Agora, na cauda da irritação que me elevou a ponto de gritar-te ao telefone, oiço Pink Floyd. As tonalidades desta música são para
além do rosa, são para me ligar ao mundo urbano, e isso é tão real: acolhem-me as
esperas nos semáforos, as luzes dos carros refletidas no asfalto da noite
depois da chuva, acolhe-me o cheiro do monóxido de carbono dos autocarros que
já viajam vazios a essa hora, o brilho do reclame luminoso por cima dos cafés ainda
abertos na avenida, enternecem-me os nomes escolhidos sabe-se lá por que sonhos,
e tu estás a milhas. Se me apetecer ponho-me já a caminho do São Carlos, simulo
uma noite do próximo mês julho, é La Traviata, e a seguir claro que morrerei mais
rica. Isto se morrer alguma vez.
Esqueces-te – tão cheio de ti te constróis – que te sei por
dentro. Escusavas de vir para mim com a tua infinita fome de ti próprio, tamanha
necessidade tens de te ouvires, encheres-te soberbamente - cuidado não
rebentes; mas não o faças comigo. É inútil.
- Estás-me a falar assim porquê? – dizes, obtuso.
Ontem, ainda me lembro, entrei no dia ouvindo a Ave Maria de
Bach no rádio velhinho. Um dos lugares mais belos do mundo, a Ave Maria de Bach.
Desses onde nunca entrarás por causa do tamanho absurdo do teu ego. E Bach é um
lugar em forma de música que me liga a mim à eternidade, que está para além do
urbano, mas também isso não sabes o que é. Estar ligada à eternidade é ser mais
forte, é, ouvindo Pink Floyd, escrever isto
se morrer alguma vez.
Burro, continuas a deixar cair os teus dias em chão estéril.
Falo-te assim, grito-te, mas sei que não ouves nada para
além do enorme vazio de que te vestes, achando que é esse o caminho da tua fama.
Como é que ainda não viste que estás só.