a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/05/2014

Melhor que chocolate

Estou a começar a assar dentro do carro. O inverno que acabou de nos deixar andou por cá tanto tempo mas tanto, que conseguiu transformar-me numa pessoa desconfiada e agora ando sempre vestida para matar. O frio, claro, não vá ele entusiasmar-se de novo.

Hoje, por acaso, não. Parada no semáforo quando o sol está alto e o termómetro do carro marca vinte e sete graus, isto lá fora, cá dentro muito mais, desaperto o cinto, o de segurança. Depois tiro o casaco e a seguir dispo a camisola que tem a gola alta a condizer com as probabilidades de se levantar de repente um vento antárctico, nunca se sabe, ainda só estamos em maio.

O meu é o terceiro carro da fila e volto a vestir o casaco. E a apertar o cinto.

É agora que cai o verde, cai isto é, acende-se. O primeiro carro da fila não se mexe. O segundo não apita. O terceiro, já disse que sou eu o terceiro, aguarda não muito pacientemente. Precisarão eles de tempo para recuperar do vislumbre do meu descascar capturado eventualmente pelos retrovisores?

Claro que não, dou um toque na buzina. O primeiro vejo que levanta a cabeça - o smartphone está no colo e a contar-lhe novidades, é? - e arranca. O segundo também levanta a cabeça - smartphonezinho ou estaria entretido a raspar com a unha uma nódoa de molho de bife da Portugália que lhe saltou ontem para a calça? - e também arranca.

Eu, o alcatrão livre à minha frente, acelero e cruzo o poste luminoso com o amarelo no fim do curso.

Isto contado assim não tem interesse nenhum, principalmente porque não passei o sinal no vermelho e não fui multada e por isso não me posso chorar.

O que posso é comunicar que é aqui que nasce a app para smartphone que se descarrega da net já automaticamente ligada à Gertrudes ou lá como se chama o sistema de controlo dos semáforos da cidade, e que vai dentro em breve inundar de verde os ecrãzinhos dos smarties parados em semáforos a distrair os condutores, recordando-os da razão de ali estarem, que há que ter cuidado com o aquecimento global mesmo que os invernos se estiquem para lá da conta, que há gente atrás com o dedo apontado à buzina ou mesmo mulheres loucas a despir camadas de camisolas porque adquiriram o síndrome do medo de ter frio todo o ano e é preciso avançar.

Isto sim já tem valor.

Isto e eu ter chamado smarties aos telefones das pessoas.

Haverá alguma coisa melhor que chocolate?

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