a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/12/2013

Zé e Maria

Tenho uma boa acção para fazer. Há séculos que fiz a última e o egoísmo de que sou feita ataca-me os ossos e traz-me envelhecida, de pétalas murchas, cria-me pontos negros, pelos no queixo, aspereza nas mãos (mas isso é de lavar muita loiça) e até me faz tosse e os dentes amarelos, ora leiam.

Foi há dias, mas ainda me anda aqui às voltas.

Ao descer de carro a serra, vejo, a seguir a uma curva, um casal de velhotes a subir a pé, pela berma, ou pelo sítio onde devia estar uma, esta mesma serra que eu desço ao volante. Não parei e não lhes dei boleia.

Se tenho desculpa? Claro que tenho, levo o carro cheio e pressa para a celebração do natal em família alargada, claro que tenho desculpa. Já para não inventar que eles podem ser bandidos perigosos disfarçados de velhotes fofinhos com dores nas costas.

Desço, então, o resto da serra com um peso a mais na consciência, vou a pensar que ainda posso voltar atrás e levar os velhotes ao seu destino, postava um dos meus passageiros na estrada, à espera, ou todos, e podia, e... mas não. Continuo.

E agora já o natal passou, já o ano novo vem aí e eu com os velhos na cabeça, ainda vão a subir a serra, os sacos que transportam, a lentidão que os leva, o peso dos anos que lhes verga as costas, tudo, e eu, que tive desculpa, vi que não são bandidos nenhuns.

Portanto ando assim, faltou-me isso. Já dei os restos do leitão, incluindo uma parte da pele estaladiça, ao cãozito branco assustado que mora lá na nossa serra e que nos visita de vez em quando e que afinal é uma cadela, já me inscrevi no município de Penela para adoptar uma cabra que vai produzir mais leite e assim permitir que mais queijo rabaçal se sente à mesa de mais gente, ou se deite, depende do gosto de cada um, já estou quase a oferecer umas pantufas à minha vizinha de cima, coitadinha, andar de saltos em casa é tão desconfortável e já encomendei a lenha para o resto do inverno aos ingleses que a andam a comprar aos sacos no continente, já fiz isto tudo, mas ainda os velhotes não chegaram ao seu destino e eu quero saber quando precisam de ir às compras outra vez, e outra vez e mais outra, para eu os levar e os trazer, para eu fazer a minha boa acção.

Corri serra abaixo, procurei nas clareiras e junto aos ramos caídos. Cheguei ao vale, à casa que tem sempre roupa estendida, procurei atrás da roupa, chamei por eles, devem ser Zé e Maria, de certeza que são Zé e Maria, mas nada, não os vi, não os ouvi. Subi a serra de novo, chamei-os mais uma vez, encontrei o cãozito branco que afinal é cadela, viste o Zé e a Maria, viste, canita?

E antes que ela me respondesse toca o despertador, são horas de ir trabalhar.

A minha boa acção vai ficar para o ano novo, mas hei-de vir cá contá-la.

28/12/2013

Nuvens do céu

Desta vez consegui a proeza de estar mais de dois dias seguidos no mesmo sítio e portanto o acontecimento pôr-o-bacalhau-de-molho fez enfim parte do meu natal.

No entanto, nem tudo foram rosas. Embora o bacalhau tenha apreciado o banho de quarenta e oito horas que lhe tornou a existência mais insossa, foi um sarilho convencê-lo a manter-se na água quente, muito quente, a ferver. Ou seja, o safado veio parar-nos ao prato um tanto ou quanto encruado e nem o azeite disfarçou.

Felizmente o natal é época para o perdão se sentar à mesa com a família e com o bacalhau encruado, e eu, sorte a minha, fui perdoada. A minha gente ficou ou mais mole, ou mais tolerante, ou mais lacrimejante, se for o caso, ou ainda uma combinação destas.

Quanto a mim, os desígnios divinos escolheram-me para a equipa dos ficou-mais-mole.

E isto tem consequências.

As minhas adolescentes filhas, entusiasmadas com a condição súbita de ficou-mais-mole da sua mãe, puseram, de mansinho, o pé do lado de lá do risco das regras, traçado fora da época mole, em momentos em que a lucidez esteve comigo.

