a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/05/2018

Compassino

Saio do sol de Lisboa, entrando para tomar o café ao balcão. Quando preciso de café pode ser ao balcão, se é da pausa que careço, tem de ser à mesa. Hoje foi ao balcão. Estava muita gente, até me achei um pouco anestesiada aguardando a minha vez naquele contexto surdo de sons, loiça a tilintar e ordens lançadas de um lado para o outro. Pensei: gostava de ficar invisível por uns minutos enquanto apenas observo assim anestesiada pelo ruído (para descansar). Mas não esperei muito: a empregada do outro lado do balcão – olha aí - que tem uma fala que – atenção – atravessou o quê - vamos lá - atravessou o Equador!
- Á siôra qui desêja?
- É só um café, por favor – articulei bem café para ela me poder ler os lábios caso necessário dada a algazarra ambiente.
E mais ou menos ao mesmo tempo o homem que traz um saco com pacotes de tabaco diz uma bica se faz favor.
- Pódji sê um café, siô? – e em dizendo isto pisca-me o olho enquanto se vira para a máquina de café por trás dela e vai que sai mais um.
Coloca os cafés em cima do balcão, clanc o meu, clanc o do homem dos pacotes (de tabaco), ainda ele está a reagir à provocação e diz que sim que pode ser um café no lugar de bica, mas que giro isso.
- Maiz sábi que um djia um siô mi pedjiu um cimbalino, e eu não sábia o qui era um cimbalino, acredjita? Eu não sabia, não! – diz isto mais para mim que para o homem dos pacotes, visto ele ser menos aberto a conversas do que eu, suponho.
- E agora já sabe? – desta vez ergui mais a voz dado que as minhas palavras tinham pouco do óbvio que se pudesse adivinhar lendo nos lábios.
- Ágora já sei, sim siôra! – rindo, diz.
- Mas sabe porquê esse termo, cimbalino? – para mim a conversa ainda não acabou que eu sou a favor do rigor, evidentemente.
- Não sei, não….
Então, intercalando com as voltas que ela vai dando nas tiradas das próximas bicas - ao final do dia, se fosse eu, ficava tonta - digo-lhe o porquê do cimbalino, uma criação portuense!
- Jura?! – entre duas voltadas para a máquina, esta, que – eu leio – é da marca “Compass” (vê-se perfeitamente).
- Juro. Era como se aqui disséssemos “compassino”, uma vez que a marca da máquina que está aí atrás de si é “Compass”.
- Ah… então eliz lá no Porto juntam umaz letrinhaz no nomi dá máquina e fica cimbalino? Olha lá… eu acho umá graça!

E eu, por acaso, também.

12 comentários:

  1. E como o mundo é redondo, o termo «bica» vem de uma tabuleta que dizia «Beba Isto Com Açúcar» (os clientes achavam o café amargo, pois claro). E onde estava a tal tabuleta? Pois: n'A Brasileira, precisamente (leia-se «bica» então com uma fala lá daquelas que atravessaram o equador).

    Bom domingo, cara Susana :)

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    1. Essa história da "bica" eu sempre achei que era como aquela das motas FAMEL (que não desenrolarei por extenso, crendo não ser necessário), ou seja, fruto da criatividade popular. Mas vindo de tão ilustre fonte (o que se passa hoje, que tenho visitas tão ilustres e raras no blogue?!) olhe, já fico esclarecida, nem pestanejo.

      Um bom resto de semana, querido xilre :-)

      (equador é com minúscula?!)

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  2. E a mim, este teu Compassino, "caiu-me que nem ginjas", isto se eu for pelo rigor da expressão, já se for em rigor da verdade, caiu-me mesmo foi que nem cerejas, que gosto bem mais de cerejas, que até são como as conversas e tudo, (ai, que esta parte é ao contrário) e está aqui a prova, que acabo de ficar também a saber o significado do termo "bica", olha que bom, Susana. Bem, gostei mesmo de vir por aqui fora ao ritmo deste teu Compassino ficando a saber desse papo légáu acompanhado por essa dança de chávenas.

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    1. Eu até acho que nunca comi uma ginja sem ser metida numa bebida que já não me lembro qual era (porque foi há muito tempo).

      Aquela empregada brasileira está invariavelmente bem disposta e contagia ali toda a gente. Põe légáu nisso, minina.

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    2. (encomendei o Mancha Humana, já te disse? mas a Wook está a recuperar das cheias e ainda não entregou - por isso encetei um novo Saramago, que já andava com saudades; entretanto acabei o Rubem Fonseca e olha... acho que é coisa para tu gostares, Cláudia. Chama-se "A Grande Arte" - por acaso já leste?)

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    3. Quero responder-te muita coisa, deixa-me ver se consigo organizar-me e resumir:
      As ginjas são muito ricas em ferro, fazem muitíssimo bem, mas, como têm aquele sabor amargo, tendemos a fugir de comê-las assim como vêm ao mundo, mas, sabes, eu tenho uma ginjeira, então, com mais careta menos careta, faço por comê-las directamente da árvore. Normalmente, usam-se as ginjas para fazer doce e para fazer "Ginjinha". Tens os nossos "especialistas da Ginjinha", as famosas "A Ginjinha" no Rossio e a Ginja de Óbidos (e em casa faz-se assim: ginjas + aguardente + açúcar mascavado e aguarda-se um ano. Disseram-me que faziam assim, nunca experimentei fazer)

      (olha! já encomendaste! Não, Susana, nunca li nada de Rubem Fonseca, vou já anotar, obrigada. Aproveito e também partilho contigo o que vou ler a seguir: "Burgueses somos nós todos ou ainda menos" de Mário de Carvalho (o título do livro vem de um poema de Mário Cesariny)

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    4. Agora que falaste na tua ginjeira (deve ser daí que vem aquela expressão do "conheço-te de ginjeira" vá-se lá saber porquê), adiante, falaste na tua ginjeira e eu lembrei-me de ser metediça e te perguntar como vão os gatos que te adotaram há dias aí no teu quintal, não foi? :-)
      Ah, mas eu adoro o Mário de Carvalho! Também já tenho este último livro dele na lista, é tão bom ler aquele senhor!
      O Rubem Fonseca não adorei de paixão, mas gostei o bastante para o recomendar. Gosto especialmente da forma - a belíssima escrita em português do Brasil que acho tão inspiradora.
      :-)

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    5. Olha, Susana, os dois gatos que querem adoptar-me mesmo contra a minha vontade :-) estão muito bem, continuam embevecidos comigo e não me largam dando só os mínimos de confiança a qualquer outra pessoa, já viste a minha vida? :-)

      (essa expressão "conheço-te de ginjeira" dizem ter tido origem no campo, algumas pessoas, quando estavam na apanha da ginja, escondiam algumas para consumo próprio, e todas sabiam umas das outras guardando o segredo da prevaricação, então, a expressão "conheço-te de ginjeira" corresponderá assim a uma espécie de "sei o que fizeste no verão passado")

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  3. Respostas
    1. Não, não, no máximo compassino, mesmo. What else?

      (acho que o "What else?" era daqui não era?)

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  4. Confirmo a história contada pela senhora com sotaque de quem atravessou o equador. Cimbalino, vem na sequência das máquinas de café italianas de nome La Cimbali.

    Mas o que importa mesmo dizer é que este post exala um aroma a café de qualidade por todos os lados)

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    1. Ah, mas querido Impontual, ela é que não sabia da história do cimbalino, eu já a sei desde miúda :-) (apesar de ser lisboeta até aos 4 avós inclusive)
      Obrigada e desta vez vai um beijinho, póssere?

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