a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/01/2014

Planeta Azul

Li há dias que foram vistos por aí uns objectos voadores não identificados.

Temo saber do que se trata.

Em tempos idos, tempos cujas imagens, lançadas no espaço, já estão a vinte e cinco anos luz de distância, ou seja, a chegar à estrela Vega, eu tinha dificuldade em distinguir salsa de coentros.

Mas não era só isso.

Era também o homem do talho. Todo sabido, todo nove horas, se eu lhe pedia um pedaço de carne, vinha ele com a pergunta, é para estufar ou assar. Assar, assar, respondia ao calhas e muito depressa não fosse ele desconfiar, sabia lá eu o que era estufar. Quer dizer, sabia o que era estofar, mas isso não tinha nada que ver com talhos.

Ao peixe não me atrevia a chegar, se a pergunta vinha, é para quê, ainda me havia de sair é para quê? é para comer...

As senhoras mais velhas que encomendavam ao meu lado, estamos outra vez no talho, é que sabiam.

Sabiam os nomes das partes dos corpanzis da vaca e do porco e para que servia cada uma delas, é para guisar se faz favor. Como é possível?! A carne assim parece toda igual só a picada é que não mas com essa ensinaram-me a ter muito cuidado, tanto, que eu nem a comprava. E o coelho, coitadinho. Tão magrinho dependurado pelos pés e eu desde que um dia vi depenar um coelho, ou matar ou esfolar, um destes nomes há-de servir, não compro coelhos. Nem vivos nem os da exposição na prateleira refrigerada, bem podem vir as senhoras sabichonas da cozinha, que coelho não. Se se tratar de pato ou cabrito, saboreio o arroz do primeiro que a minha mãe faz e passo o natal com o segundo à mesma mesa mas não no mesmo prato, já provei uma vez, obrigada.

Portanto, desviei rota logo nessas primeiras imagens que com a conversa já devem ter chegado a Vega e entreguei-me às prateleiras das embalagens feitas onde só faz falta confirmar a data de validade, onde ninguém me pergunta nada sobre estufar ou grelhar e onde, com sorte, está lá escrito para que confecção se destina o pedaço.

O peixe, Vega já está ao corrente, levou o mesmo tratamento. Nem tentei as bancas, que as postas cortadas e congeladas na embalagem que vem do Atlântico Norte são um requinte, pronto a cozinhar é o que lá diz e cozinhar soa a coisa geral, não há que especificar se é na grelha, no forno ou dentro de água.

Mas isto, senhoras e senhores, trazia-me triste. Não saber retirar o melhor do que a natureza nos oferece ao prato não me povoava a existência de orgulho, não senhor. E por conseguinte as coisas, com o passar dos anos, sofreram certas alterações.

Hoje faço investidas confiantes nos balcões da senha de vez. Comecei pelos do peixe.

À segunda feira digo, com expressão facial adequada, ah hoje não há nada! fingindo que me tinha esquecido que era segunda feira, só pelo prazer de mostrar que sei muito bem em que dias não há pesca. À terça regalo-me com os robalos que levo, são fresquinhos, são? São sim minha senhora, enquanto se abre a guelra ao peixe a ilustrar a afirmação. O tom de vermelho é que diz se é fresco e eu acredito. Até por vezes, ora deixe ficar as escamas que é para fazer ao sal. Uma categoria.

Por causa do peixe, já aprendi a distinguir os coentros. Se me lanço no arroz de tamboril (mas que peixe tão feio, o tamboril fazia-me mais feliz quando o comprava aos cubos dentro do pacote), a prateleira dos cheiros já não me desafia. Pego com muita segurança no raminho que diz "Coentros" na etiqueta. Alguém generoso e com o olfacto afinado introduziu estas facilidades na vida das pessoas, embora com a ligeira desvantagem de, caso ande por perto alguém em idade de lançar as primeiras imagens a Vega, não estar eu em posição de impressionar com a destreza na escolha do ramo.

Quanto à carne, o estado da arte não regista desenvolvimento por aí além. Mesmo volvidos todos estes anos a comer e a beber, não se pode dizer que tenha passado muito tempo encostada aos vidros curvos dos balcões dos talhos a admirar as partes ensanguentadas que dançam nas mãos sábias dos talhantes vestidas de malha de aço, não sei se é para ficarem sexy, eu cá não vou nessa.

No entanto, há que admitir que dá Deus nozes a quem não tem dentes, que no bairro onde moro, oiço dizer, os talhos são que é uma beleza em qualidade.

Faço que sim que sim, concordo logo, ah pois são, até deixo que me brilhem os olhos, mas no que estou a pensar é nos croissants acabados de sair do forno da pastelaria com esta especialidade, que aliás tem fila ao sábado e ao domingo com gente de todas as idades, são delícias para degustar a gorda quantidade de chocolate que sai lá de dentro e nos vem queimar a língua e que nos escorre pelos dedos, mas quem se importa com isso, ninguém. E desses percebo eu desde os tempos com que iniciei esta narrativa, é só perguntar.

O que temo então?

Temo que estas imagens dos croissants a fumegar e a verter o líquido preguiçoso e terrivelmente aromático, tão aromático que foi longe, tenham sido captadas em Vega.

De lá, está visto que enviaram alguém aqui ao Planeta Azul para investigar.

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