Ora nas condições sazonais que em mim se instalaram estes dias, em que a minha visão se tornou turva, cobriu-se de nevoeiro, amolecida pela lareira, pelos brilhos vermelhos e dourados, pelos abraços da minha mãe que cheira sempre bem e pelo sorriso doce do meu pai que no natal fica menino e fica tão lindo, distraí-me.

Só passadas as primeiras horas, depois de os abraços da minha mãe terem ido para casa, do olhar doce do meu pai também, da minha vasta irmandade ter recolhido a respectiva criançada de volta aos lares, é que eu, devagarinho, retomei a minha vista apurada, deixei a moleza ir com eles todos, semi-cerrei os olhos e vi.

Vi a adolescência das crianças que trouxe ao mundo posicionada muito para além do tal risco que entretanto sacudiu a névoa e se mostrou tão nítido e o efeito desta causa foi uma zanga muito mal vinda, que eu não gosto de zangas nenhumas.

E agora, na condição de zangada, tenho de me segurar, manter a postura, não mostrar o amor que me brota a jorros, as palavras que querem ser doces, os abraços que me morrem no corpo que sinto atrofiado, e olho de soslaio para elas e vejo como são lindas, e lhes vejo as feições doces, perfeitas, os contornos das sobrancelhas, os narizes bem desenhados, amores da minha vida, que fiz eu que estou aprisionada no meu coração quase a rebentar, e agora.

Meti-as no carro, precisamos de comprar parafusos, o Erik vai tratar do assunto que eu com a broca não sou grande coisa, nem isso nem cozer bacalhau.

Debaixo da chuva miudinha na modorra da tarde, rumámos a Miranda do Corvo.

Quando contorno a rotunda que tem um cabeleireiro a anunciar na montra “dinâmicas e deslumbrantes”, ou coisa que o valha, já elas dormem no banco de trás, uma a cair para cima da outra.

E eu, então, páro o carro. Erik sai para comprar os parafusos, não no cabeleireiro, na grande loja de ferragens. Olho-as pelo espelho retrovisor. A beleza delas que aos meus olhos é tanta, o veludo de que se lhes faz a pele, o desenho do início dos seus cabelos ondulados, que lindos cabelos têm as minhas filhas, o contorno dos olhos fechados, o ar angelical que só lhes vem no sono.

Na loja de parafusos havia muita gente para atender e a chuva miudinha da tarde teve tempo de vir até mim.

E começar a cair dos meus olhos como se eles fossem as nuvens do céu.

23/12/2013

Zero zero sete

Lá fora o vento uiva com a potência de uma alcateia e a chuva anda doida a cair em todo o lado, não sabe de que terra é e a velha palmeira está muito agitada, nunca a vi assim.

Dentro, a televisão passa um filme do zero zero sete mas eu estou no canto oposto à lareira, junto à janela, por causa dos uivos dos lobos. Do vento, perdão, do vento. Mas uivos na mesma e eu não os quero perder.

(agora conseguiu o zero zero sete, com um camiãozinho de nada, impedir um avião dos grandes, pelo menos é o que me parece, visto daqui, de descolar)

A aldeia está quase deserta, as casas estão abandonadas há muito, a maioria em ruínas, outras em projecto de ruína. Só três ou quatro já renasceram das pedras e agora vestem-se de um charme rústico, vaidosas que dá gosto. Pelas chaminés lançam fumaça que mostram às vizinhas e que cheira tão bem.

Hoje, durante todo o dia, passaram três carros aqui na rua, a única da aldeia. Um deles apanhou-me à porta a sacudir a toalha das migalhas do pequeno almoço e parou.
  
O vidro da janela começa a descer, em solavancos tímidos, resposta ao manípulo que gira em círculos e me deixa ver agora o lenço na cabeça da sua ocupante, a testa, depois a cabeça toda, devagar, dobro a toalha, e agora o seu semblante, inquiridor. Sentada ao lado do marido, que conduz, os maridos é que conduzem, lança-me os bons dias, vizinha. E anuncia.

- Passamos aqui todos os sábados, temos queijinho fresco, feito em casa, em nossa casa, e queijo também do outro, seco, temos ovos das nossas galinhas e cozemos pão. É tudo fresquinho.

O marido olha-me espetando o pescoço, que não é comprido, para secundar o que a sua mulher me desfia e faz que sim, é isso, queijinho fresco, pois.

