”, mas ele continua, provavelmente sem parar para respirar.
- E, para além de ser GRÁ-TIS tem!! ainda!!! até 70%!!!! 70%!!!!! de descontos nos nossos parceiros!!!!!
- Muito obrigada, eu não estou interessada, desejo-lhe de novo uma boa tarde, com sua licença.

Ele emitiu qualquer coisa com maus modos, como se eu o tivesse ofendido. Mas na verdade a ofendida fui eu. Por que carga de água iria eu – ou alguém com mais de seis anos de idade – acreditar nestas investidas enganosas camufladas de incentivos ao consumo que de qualquer maneira é desnecessário?

Mas retomo a contemplação a tempo de ver uma das vacas voltar-se e começar a afastar-se de mim.


(eu ia mostrar as vacas dessa tarde de há dois dias ou três, que fotografei, mas pareceu-me mais interessante, ainda que de qualidade duvidosa, pôr aqui a carga de água já que falei nela - e esta é de agora mesmo)


21/06/2017

Muita caralhão!

Tenho uma relação esquisita com os balcões da carne e do peixe inseridos num supermercado, que os outros não é costume visitar. Ou gosto ou não gosto. Os da carne não me agradam à vista, quer dizer, não me agrada imaginar comê-la, dá-me arrepios os coelhos. Os do peixe demoram imenso porque há amanhar o dos outros fregueses que chegaram antes de mim e eu espero e vou olhando, vou olhando o peixe. E disto gosto, é esquisito.

Pedi robalos como se fossem bons, naturais e selvagens, arranja-me estes robalinhos, se faz favor? pedi lombos de bacalhau fresco que hoje havia-os e pedi só mais uma coisa, filetes de peixe espada preto, quer que tire a pele, menina?, não, deixe ficar a pele, a gente tira no prato. Mas olhei para o cherne às fatias. Cherne. O cherne é estupidamente caro. Como diria a minha irmã Ana quando era pequenina e sabia pouco da língua portuguesa, por exemplo "tugaluga" era tartaruga, lembro-me tão bem, diria então a minha irmã em pequenina sobre o cherne assim: o cherne é muita caralhão! Passo os dias à procura de palavras para o meu trabalho, os últimos tenho-os passado a buscar também outras, filhas da indignação, da tristeza, da revolta, umas que conseguissem explicar o incompreensível, e perco-as depois aqui no blogue. É postas. É cherne às postas.


(telefonaram-me da seguradora à qual está entregue o seguro da casa da serra, perguntando se precisávamos de alguma coisa, se o fogo tinha lá chegado, se havia perdas a registar, que estavam a ligar a todos os clientes com casas seguradas na área ardida, se haveria indemnizações a dar, indemnizações! – eu, estupefacta, incrédula, disse que não, que a nós não, o fogo passou perto mas à casa só chegou fumo, e desliguei a pensar que se não tivesse sido comigo este telefonema eu teria tido dificuldade em acreditar nele)

13/06/2017

Teresinha

Ponho uma sequência de valsas a tocar para mim. Compasso ternário e por isso facílimas de dançar, mas não danço uma, agora não. Agora vou contar isto.

Saio de casa para ir ao multibanco. Quando acabo de atravessar a rua, levo a mão ao cabelo ainda molhado e penso que tenho o cabelo ainda molhado mas com o calor da rua não por muito tempo. E noto, ainda com a mão na cabeça, que a senhora que caminha em sentido contrário ao meu e vai cruzar-se comigo já a seguir, me olha por um certo tempo. Penso se estarei toda encasacada como por vezes acontece quando me esqueço que é verão e saio para a rua desajustada. Mas não, casaco nenhum me está cobrindo, talvez o cabelo ainda molhado...
- Olhe, desculpe!
É ela, e a voz vem já de trás de mim, viro-me.
- Diga.
- Ah….. – olhou-me mais fixamente – desculpe, mas não é a Teresinha?...
- Não… não sou.
- Oh… é muito parecida com a Teresinha e eu não a vejo há anos, mas ela também mora aqui e pensei… não é a Teresinha, pois não?
- Não… sou Susana. (nem mesmo na minha panóplia de irmãs se encontraria uma Teresinha, por muito que se procurasse, mas isto a senhora não precisou de saber)
- Ai eu gostava tanto de ver a Teresinha, por isso é que agora a chamei, pareceu-me mesmo. Pronto, desculpe.
- Não tem importância, um bom dia.
- Bom dia. Tudo a correr-lhe bem, sim?
Sim, tudo a correr-me bem. Mas também tive pena de não ser a Teresinha, de não dar uma alegria à senhora e saber da sua vida, contar-lhe da minha, rebobinar os últimos anos, ali, no meio da rua, debaixo de um jacarandá em flor. Quem seria eu se fosse a Teresinha? Continuei o meu caminho, entrei no centro comercial, levantei dinheiro no terminal multibanco e tornei à rua tomando o caminho inverso para casa. Ao subir as escadas junto à paragem do autocarro, escorreguei e caí. Tenho caído muito ultimamente. Mas levanto-me logo. 

