a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/10/2017

Ave Maria

Agora, na cauda da irritação que me elevou a ponto de gritar-te ao telefone, oiço Pink Floyd. As tonalidades desta música são para além do rosa, são para me ligar ao mundo urbano, e isso é tão real: acolhem-me as esperas nos semáforos, as luzes dos carros refletidas no asfalto da noite depois da chuva, acolhe-me o cheiro do monóxido de carbono dos autocarros que já viajam vazios a essa hora, o brilho do reclame luminoso por cima dos cafés ainda abertos na avenida, enternecem-me os nomes escolhidos sabe-se lá por que sonhos, e tu estás a milhas. Se me apetecer ponho-me já a caminho do São Carlos, simulo uma noite do próximo mês julho, é La Traviata, e a seguir claro que morrerei mais rica. Isto se morrer alguma vez.
Esqueces-te – tão cheio de ti te constróis – que te sei por dentro. Escusavas de vir para mim com a tua infinita fome de ti próprio, tamanha necessidade tens de te ouvires, encheres-te soberbamente - cuidado não rebentes; mas não o faças comigo. É inútil.
- Estás-me a falar assim porquê? – dizes, obtuso.
Ontem, ainda me lembro, entrei no dia ouvindo a Ave Maria de Bach no rádio velhinho. Um dos lugares mais belos do mundo, a Ave Maria de Bach. Desses onde nunca entrarás por causa do tamanho absurdo do teu ego. E Bach é um lugar em forma de música que me liga a mim à eternidade, que está para além do urbano, mas também isso não sabes o que é. Estar ligada à eternidade é ser mais forte, é, ouvindo Pink Floyd, escrever isto se morrer alguma vez.
Burro, continuas a deixar cair os teus dias em chão estéril.
Falo-te assim, grito-te, mas sei que não ouves nada para além do enorme vazio de que te vestes, achando que é esse o caminho da tua fama. Como é que ainda não viste que estás só.