(o zero zero sete está agora a descansar com uma senhora que se deitou em cima dele, e com uma bebida, acho que a vai entornar, e eu oiço melhor os uivos do vento)

Agradeci com uma vaga promessa de sim senhora, um destes sábados, é questão de ir passando e nós estarmos cá, gostamos muito de queijo. E um feliz natal para os senhores, sim?

Mas e o vento, que continua furioso lá fora? Esta noite, que o abraça com o seu manto negro (ei! de onde tirei eu isto tão bonito?), quer deitar a velha palmeira ao chão, quer quer.

E tomar da chuva a bebida, que já entornou por toda a serra, para depois descansar dos uivos. 

Mas eu, que estou a ficar com frio, vou-me chegar à lareira e ver como acaba o filme.

19/12/2013

Que nem ginjas

Escapei por dez centímetros.

São dezanove e vinte e seis e eu ainda em casa a vestir as calças de fato de treino para ir à ginástica, aos saltos numa perna, depois na outra, já está, agora vai de calçar os ténis a enfiar um pé de cada vez e a torcê-lo para a direita e para a esquerda a ver se entra sem mais ajuda, que estou atrasada. É a última aula de ginástica antes de começar a encher a pança de natal, chocolates vêm à frente, uma ou outra noz enfiada num figo, os fritos no fim da linha, mas não hão-de escapar e, claro, o bolo rei que a minha irmã Catarina vai fazer na bimby (detesto a bimby, tenham lá paciência, mas isso fica para outro post, que este já vai encher).

São dezanove e vinte e oito e eu começo a atravessar a rua, o ginásio fica já ali no quartel dos bombeiros.

O opel corsa, daqueles antigos mas não dos mais antigos, parece que me viu no meu blusão branco como a neve, mas afinal não viu, não parou na passadeira, e eu a olhar para as luzinhas nas folhas que caíram das árvores com o vendaval recente e estiveram a chorar o dia todo e, agora que a noite também caiu mas penso que não se magoou, ao contrário das folhas, coitadinhas, que brilham à brava, são as lágrimas delas a reflectir a luz dos faróis do opel corsa (não sei se ponha opel corsa em itálico, ponho?).

Foram os dez centímetros a manterem-me fora do alcance do opel, que não me colheu. Dei um salto para a frente a ver se os dez passavam a decímetros e depois a metros o mais depressa possível e neste salto de corça assustada, não corsa, mas corça, e graciosa, olho para trás, mas que é isto.

E vejo o braço do condutor a acenar, desculpa lá amiga, que eu ia distraído. Esta do amiga não percebi, mas ficou-lhe bem pedir desculpa.

Continuo a caminhada até ao ginásio, viva da silva mas a tremer, e entro no edifício que parece ter espetada a torre dos bombeiros, enfeitada com luzes azul eléctrico para celebrar a época natalícia, apesar de o natal ficar mal de azul, mas isso não interessa nada para quem acabou de evitar o aborrecimento do tinoni de uma ambulância que havia de sair deste quartel. Isto, claro, se o óbito não se desse ali mesmo em cima das folhas e das luzinhas que elas fazem com as lágrimas.

Entro no edifício, era aqui que íamos, é que me estou a desviar muito hoje, e vejo que sou a única ginasta a comparecer à sessão, facto que leva a treinadora a pôr-me em cima da máquina do programa dos tremeliques. Faz-lhe bem, diz ela.

E faz. Que eu depois de ter escapado ao corsa estou por tudo, já vinha a tremer e agora tremo mais um bocado e com toda a força.

Sempre posso acabar o relatório amanhã, ir meter a carta para a Epal no correio, arranjar uma desculpa qualquer para me safar do almoço de natal da empresa e vir para casa meter-me num banho de imersão que é coisa que não faço há vários.

Natais.

E, mana, o teu bolo rei vai-me saber que nem ginjas, está bem? Afinal acho que gosto um bocadinho mais da bimby, nunca me fez saltar, ainda que com graciosidade, nem ficar a tremer, ainda que me faça bem.

