Quando eu era miúda, e durante uns anos, ia na “carrinha” do
colégio para casa, depois das aulas. Havia umas quatro ou cinco “carrinhas”
(daqui em diante designadas apenas por carrinhas) cada uma destinada à sua volta na zona da cidade que lhe fora atribuída. Aguardavam por nós, passageiras, no pátio traseiro do terreno
do colégio. A minha era a
da dona Efigénia. Cada carrinha tinha a sua dona e isto embora possa parecer,
não se trata dum café, repare-se que dona está a sair sem maiúscula se faz
favor. A dona Efigénia, vamos lá a ela, era muito feia e era má. Eu preferia ir
na carrinha da dona Glória, onde ia a minha amiga Ângela, mas essa não passava
pela minha casa. A dona Efigénia também não gostava de mim. Um dia foi dizer à
minha mãe, a estúpida, não sei como, já que a minha mãe nunca estava em casa
quando a carrinha chegava, foi dizer que eu era uma mosquinha morta. E porquê uma
mosquinha morta?! Porque era sempre a última a entrar na carrinha.
- Porque és sempre a última a entrar na carrinha, Susana?
- Porque fico à espera que as outras raparigas entrem.
- À espera porquê?...
- Porque elas dão empurrões e puxões e encontrões, todas
querem ser a primeira a entrar. E por isso eu espero.
Quando entrava, em último, havia lugares vagos de sobra, a carrinha era mesmo comprida. Sentava-me e ia olhando o caminho, que não era
curto. Como não tinha amigas nessa carrinha da dona Efigénia, olhava pela janela
sem falar. Quando passava pela casa em ruínas, uma casa grande e medonha que
havia no cimo de uma pequena colina ao lado da estrada, pensava que era ali a
casa do papão. Toda a gente sabia da existência do papão, que era tão mau e
perigoso como hábil a esconder-se. Mesmo que eu espreitasse muito para dentro
da casa em ruínas e virasse a cabeça para trás o mais que podia até a casa desaparecer ao longe, nunca o consegui ver.
Lembro-me que no dia seguinte àquele em que calhou o diálogo com a minha mãe acima reproduzido o melhor possível, pus-me à frente à porta da carrinha da
dona Efigénia, e mal a porta abriu, esgadanhei-me toda (esgadanhei-me é tão feia como a dona Efigénia) e fui a primeira a
entrar. Levei umas caneladas e cotoveladas, empurrões, mas ia preparada, retribui cotovelos com força e entrei. Desejei que ela me tivesse visto,
para perceber as coisas, mas não sei se viu. Depois, nos outros dias todos e
até conseguir crescer e livrar-me daquela carrinha odiosa, voltei aos meus
costumes e a ser a última a entrar. E não houve mais recados da dona Efigénia. A burra (claro que ela também era burra).
(Mas porquê isto agora? Porque estava a notar o meu blogue ainda
ali com o post de há imenso tempo, um post que desencadeou outros também
servidos em hashtag, muito bonitos, e depois todos esses outros autores já
escreveram mais coisas, várias, bastantes, boas, e eu ainda assim.)
"Esgadanhei-me" consegue ser muito mais bonito do que a dona Efigénia.
ResponderEliminarEsgadanhei-me. Pois consegue.
Eliminar:-)
eu uso muito, mas muito mesmo o 'esgadanhei-me' :)
ResponderEliminarTambém eu. Mas não tanto no blogue.
Eliminar:-)
Saber temperar o que dizemos com palavras que 80% das pessoas não usam é uma maravilha. Então em discurso oral nem se fala, adoro as reacções, faço imensos amigos assim (também já ganhei o adjectivo 'palavroso', mas fiz dele um cartão de visita não oficial para certas ocasiões).
ResponderEliminarComo é óbvio, tem que ser usado como tempero, senão desperta reacções iguais às de tentar entrar numa carrinha escolar em primeiro lugar ;)
Mas Sérgio, tu és um artesão das palavras. Escritas, pelo menos. De modo que não me admiro nada dessa oralidade rica e apreciada pelos demais.
EliminarLembro-me de um texto teu de há séculos sobre uma relação que tiveste com uma caixa multibanco. Curta, a relação, mas nas tuas palavras ficou tão bonita. :-)
Artesão dá-me um ar sábio e veterano - pseudo-artista ou até mesmo matarruano com léxico serão termos mais aproximados da realidade. Acho que, de facto, botar discurso com nuances irónicas e vocabulário puxadinho só é mais complicado, porque a escrita dá-nos a pausa e a hipótese de rescrita, a conversa (tirando discursos ensaiados) vive muito do momento e de ir sem medo de atirar umas quantas bolas para o pinhal.
EliminarE que bela memória, já nem me recordava dessa relação de cartão ;)
Olha o teu post era este (fui procurar):
Eliminarhttps://bloganormalidade.wordpress.com/2016/01/05/os-entupidores/
:-)
Ah, era esse :) Por acaso confundi-o com outro, que fala sobre a minha tendência para pensar que sempre que vejo uma caixa de multibanco vazia e preciso de a usar, alguém se materializa do nada à minha frente, para executar as tarefas mais demoradas imagináveis. O que, ironicamente, vai também dar aos entupidores ;)
EliminarAcho que isso acontece a toda a gente, Mak. Isso e os sacos de compras, quando os pousamos no chão, inclinarem sempre para o lado que não dá jeito nenhum e deixam sair as maçãs, que rolam pelo chão do estacionamento. :-)
Eliminarconcordo com o Sérgio :)
ResponderEliminarsó tenho uma pergunta, naquele dia em que te esgadanhaste toda, também te esguedelhaste, certo? :b
Minha querida flor, eu não me esguedelhei naquele dia, porque esguedelhada já eu estava (era o meu estado natural). Uma das minhas avós vivia mandando-me pentear. :-)
Eliminar(mas eu fugia)
era o sonho dos meus pais, um dia alguém chegar ao pé deles e dizer que eu era uma mosca morta :)
ResponderEliminarUi, então imagino.... pobres pais.
Eliminar:-)
Ora Susana, cada um escreve quando pode ou deseja. E ainda que gostemos de lê-la, também sabemos esperar. E esperá-la por aqui tem o seu encanto:). Interessa é que volte.
ResponderEliminarQuanto a ser a última a entrar: sempre sou a última em quase tudo e só por distracção caminho na frente. Mas chego aos mesmos lugares que os outros. E a Susana também chegava à escola:).
Ó bea, gosto tanto dos seus comentários.
Eliminaradoro ler partilhas de vivências de infância!
ResponderEliminaracho que qualquer um de nós devia de quando em vez fechar os olhos e recordar um momento vivido no passado. recordar a criança que fomos e perceber o que eventualmente tornámos complicado à medida que fomos crescendo. às vezes os problemas nem sequer o são verdadeiramente se pensarmos no essencial!
As vivências de infância moldam de modo determinante as vivências posteriores, creio, e seguramente aquelas de que nos recordamos mais tarde, a propósito de tudo ou de nada.
EliminarFocar no essencial pode ser um exercício de eliminação de preocupações. Acho eu. :-)
Que texto
ResponderEliminarO mundo cheio de Efigênias
Suponho, caro Evandro, que também "usufruiu" de uma ou duas Efigénias... No meu caso, como não conheci mais nenhuma durante toda a vida, acho que felizmente, nem lhe mudei o nome para o blogue. Ela era mesmo Efigénia.
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