Sento-me à
lareira e pela janela vejo a velha palmeira agitar-se, acena-me votos de bom
ano, pelo menos parece. Na aparelhagem de som toca qualquer coisa de que gosto
e que foi escrita por Richard Strauss, mas não é a sinfonia dos Alpes, nem a
música do dois mil e um Odisseia no Espaço, não sei o que é. E eis que me vem à
cabeça o acontecimento recente que me fez rir até me doer a barriga e que agora
vou contar, não te importas, pois não? É sobre as botas de sola de borracha que
te ofereci pelos anos, não pelo natal, pelos anos, e que dizes serem perigosas
porque escorregam muito.
Era a véspera de
natal e chovia que se desunhava. Na estação de caminhos de ferro de Coimbra B
podia ler-se nos ecrãs informativos que vários comboios circulavam com atraso
devido à intempérie. Pus-me na fila do guichet da bilheteira, com o
chapéu de chuva a pingar loucuras, se o levasse, mas por acaso o que pingava
loucuras era o meu cabelo, para saber, no guichet, ai que está agreste,
que as composições que vinham da Guarda estavam à espera que fosse removida uma
árvore que o vento deitou na linha. E a nossa composição vinha da Guarda.
Portanto havia que esperar e muito.
Para fazer tempo
ou por necessidade, não sabemos nem temos de saber, Erik decide visitar as
instalações sanitárias que a estação tem à disposição dos passageiros, dos que
têm de esperar muito e dos que não. E que, apesar de situadas por baixo da
cobertura da plataforma, têm o chão de mosaicos lisos encharcado, aquilo foi
água trazida pelo mesmo vento, ou por um vento-primo afastado, quando muito,
que atira árvores para a linha férrea.
Com os seus
passos rápidos e firmes, que nunca abrandam o embalo faça chuva ou faça sol,
sol fazia na histórias das havaianas, mas isso foi há anos, Erik subiu o degrau
de entrada na zona comum dos sanitários masculinos e as botas, entusiasmadas
com a fina camada de água que lá estava depositada, iniciaram um número de surf
bem orientado, controlado, obrigando-o a deslizar, um pé à frente, outro atrás,
os braços semi-abertos para equilibrar, a cruzar o espaço e os utilizadores que
lá estavam por necessidade ou para fazer tempo, já sabemos que isso não vamos saber, para por fim o entregarem, as botas, no urinol que não estava ocupado e
deixarem-no em posição optimizada com vista à concretização do objectivo que
ali o levou.
Ora isto foi no
mínimo admirável. Perigosas? As botas não o encaminharam, no seu surf
natalício, para um urinol ocupado, havia de ser aborrecido, mas que é isto,
companheiro, diria o passageiro ao sentir o impacto nas costas, de repente,
chegue-se para lá, na melhor das hipóteses e se de um cavalheiro se tratasse,
senão nem vou alvitrar que para calão não fui talhada, e o Erik, que ainda só
arranha o português, havia de dizer desculpa e apontar para as botas, ou assim,
mas não, foi num urinol disponível que ele foi depositado, com jeitinho e após
um deslizar harmonioso oferecido de presente.
Entretanto
passaram as primeiras doze horas do ano novo e não pára de chover, já viste?
Não te preocupes, já escondi as botas, pelo sim pelo não.
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