(e só por isso a bimby merece o itálico)

18/12/2013

Favas com porco

Aproximo-me com o tabuleiro debaixo da minha mão que, espalmada sobre ele o faz deslizar ao longo dos varões metálicos que correm à frente do balcão com as sobremesas, saladas e bebidas da cantina lá da empresa. Estamos na hora do almoço e eu gosto da hora do almoço.

Levo na mão a vinheta onde assinalei a refeição que escolhi previamente de um menu de quatro alternativas, e ela, ao ver-me em aproximação nem lenta nem rápida, que eu sou pessoa mediana, pergunta-me o que vai comer, dona...

- Susana, dona Esmeralda - ajudo-a a dizer o meu nome. E depois acrescento, carne.

(este parágrafo pode ter ficado um bocado esquisito, se a minha filha mais nova o ler vai fazer as paragens nos sítios errados, vai ficar confusa, vai agitar a cabeça e ler outra vez, ora vamos lá)

- Carne?! Vai comer favas?!

- Vou, eu gosto de favas.

- Mas a carne, o porco, os enchidos, isto tem porco, ora veja - e rebola as favas e companhia com a colher gigante dentro do tabuleiro rectangular, metálico, cheio de mossas - vai comer isto, escolheu este prato?

- Sim, eu gosto de favas, dona Esmeralda, repito e sorrio-lhe, para ela ver que eu estou a sério.

- Estou admirada que a menina (às vezes sou menina, outras vezes dona...) vá comer isto, insiste ela que na verdade precisa de saber mais, eu gosto de favas não lhe chega.

Eu já disse isto uma vez aqui e vou tornar a dizer. Gosto desta mulher.

Vai adiantada na casa dos cinquenta, levanta-se às cinco e dez da manhã, atravessa o rio Tejo para vir trabalhar e chega a casa depois das sete e meia e de atravessar o rio Tejo outra vez.

Antes de o marido lhe morrer, há dois anos, ela ouvia música nessas travessias e nos percursos de autocarro.

- Que música ouve, dona Esmeralda?

- Ah, é rádio que oiço, é a comercial, distrai-me. Eu gosto muito de música.

Um dia, enquanto limpa as lágrimas do luto às costas da mão que tem queimaduras feitas no forno, na outra mão segura os óculos que vai limpar à bata de trabalho, conta-me que pouco antes de morrer, o marido, muito magro, na cama todo o dia, a chamou.

- Deita-te aqui um bocadinho ao pé de mim.

- E eu, menina, tinha tanto que fazer, sabe como é, as coisas da casa, o comer, arrumar aqui e ali, as minhas netas para chegar, mas fui. Deixei-me ficar deitada ao lado dele um bocadinho.

A dona Esmeralda deixou de ouvir rádio porque o marido morreu e quer saber porque vou comer as favas com todo aquele porco.

E eu, que lhe disse a verdade, gostaria que ela tivesse alguém que se deitasse um bocadinho ao seu lado e lhe dissesse que não faz mal continuar a ouvir música para se distrair.

16/12/2013

Pegadas de dinossauros

São nove horas da manhã de uma terça feira de Julho, estamos de férias e tu vens-nos acordar, como sempre fazes quando não é sábado ou domingo, por causa dos lugares para estacionar.

- Bom dia meninas, quem quer vem, quem não vier já, fica! - dizes na tua voz firme.

Acordo e lembro-me que é terça feira. Salto da cama e digo, eu vou eu vou!

Iamos pelo menos duas, no máximo íamos todas quatro. Éramos adolescentes e nesta idade nem sempre a ideia de sair da cama é uma boa ideia, nem que o Sol já vá alto.

O caminho que conduzias até à Praia Grande fazia-se em dez minutos e a essa hora havia lugar para estacionar perto do Angra, o café onde começávamos o dia.

Entramos, todos dizemos bom dia e o empregado já sabe o que vai ser. O café para o paizinho e quatro mil-folhas (se íamos as quatro, vamos supor que hoje viemos as quatro) para as meninas.

À terça feira até podia dispensar o mil-folhas, mas comia-o ainda assim sem olhar para ele e sem saber se me tinha calhado o da cobertura branca com laivos castanhos ou o da castanha com laivos brancos, o empregado já os trazia aos quatro, empilhados num prato, para cima da mesa de madeira.

