a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/11/2017

Em Portugal temos muita sorte

Sentamo-nos na sala, prontos para conversar. À nossa frente temos as bebidas e temos, pode ser, uns biscoitos ou uns queijos, por exemplo aquele que tem nozes embutidas e é tão bom que parece mentira, ou também uma pasta de atum, e ainda um bolo que eu fiz e que tornou a sair mal, avisei, porém não tão mal como o último que foi direto para o lixo (enfim), mas eles querem provar e eu espero que seja do forno (mas pode ser de mim).

Perguntam-me como vão as minhas filhas e como vai Portugal, comentam ainda os incêndios que fizeram notícia em todo o lado. Pego da palavra em inglês que vai melhor que o holandês e conto o que sei, aproveito para incluir um resumo do recente discurso do Al Gore em Lisboa a propósito das alterações climáticas, as minhas filhas estão bem, obrigada. Já devem estar grandes, diz Hilde a sorrir, há tantos anos que as não vejo, oh sim, estão as duas grandes. E depois é a minha vez de querer saber.

Hilde está aposentada da profissão de professora e faz voluntariado. À quinta feira dá aulas de neerlandês a refugiados acolhidos na Holanda. Da Síria, principalmente. Mas também de outros lados.
- E conseguem aprender bem, esses teus alunos?
- Não muito, fazem progressos, mas lentamente. É difícil, porque o alfabeto é totalmente diferente… e além do mais alguns nem sabem ler ou escrever na língua deles.
- A sério?...
- Sim, alguns dos mais velhos. Mas apostam muito nos filhos – as famílias vieram juntas em muitos casos – e esperam que os filhos aprendam e consigam depois um bom emprego.
- Então não têm emprego, esses teus alunos.
- Não, não conseguem arranjar. E por isso ficam muito desocupados. Mas claro que têm uma vida aqui muito melhor do que a que tinham no país deles, isso nem se compara...
- E eles querem voltar?
- Querem. Na maioria querem voltar, acreditam que o país se vai reconstruir, reorganizar. Têm esperança.
E depois pergunta-me:
- Já imaginaste, Susana, estares numa situação em que o teu país não tem nada, está tudo destruído, nem reconheces os lugares onde sempre viveste, e só te resta fugir para um lugar desconhecido na esperança de sobreviver?
- Não… acho que nem consigo imaginar…
- Nós temos muita sorte, aqui na Holanda – continua – e eu tento não me esquecer disso nunca, da sorte que temos. E tentamos, eu e os outros voluntários, fazer estes refugiados sentirem-se bem-vindos aqui. Pelo menos isso creio que conseguimos.

Antes de ir buscar mais bebidas à cozinha, e continuando a não ser capaz de imaginar como se sentem os refugiados, eu ainda disse que também nós, em Portugal, temos muita sorte.

8 comentários:

  1. Sem dúvida que temos sorte; sempre temos sorte se comparados com quem perdeu tudo e vive de empréstimo num país estrangeiro, mendigo de vida e normalidade seja isso o que for. E temos uma sorte geográfica, somos europeus e, mesmo em Portugal, somos dos que têm emprego; e porque temos saúde ou vamos tendo; e porque temos quem goste de nós. Sorte é conseguir reunir três ou quatro factores que nos são fundamentais e que pouco está nas nossas mãos conseguir e dividi-los com quem não tem ou teve esse benefício.

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    1. Sabe, bea, às vezes penso que a nossa maior riqueza pode bem ser a capacidade de sabermos realmente apreciar o que temos e, ao mesmo tempo, - mas isso já talvez seja arte - não largar o osso relativamente àquilo que ainda queremos alcançar.

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  2. Só em horas de luz somos dos mais afortunados. Para já não falar de há quanto tempo não travamos uma guerra com ninguém, nem os ameaçamos de tal.
    ~CC~

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    1. Ah, CC.... regozijei com mais esta sua recente conquista! que exemplo! (obrigada por contar e por contar tão bem)

      E quanto a essa absurda revelação de mentes miseráveis que dá pelo nome de guerra: somos muito afortunados, muito.

      Um abraço apertado.

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  3. Pois temos, Susana. É isso mesmo que costumo pensar, mesmo quando tudo corre muito mal ou acho determinadas coisas completamente disparatadas.
    E o quanto aumentou a nossa qualidade de vida e a aquisição de direitos, pelo menos legislados, nos últimos quarenta e tal anos? Não tem comparação possível, basta ouvirmos os mais velhos, para além da história.
    Depois, tens lugares no mundo dos quais as pessoas têm de refugiar-se, e tens outros, por exemplo, onde uma criança não vai à escola porque os pais não têm a módica quantia de trinta euros por ano, trinta euros por ano Susana, para os poder matricular, crianças para as quais um simples caderno, um bloco, um lápis, é um bem de luxo, que cuidam e protegem como se estivessem a proteger a própria vida, é mesmo como se, agarrados àqueles bens preciosos, estivessem agarrados à esperança de um futuro melhor, e a vontade que têm de aprender, a felicidade com qualquer coisa que recebem, é de nos deixar o coração num frangalho. E aqueles sítios onde uma pessoa ainda mal sabe andar e já lhe põem uma arma na mão? E os que são vendidos pelos próprios pais para serem pau para toda a obra porque fazem filhos de empreitada sem se interessarem com as condições minimamente dignas que não podem proporcionar-lhes, e por ser o que conhecem pois já fizeram o mesmo com eles?
    Pois temos, Susana, em Portugal temos muita sorte, muita mesmo, apesar de todas as razões de queixa e de tudo o que não é um mar de rosas, e continua a não ser para demasiadas pessoas.

    Continuação de uma boa semana (espero que esteja a ser boa) :-)

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    1. Tiras-me as palavras da boca, como se costuma dizer, Cláudia.

      E ainda tiro eu mais estas, a propósito de "ouvirmos os mais velhos": guardo o passaporte da minha avó paterna, no qual há uma inscrição que diz algo como a mulher casada não pode sair do país sem ser na companhia do marido ou então por ele autorizada.
      Mas enfim, ainda há, claro, muito a fazer. :-)
      (está a ser boa, sim, obrigada)
      Uma boa continuação de semana para ti também :-)

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  4. Creio que não temos sorte alguma, antes governantes sabujos e vendidos (venderam-nos), há décadas. Chamar ao que temos "sorte" é uma espécie de auto-flagelação, exactamente aquela que os portugueses, em geral, rifa: compraram, e já está, mas foram mesmo vendidos.

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    1. Claro que dependendo do prisma pelo qual se olha a situação, podemos ter azar e não sorte. Mas enfim, eu tomo um antídoto para a auto-flagelação que tem sido eficaz: faço tudo o que posso, mesmo tudo, para combater os males de que padecemos, que identifico, e que combatendo, podemos valer mais um bocadinho a cada ano que passa, para que daqui a um tempo possamos ser bem comprados em vez de andarmos vendidos.
      :-)

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