a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/12/2024

A carreira das oito

Entre também eu agarrada ao telemóvel como quase todos aqui em redor e estar de mãos livres a olhar para as pedras da calçada, prefiro isto de vos escrever.
O autocarro está atrasado conforme é seu habitual procedimento, mantendo os passageiros à espera, espalhados pelo murete de cimento rosa, um rosa por acaso até alegre. 
Os pilares do viaduto que nos encima e protege da chuva se ela cair têm, estimo, um metro de diâmetro. A sua larga curvatura dá portanto espaço à vontadinha para os cartazes a anunciar quartos a estudantes. Alguns com casa de banho e tudo. Outros espaçosos. Ou no seio de lares de famílias respeitosas. Quando não trago o carrego todo dos livros, ponho-me a ler os anúncios para não me esquecer que, no meio daqueles que visam os cifrões e mais nada também se encontra generosidade ou vontade de acolher. Não sendo especialista em assuntos aborrecidos como mercados, deduzo porém estar completamente fora deste. Apesar de ser uma intensa estudante para a minha idade. Mas - um momento, já volto.

Continuando, estou pois fora deste mercado, mas não sou a única. Aqui no murete ao meu lado está o casal de negros velhotes que vai sempre nesta carreira. Demoram imenso tempo a subir para o autocarro e depois a descer, em Lisboa. Ele já me reconhece e fala comigo. Comenta o atraso e o facto de irmos sempre no mesmo dia à mesma hora, acha graça e ri-se de me ver. Ela parece alheada, fica apenas agarrada ao marido com os olhos no vazio. Acho que é quase cega, porque uma vez em que ele se afastou (mas não para ler os cartazes dos pilares do viaduto) ela ficou assustada de esperar sozinha e levantou-se para o procurar. Quando achou que o tinha encontrado uns metros mais abaixo, neste murete, e chegou a cara muito perto da dele para confirmar, percebeu que se tratava de outra pessoa (eu) e não do seu marido. Mas sosseguemos porque ele logo logo, vendo duas mulheres - a sua e eu - de ar assustado e caras tão próximas uma da outra que quase tocavam os narizes, uma delas de olhos vazios muito abertos, a outra de olhos cansados e surpreendidos, respetivamente, acudiu a primeira, tranquilizando-a e desculpou-se à segunda. Ora essa, que é lá isso, pensou esta, balbuciando qualquer coisa que já não me lembro o que foi.
Quando, muito em breve, trocar esta viagem por um meio mais confortavelzinho de a fazer, vou sentir falta deles. Mas só na primeira vez e na segunda, depois, é quase certo que os esqueço. 

24/11/2024

Santa Comba Dão (é que este nome)

O sino da igreja deu as quatro e meia três minutos depois. O sol já se inclina muito a poente e o vento caiu. A tarde está amena. Ouve-se apenas a água do canal que corre para uma pequena cascata, por sobre pedras e vegetação, para de novo se emparedar numa calmia líquida. Tanto, que a igreja cimeira nela poderia ver refletidas as cores dos seus vitrais.
O passadiço de madeira fresca leva-nos ao restaurado lagar de azeite. A porta aberta bastou para que nos aventurássemos a visitar o belíssimo interior. Uma exposição de míscaros, líquenes e fungos colhidos de manhã na outra margem do rio estava a ser montada por gente do norte, disseram-nos. Gente que os sabe classificar: desde os que dão boas sopas ou um suculento risotto, aos que são mortais quando ingeridos. 
À saída, tropeçamos no edifício de um velho posto de transformação. Aquele mesmo que, na parede exterior, ostenta, numa composição de ladrilhos, um orgulhoso mapa da cidade exibindo o encontro entre os dois rios pintado num azul vivo, muito alegre. Como se fosse dali que vem aquela força, tanta beleza. 
Mas na esplanada já não está ninguém. Parece que todos terão recolhido o sábado - assim amadurecido, assim morno, assim tranquilo - dentro das suas casas de pedra muito arranjadinhas pelas ruas estreitas. Todos não. Quatro homens estão sentados dentro do café aquecido, demasiado aquecido, a olhar muito quietos, com as faces vermelhas, bolachudas, para a televisão acesa (claro). No programa da tarde decorre uma homenagem a Marco Paulo, o cantor popular que Portugal guardará por muito tempo, estou certa, no seu coração.

19/11/2024

E tu, também preferes o teu próprio carro?

Diz a Muzi, minha filha mais velha, que mãe, essa tua relação romântica com os transportes públicos... e portanto, sempre que os meus horários não distam muito dos dela, dá meia volta à cidade para me ir levar ao trabalho. Mas não é tudo. No final do dia, se eu ainda estou a vegetar na paragem quando me liga ao sair da última consulta, desvia-se da sua rota para me ir apanhar, indiferente aos meus protestos. Nem de uber ela me deixa deslocar quando essa hipótese aparece no horizonte dos meus planos. 
Mas a verdade é que, se eu não andasse, nos dias em que venho à capital, sem carro próprio, não estaria agora neste pequeno e tranquilo autocarro, em modo de um para-arranca envolto no nevoeiro que se levantou do rio, a fazer uma das coisas de que mais gosto e para a qual parece nunca sobrar tempo. Escrever parvoíces. 

09/11/2024

Mas depois do adeus

Tomei uma decisão crível (e não uma incrível).

Depois fiz um monte de livros lidos que não recomendarei a ninguém. As suas narrativas não encontraram um caminho de valor dentro da minha cabeça. Perderam-se para aqui. Umas parece que vinham baças, outras deslaçaram lá para meio. A sua matéria chegou-me como um holograma desfocado no centro. Pode ser dos meus olhos, naturalmente. Um desses livros traz um desagradável extra de origem: erros. Coitadinho, foi feito à pressa, faltou-lhe um bocado de amor (e não um bocadinho). Há um que conta uma história boa, mesmo muito boa, mas nasceu de mão errada, incapaz de esculpir palavras com umas dimensões assim mais profundas, menos espalmadas, balofas. O teor dos restantes nem deixou vestígios, evaporou-se já. 

É como se os livros do monte tivessem vindo por engano. Queriam tomar um caminho e eu desviei-os. Nenhum me foi oferecido, está bem? Todos estes livros vieram por minha espontânea vontade (mas isto não é extraordinário). 
Tomei então a crível decisão. Vou metê-los no saco da conferência da semana passada, um saco preto de um algodão macio, bom para livros, e vou oferecê-los à pequena biblioteca de província onde agora mais vivo. Talvez ali algum par de mãos mais certo lhes pegue, ou ângulos diferentes lhes sejam vistos por outros olhos. 
Os meus são esquisitos. Um deles chora muito nas grandes superfícies e em esplanadas batidas a vento. O outro fica embaciado a partir desta hora. Incrível (agora sim).

Adeus a todos.

10/10/2024

Diferenças

A brasileira que, na fila para o autocarro de longa distância, explicava ao filho onde, na configuração do veículo, se situavam as suas poltronas, tinha, no primeiro lugar da sua lista de conversas no WhatsApp, um contacto (ou melhor, contato) chamado Grupo Feliz.

Eu não tenho um grupo de WhatsApp com tal designação. E o meu bilhete para a viagem não indica uma poltrona, mas sim um lugar.
Deve ser por isso.