O que eu queria era o suplemento semanal do Diário de Notícias, que já vinha debaixo do teu braço desde que saíramos do carro e eu sempre admirei as pessoas que compram o jornal do dia e o lêem no dia, as pessoas que se levantam cedo ao sábado para lavar o carro e dizem que gostam de passar pela roupa lavada acabada de estender às janelas da rua e a cheirar a skip, admiro as que vão comprar pão com as galinhas para o comer ao pequeno almoço, ao pão, às galinhas não, e eu, que sou das tardias, pois sou, admiro estas pessoas. Adiante.

Então estava o Diário de Notícias em cima da mesa do Angra e tu, papá, todo inclinado sobre o jornal aberto, o café bebia-lo sem olhar para ele, agarrado às gordas, achava eu, o resto do texto era para ler lá em baixo na praia, à sombra do chapéu, que a manhã ainda era uma criança e nós também, mas em número de quatro, e que tempos bons foram esses.

Depois do café, das quatro mil folhas nas barrigas e do suplemento em meu poder, dobrado a fazer corpo com a minha toalha de praia, não fosse uma das minhas irmãs de repente lembrar-se que afinal também gostava das terças feiras, esse meu tesouro semanal era meu, inaugurado enquanto comia as folhas à dentada até chegar às mil, acho eu, que nunca as contei, depois do café, lembras-te papá, dirigiamo-nos à praia.

Escolhiamos o local de poiso para a manhã e, se a maré estava baixa e o espaço nos deixava mais sossego em redor, a felicidade suprema vinha sentar-se comigo na areia e eu sem saber o que era aquilo, só sabia que bom, que bom, e lia as crónicas e foi aí que aprendi que gosto de ler crónicas. Alguma vez te contei?


Abro os olhos. O livro que comprei há pouco no aeroporto está no meu colo, aberto na página que estava a ler quando mergulhei nas recordações. Olho pela janela e a escuridão da noite devolve-me o piscar ritmado da luz da asa do avião.

Estou tonta. A recordação, desenterrada pelas crónicas do António Lobo Antunes que me descansam agora no colo, fez-me isto.

Aqui, sentada ao meu lado no avião, está outra vez a felicidade, sim, suprema, essa que nasceu naquelas manhãs na praia.

A felicidade e dois holandeses que jogam trivial pursuit com um ecrã que mostra o tabuleiro redondo visto em perspectiva a fingir 3D e de vez em quando sai uma pergunta. Esta é sobre dinossauros. Eles não acertam.

Fecho os olhos de novo.

Se naquele tempo eu soubesse que na Praia Grande havia pegadas de dinossauros, teria saltado da cama todos os dias. Se não fosse terça feira, havia de ser dia de explorar pegadas.

E agora até podia escrever uma crónica sobre isso.

11/12/2013

Água da cascata

Não vejo o menor interesse nas potencialidades de um i-phone um i-pad ou um i-valhamedeus. Não vejo.

Sou proprietária de um aparelho de comunicações móveis que uso para telefonar (pouco), receber telefonemas (poucos) e escrever e ler mensagens de texto (não muitas).

É que me enerva quando há que escrever uma mensagem que tem mesmo de ser e as teclas que começam com a sequência qwerty como mandam as boas práticas destas coisas, com a sua abastada área de contacto disponível para o meu dedo aterrar, coisa para aí da ordem do meio milímetro quadrado, dispõem de uma aresta que lhes atravessa a minúscula diagonal no intento de me apanhar o jeito caso o dedo escritor aterre sem ele. Mesmo assim, apesar de todo o empenho dos engenheiros projectistas, acontece quase sempre sair-me um y em vez de um t e, se calha dar olhada rápida à composição escrita antes de enviar, detecto os erros e o caldo entorna-se.

É soprar, respirar fundo, apagar, voltar a pressionar o t e as letras que pelo meio comi, actividade complexa que me vale normalmente a) uma visita não intencional à internet, que faz o aparelho ficar suspenso no seu éter existencial de electrónica combinada especialmente não para mim, enquanto a barra azul cresce para a direita e a minha impaciência exponencialmente ou b) uma escorregadela do dedo para outro lado qualquer e vai de tirar mais uma fotografia aos meus pés, ao teclado do computador ou ao volante do carro (parado, claro), dependendo da situação e para dar os exemplos mais comuns.

E isto, meus senhores, não tem o menor interesse.