(e agora é que danço a valsa, uma destas que continuam a tocar para mim)

11/06/2017

Haviões (um post praticamente científico)

Quando deixo o blogue abandonado por uma temporada, como tem acontecido largo nesta primavera luxuriante, bem trabalhada, ele recebe muitas visitas de países longínquos e origens não decifráveis, que são tudo mentira: serão sim os robots. É uma espécie de como quando fica a casa, a real, deixada só. Ainda que de portas e janelas trancadas, a natureza começa, devagar, a entrar. Pode ser na forma de formigas, aranhas, centopeias, um rato, ou dois, uma lagartixa, diversos bichos indefinidos que serão encontrados mortos e, claro, uma data de pó. Também se pode chamar a este processo o aumento da entropia, que é de aplicação genérica e certa como a morte e os impostos e, segundo um meu cunhado, igualmente certa como as mulheres pintarem o cabelo a partir de certa idade, e a partir de outra idade pintarem-no de amarelo (ele quer dizer louro, mas percebe pouco de tons).
E há dias, levei, sob o sol da tarde, os olhos ao céu azul riscado de branco pelos aviões. Aí ocorreu-me sem querer que deviam estes – mas é – ser designados totalmente de acordo com as suas elevadas potencialidades: haviões. Com propriedade, elevando-os ainda mais a uma conjugação especial do verbo haver, em superlativo, tendo em mente a dificuldade que foi trazê-los de uma ideia muito boa para uma real e complexa, repito elevada, existência.

Andava, porém, a evitar falar nisto (apesar de o blogue entregue aos robots). Até que hoje de manhã, ao saber da última tuitada da Casa Branca, achei que, sinceramente, este post que se escondia envergonhado, tímido, quase agonizante, afinal, roça praticamente o científico. 

(na verdade, tanto disparate junto assusta bastante)

05/06/2017

A terra também cresceu (mas foi de propósito)

É por estas e por outras que as minhas irmãs e outras pessoas de bem não gostam de mim (mas no blogue ainda se aguenta).

Hoje não saí de junto do cato suculento, pode ser Catus Suculentus Citrinus, o Citrinus já se vai ver, não saí de junto dele todo o dia.

Tinha transplantado o Catus Citrinus (primeiro e último nome) há tempos, na verdade há dois meses, que era abril a começar, até fiz para aí um post em que by the way expliquei a plantação, transplantação, deste e do outro, são dois, mas só a este demos agora nome, o by the way como se fosse pouco plantar dois catinhos e não é. Eu sofro de amor agudo por catos e outras produções naturais. É tudo tão lindo. Até a minha filha pequenina, pelos quatro anos de idade, não me esquecerei, disse uma vez à beira da Marginal que liga Lisboa a Cascais no sentido contrário, eram umas sete da manhã e a praia cheia de gaivotas no chão da maré baixa, pensativas, o céu cor de rosa e eu a conduzir as duas filhas com sono para a escola, mas "meninas, olhem que lindo" e ela "mãe tu achas tudo lindo". Estava, e estou, ciente de que um cato não é planta que deva muito ao dinamismo da mudança, mas sim à resistência-a-adversidades, característica pela qual trouxe os dois exemplares para a casa da serra, que está mais desabitada do que habitada, as hortenses faleceram, os coentros evaporaram-se junto com a salsa, ficou o plástico do vaso a dar sopa, a batata doce não deu nem isso, é a vez dos catos mostrarem a fibra de que são feitos.

E então ontem, ao chegar ao terraço que lhes serve, aos catos, de morada, tinha-me o Catus Citrinus esta surpresa: um ramo de flores laranja (é agora que se vê) tão lindo quanto isto.

Mas só agora me ocorreu: e para que quero eu um blogue?

Para mostrar o antes


e o depois.