a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/12/2013

Zé e Maria

Tenho uma boa acção para fazer. Há séculos que fiz a última e o egoísmo de que sou feita ataca-me os ossos e traz-me envelhecida, de pétalas murchas, cria-me pontos negros, pelos no queixo, aspereza nas mãos (mas isso é de lavar muita loiça) e até me faz tosse e os dentes amarelos, ora leiam.

Foi há dias, mas ainda me anda aqui às voltas.

Ao descer de carro a serra, vejo, a seguir a uma curva, um casal de velhotes a subir a pé, pela berma, ou pelo sítio onde devia estar uma, esta mesma serra que eu desço ao volante. Não parei e não lhes dei boleia.

Se tenho desculpa? Claro que tenho, levo o carro cheio e pressa para a celebração do natal em família alargada, claro que tenho desculpa. Já para não inventar que eles podem ser bandidos perigosos disfarçados de velhotes fofinhos com dores nas costas.

Desço, então, o resto da serra com um peso a mais na consciência, vou a pensar que ainda posso voltar atrás e levar os velhotes ao seu destino, postava um dos meus passageiros na estrada, à espera, ou todos, e podia, e... mas não. Continuo.

E agora já o natal passou, já o ano novo vem aí e eu com os velhos na cabeça, ainda vão a subir a serra, os sacos que transportam, a lentidão que os leva, o peso dos anos que lhes verga as costas, tudo, e eu, que tive desculpa, vi que não são bandidos nenhuns.

Portanto ando assim, faltou-me isso. Já dei os restos do leitão, incluindo uma parte da pele estaladiça, ao cãozito branco assustado que mora lá na nossa serra e que nos visita de vez em quando e que afinal é uma cadela, já me inscrevi no município de Penela para adoptar uma cabra que vai produzir mais leite e assim permitir que mais queijo rabaçal se sente à mesa de mais gente, ou se deite, depende do gosto de cada um, já estou quase a oferecer umas pantufas à minha vizinha de cima, coitadinha, andar de saltos em casa é tão desconfortável e já encomendei a lenha para o resto do inverno aos ingleses que a andam a comprar aos sacos no continente, já fiz isto tudo, mas ainda os velhotes não chegaram ao seu destino e eu quero saber quando precisam de ir às compras outra vez, e outra vez e mais outra, para eu os levar e os trazer, para eu fazer a minha boa acção.

Corri serra abaixo, procurei nas clareiras e junto aos ramos caídos. Cheguei ao vale, à casa que tem sempre roupa estendida, procurei atrás da roupa, chamei por eles, devem ser Zé e Maria, de certeza que são Zé e Maria, mas nada, não os vi, não os ouvi. Subi a serra de novo, chamei-os mais uma vez, encontrei o cãozito branco que afinal é cadela, viste o Zé e a Maria, viste, canita?

E antes que ela me respondesse toca o despertador, são horas de ir trabalhar.

A minha boa acção vai ficar para o ano novo, mas hei-de vir cá contá-la.

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