O que tem, então, interesse?

Interesse tem comer um dióspiro enorme, maduro e suculento e pingar a toalha toda sem me importar com as nódoas.

Interesse tem meter a cabeça fora da janela, no escuro da noite, ver as estrelas, que são muitas, e ouvir a água da cascata na encosta da frente.

E interesse tem, no dia seguinte, acordar aqui.


Fotografia tirada voluntariamente, por mim, com uma câmara fotográfica que tem uma lente redonda com um diâmetro de quatro centímetros ou mais, faz tzzzz tzzzz enquanto ajusta o zoom e o corpo da lente cresce para fora do corpo da câmara e volta a encolher para que o seu trabalho saia perfeito, depois faz clique, não me cabe numa mão fechada, nem nas duas, e com ela não posso telefonar a ninguém nem escrever mensagens nem visitar a internet. 

09/12/2013

Agriões, nabos e manjericão

Ouvi há dias na telefonia que a NASA vai enviar uma sonda para a Lua com agriões, nabos e manjericão.

O meu primeiro e rápido pensamento foi, ah, marotos, isto do dia um de abril faz as delícias de muita gente.

O meu segundo pensamento, também rápido, foi, não, não é abril, é dezembro e estamos a piscar o olho ao natal.

Duvidando, então, da minha acuidade auditiva, atiro-me ao jornal na internet, a ver que tal.

Confirma-se. A NASA tem um projecto que divulga ao mundo e que consiste em levar uma sonda para a Lua para plantar agriões, nabos e manjericão.

Ora oferece-me dizer o seguinte.

Em primeiro lugar a sopa de agriões, que agradece o nabo, também pede batata, cenoura, cebola e abóbora para a base. Água, sal e um fio de azeite nem se fala, têm de lá estar. Quanto ao manjericão, não o sabia parte da receita mas vou experimentar, gosto muito de manjericão.

No entanto, deixa cá ver, se a cozedura leva uma meia hora, aqui, à pressão atmosférica, na Lua vai demorar uma eternidade, ainda mais se se está com fome, a sopa do jantar de domingo é coisa para ser servida ao almoço da quarta feira seguinte. Por outro lado, gasta-se uma enormidade de energia a levar a sonda, esperar que a sopa coza e trazer a sonda de volta, para servir sabe-se lá a que esfomeados comensais, e eu, que ninguém sou mas tenho isto a dizer, eu a este projecto não vejo préstimo nenhum.

Portanto os rapazes da NASA, que eu fazia espertos que nem alhos (epá esqueci-me dos alhos) não percebem nada de culinária, nem com o toque do manjericão me convencem.

Pelo menos fiz o gosto de, lá em cima na abertura, escrever telefonia. Sempre o post serviu para alguma coisa.

04/12/2013

Cereais com pouco açúcar

Tenho, junto à janela da cozinha, um casal de canários.

Fruto de um momento de fraqueza em que me vejo sucumbir aos olhos redondos muito brilhantes e aos corpos saltitantes das minhas filhas, sim, mãe, vá lááááá, não pude nesses tempos idos resistir a tanto charme, estas aves já fizeram parte de uma meia dúzia de natais.

O tempo desatou, portanto, a passar e as minhas irresistíveis filhas, natal após natal, primavera após primavera, carnaval após carnaval, foram desviando os seus interesses em outras direcções como o voleibol, os amigos em doses industriais e muito urgentes, a arte de esvaziar frascos de shampô e condicionador de cabelo em dois dias, a habilidade de semear pela casa sapatos de ténis e meias, as séries da fox e o facebook. 

Não se lê, no parágrafo anterior, qualquer menção às pequenas aves cantantes, confinadas, ao contrário da minha expectativa inicial criada pelos olhos brilhantes, suplicantes, os saltinhos de entusiasmo, o vá lá vá lá tão repetido e alguns outros truques, confinadas, dizia, aos meus cuidados.

Entre água fresca para o banho ao sol da manhã, uma tarde passada do lado de fora da janela a cantar para os pombos, uma fatia de maçã suculenta que entalo na grade da gaiola ou ainda uma quantia generosa de papa de ovo acabada de comprar, faz também parte da lista a tarefa de limpar, lavar, mudar a forra.

