Os ponteiros do
relógio marcam meia noite e parece-me quarenta e sete ou quarenta e oito
minutos, sofro de certo paralaxe daqui. O nevoeiro já se dissipou após uma
teimosia mantida o sábado inteiro, fez questão de abraçar a serra sem a deixar
ver o pé.
Levanto-me do
cadeirão que me lembra o meu avô, é por estar junto à lareira que a memória me
põe na infância, visto o casaco e saio para a rua. A luz eléctrica ilumina-me o
caminho empedrado povoado de sombras e de brilhos, herança da
humidade do dia. Entre as pedras grosseiras, anciãs, toda uma colónia de
ervinhas desenha os rectângulos o melhor que pode. A vida quer sempre vencer, penso.
A aldeia está
deserta, está sempre assim à excepção de quando vem a família inglesa, não essa,
outra, é que se vê gente. E um cão, gente e um cão.
Os meus passos
não oiço, as paredes sobreviventes das casas em ruínas já se esqueceram de como
se ecoam sons, que sons ausentes são os que ficaram. Não lhes cobro a falha,
pelo silêncio em que mergulham, deduzo que se julgam mortas.
No chão a minha
sombra agora alongada, cortesia do candeeiro que ficou para trás, chega ao
largo antes de mim. Aqui ouve-se a água que continua
a correr do cano para o lavadouro público e, embora sabendo-se viva, engana-se
muito, que a roupa já não se lava aqui.
Continuo a
caminhar até deixar de ouvir a água, sigo o trajecto por baixo dos postes de
luz eléctrica branca que prolongam o seu serviço até onde já não há ruínas,
casas nunca houve, entregando-me na escuridão que eu penetro até deixar de me ver projectada, esmagada contra o chão.
Não há vestígios
do nevoeiro que embrulhou a serra todo o dia, não há vento e quase não há frio.
E agora sim, olho
para o céu.
Na imensidão
suspensa lá em cima, distingo a via láctea a cruzar o negrume e cá está a minha existência a suspender-se também. Queria inventar uma
história para cada ponto luminoso, mas só sei reinventar a minha: a
pequenez de que sou feita, a irrelevância dos fragmentos de dor que me inundam
o espírito e que agora expulso em espasmos de paz.
Era mesmo isto
que me faltava, uma visita às estrelas. Um vislumbre da via láctea e a certeza
de que sou tão pouco, tão menos do que sinto, tão exígua que só a paz cabe
inteira cá dentro porque vem sem tamanho.
Encho-me do ar desta noite
desembaraçada do manto de névoa que lhe vestiu o dia, mas eu já disse isto, não
já?
- Olha, ali é
Júpiter, vês aquela estrela brilhante?, interrompes-me com o teu smart phone no ar, eu a ver toda a constelação desenhada no ecrã, Júpiter, efectivamente.
Júpiter e esta história que era só minha antes de teres falado. Tornaste:
- Vamos, que o jantar deve estar pronto. Amanhã temos de pôr pilhas novas no relógio, está parado, reparaste?
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