Entro numa das carruagens que traz o dois pintado para não
calhar na primeira classe e assim estar de acordo com o preço que paguei pelo
bilhete de comboio; é de segunda. Está um bocado de frio mas não muito, a neve que caiu há
dias nesta parte da Holanda já derreteu. As luvas até acabei de as meter no bolso, fica um alto de lado no casaco que não
dá jeito nenhum mas vou já transferir o alto para dentro da mala,
é só sentar-me. Estou de volta a casa, a Lisboa, e ainda me faltam uns dois
mil quilómetros. A carruagem com o dois pintado do lado de fora que me calhou é a do
silêncio. Eu não faço planos de fazer barulho algum durante a viagem que vai
durar pouco mais de uma hora, por isso
não faz mal ir na carruagem do silêncio e tiro-lhe uma fotografia (para se ver o
silêncio). Logo a seguir à fotografia entram duas jovens mulheres muito iguais, que se sentam à minha frente, viradas para mim. Uma de cabelo liso e
outra encaracolado, mas é só isso, de resto iguais. Roupa igual, maquiagem muito carregada igual,
exclamações iguais, gargalhadas são as mesmas (para não dizer sempre iguais), telemóveis também. Partilham uma excitação, falam sobre alguém, desdenham. Mostram
mutuamente assuntos nos respetivos telemóveis, assuntos a que acham muita graça. Parecem umas parvinhas, mas podem não ser. De qualquer modo não se portam de
acordo com a carruagem, silêncio. Têm as calças rasgadas nos joelhos, nos
quatro joelhos de modo igual, já disse, são iguais. Concluo que
trabalham numa loja moderna daquelas que impõe um outfit
padrão às empregadas não vá elas quererem andar de calças sem buracos e cara lavada, tipo lanchonete. Ou talvez perfumaria, sabe-se lá. Cá para mim estão a caminho do trabalho, arrumo-as assim. Cada uma delas, nos
intervalos das gargalhadas, dá dentadas na respetiva sandes de salmão que desembrulhou da embalagem, também em nada diferentes as sandes. Não se engasgam, não borram o batom, que é marrom. Continuam com as gargalhadas a cada novo ecrã que visualizam uma no
telefone da outra. Já estou a ficar farta. Penso: vou dizer-lhes que estamos no silêncio. Mas não
foi preciso. Um senhor altíssimo, de cabelo grisalho apanhado num rabo de cavalo e óculos redondos,
sai lá de trás e chega aqui à frente dizendo silêncio às barulhentas, e depois aponta para a
indicação silêncio. Este senhor quer trabalhar e assim não pode. E eu quero ler. A do
cabelo liso pediu desculpa, a outra não. A do cabelo liso baixou o tom, a outra
não. A do cabelo liso pôs a embalagem da sandes de salmão no pequeno recipiente para o
lixo, a outra deixou a dela em cima da mesa.
Afinal não eram iguais.
tão bom viajar contigo, Susana :)
ResponderEliminarobrigada por partilhares as tuas viagens.
um abraço
é que eu gosto de te levar, querida irmã (também posso?), comigo :-)
Eliminaroutro, dos com força.
Como se diz popularmente, as aparências iludem.
ResponderEliminarEngraçado haver assim uma carruagem do silêncio.
Foi um excelente exemplo prático disso mesmo, luisa, as raparigas pareciam iguais mas não eram. :-)
EliminarTambém acho. :-)
Às vezes, o silêncio é a conversa mais bonita que existe. Quando viajo de comboio na Alemanha, opto sempre pelo compartimento onde o silêncio é sagrado e, normalmente, é respeitado. Às meninas, eu teria dito: desculpem, mas podiam fazer o favor de baixar o volume? É que o meu livro fala baixinho e eu não estou a conseguir escutá-lo :)
ResponderEliminarUm abraço, querida Susana (que também é uma conversa, mas sem palavras)
Na Holanda também é normalmente respeitado, mas já não foi a primeira vez que vi alguém mandar calar outrem numa carruagem destas pelas mesmas razões.
EliminarEu também gosto muito do silêncio. E até preciso dele. :-)
Outro abraço, minha querida Miss Smile (sem dúvida, e tão rica esta conversa)
Não sabia que existem carruagens de silêncio. Parece-me uma boa ideia para quem pretende ler, descansar, trabalhar. Ou apenas não ouvir barulho.
ResponderEliminarO que mais nos distingue não é o exterior. Facto comprovado:)
Existem. E há sempre gente a trabalhar nos computadores nessas carruagens; o tempo bem aproveitadinho :-)
EliminarComprovadíssimo, bea. É por essas e por outras que eu acho que isto aqui dos blogues não é nada virtual e até muito real, acho assim, por exemplo: conheço melhor a bea do que a empregada do supermercado onde fui hoje e onde vou tantas vezes, que arranja lá os legumes, e com quem troquei no máximo uma "boa tarde" ou "não têm coentros?" :-)
se apenas trocou essas frases, tem razão, conhece-me melhor; mas também porque sou de escrita mais ou menos sincera:)
Eliminare eu gosto muito das escritas que aqui me deixa, bea.
EliminarQuase, quase silêncio, uma vez que não resisti e venho fazer a participação do sorriso que aconteceu-me enquanto lia este post. Tão bom.
ResponderEliminarVou plagiar Miss Smile, (intuo que serei perdoada :-)) também quero essa conversa sem palavras, um abraço, Susana :-)
Toma lá, Cláudia, um abraço de palavras mudas porque desnecessárias à la Miss Smile. :-)
EliminarAs tuas, que aqui deixas, no entanto, são muito eficazes na propagação do teu sorriso para o meu rosto.
Obrigada :-)
ia ficar calado porque vamos no silêncio, mas vou dizer baixinho... que gostei muito deste bocado :)
ResponderEliminarAinda bem que não ficaste calado, Manel :-)
EliminarEu também gostei muito deste outro bocado, obrigada.
Que tal uma petição para introduzir tal coisa em Portugal?! Ando muito de comboio e gostava tanto...
ResponderEliminar~CC~
Isso é que era, CC. Eu também gostava que houvesse menos barulhos alheios a invadirem tanto as nossas vidas.
Eliminar:-)