Não sendo nós, nesta casa portuguesa, com certeza, ai não, não somos, grandes consumidores de jornais e revistas em papel, não me resta mais que a publicação da ordem profissional a que pertenço e que me vem cá parar a casa porque costumo pagar as quotas, para fornecer umas páginas dedicadas a construções metálicas, eficiência energética ou à boa aerodinâmica de qualquer coisa que voa, para não falar nas entrevistas aos directores, assessores e presidentes do tecido empresarial industrial da nossa sociedade, fornecer páginas, era isso que tratávamos, para atapetar o fundo de plástico do lar do casal de canários.

E não é que, em plena recta final de 2013, altura em que o voo das avezinhas está afinadíssimo, o canto tem tonalidades de acústica estudada pelos melhores especialistas, as histórias cantadas aos pombos vão carregadinhas de ciência fractal e técnicas energéticas de espantar pássaros, mas não estes, e não é que, dizíamos, recebo de repente por correio electrónico, nada de papel, correio electrónico, um endereço para clicar, não custa nada, e o acesso à tal publicação faz-se a partir de agora online sem mais nem ontem?

Portanto, queridos canários, vamos passar às caixas de cereais com pouco açúcar, é que não os há sem ele, desmanchadas e espalmadas depois de lhes consumirmos o conteúdo.

Além de darem boas alcatifas para pássaros, também ensinam sobre as quantidades diárias de nutrientes recomendadas para adultos saudáveis, hã?

02/12/2013

Instalações mínimas

Vivo uma grande fatia do meu dia, seja ele qual for, dentro do carro.

Isto há-de acabar, mas por enquanto temos de continuar com histórias destas no blogue. Blogue, já agora, ao qual me dedico em momentos destes, dourados, em que me encontro fora do veículo.

Parei, então, como prometido, debaixo da cancela. Um radioso dia de trabalho pela frente.

- Bom dia!

- Bom dia, menina.

- Aqueles vasos coloridos são seus, senhor Manuel?

- São sim menina. Eles estavam ali junto à parede do edifício - escusa-se o senhor Manuel com um sorriso ligeiramente comprometido - mas apanhavam pingas do ar condicionado e agora com o frio o melhor é pô-los aqui, sempre apanham mais sol.

- São muito bonitos, - digo eu, não vá o senhor Manuel ver uma crítica velada nas minhas perguntas - aqueles ali, amarelos, e os outros, laranjinhas, são pimentos, não são?

- São sim menina, eu gosto muito disto, sabe - encolheu os ombros e voltou a sorrir comprometido e depois continuou, encorajado pelos meus óculos escuros, acho eu, que lhe inspiram confiança ou coisa assim - mas esses são valentes, esses pimentos. Ardem!...

- Ardem-lhe nos dedos, é? - eu a lembrar-me dos ardores que se me colam aos dedos depois de cortar pimentinhos para o almoço, ou o jantar, tanto faz, eles ardem sempre.

- Não não, ardem-me na língua! Ando aí a tratar deles e depois levo as mãos à boca, à hora do almoço, são valentes, ardem bem, aqueles!

Matei, portanto, a curiosidade.

O senhor Manuel não come os pimentos.

O senhor Manuel trata dos pimentos durante a manhã.

O senhor Manuel, quando lava as mãos antes do almoço, vamos acreditar que sim, está bem?, não o faz como manda o cartaz do cuidado com a gripe A, que já se foi embora mas a malta esqueceu-se de tirar os cartazes lave-as-mãos-durante-vinte-minutos-e-esfregue-as-em-movimentos-circulares-assim-e-assim-até-que-lhe-doa-a-pele, porque a contaminação dos pimentos não sai e, devido aos movimentos incautos, chega-lhe à língua.

Estacionei o carro a pensar que se toda a gente lavasse as mãos como manda o cartaz da gripe A, a produtividade dos portugueses seria uma vergonha e as filas nas casas de banho piores do que a da ala das senhoras antes de começar a ópera no São Carlos, que por ter sido erigido nos finais do século dezoito, altura em que poucas senhoras iam à ópera, estou eu em crer, ficaram-se por instalações mínimas.

Quanto a mim, se lavasse as mãos como manda o cartaz da gripe A, não passaria tanto do meu tempo dentro do carro.

Sempre ficava mais económico.