a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/05/2024

Só faltava começar cada frase com imagina

Comprei, pela wook, em modo entusiasmo e de urgência, um livro de uma autora desconhecida recomendado num local de bom consumo literário.
Logo que chegou a encomenda, apreciei a capa. Pareceu-me infantil, mas o problema com o mundo infantil é meu; portanto endireitei as costas e afastei o cabelo dos olhos. Abri então o livro com uma avidez intacta. De pé, mesmo, entrei-lhe pelas palavras a derrapar. Mastiguei as primeiras pseudoideias com o paladar configurado, a cabeça um bocado inclinada a sul, quer dizer, a mente aberta a qualquer luz que viesse, os olhos bem focados. 
Mas estava a escapar-me um sentido, uma imagem sequer. Alguma lógica. Comecei a correr atrás daquelas palavras que fugiam todas em ausência. Eram e não eram em verbos estranhos ou não. Acompanhadas por doses absurdas de talvezes e incertezas de rumo, parei de comer na terceira página. O problema seria meu, evidentemente. Com certeza as pressas. Pousei o livro, voltaria mais tarde. Depois do trabalho, do banho, de um jantar (da luz verde e azul muito linda na noite). 
Porém, na segunda visita, fui recebida com a mesma bacidez, o mesmo vácuo onde nada cabia. Não pude formar qualquer imagem por deslavada que fosse. Aquelas palavras estão inanimadas. 
Não foi uma possibilidade continuar a leitura, e morri-a na página oito. Entreguei muito depressa o livro à estante, recolhi as mãos limpinhas e consumi a indignação num suspiro intitulado sem-título. Foi melhor assim.

2 comentários:

  1. Pela descrição, não estranharia que a autora se tivesse baseado em Schrodinger (mil perdões, mas não consigo fazer trema neste teclado...) -- "ser e não ser" (dito isto, ocorre-me que Schrodinger não fez mais do que pegar no "ser ou não ser" de Shakespeare e mudar apenas o "ou" em "e".

    Mais concretamente, um caso em que as palavras no livro ainda fechado podem estar vivas ou fenecidas. Abre-se o livro, e comprova-se que, afinal, toda a matéria que possam ter tido, já se transmutou em onda fugitiva há muito. :-)

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    1. Caríssimo xilre, eu diria que a sua elaboração vem muito a calhar e possivelmente se reveste mesmo de verdade. Não me admiraria! "ser e não ser! ", até se abrir a caixa. Isto relativamente ao gato, claro!

      Quanto ao livro que inspirou o post, ocorreu-me que tenha ali maozinha de um bot.tipo.chatGpt ou coisa que o valha, tão insípido me soou.

      E finalmente: se a poesia começou a entrar nesta cabeça dura depois de muito ficar à porta, foi em parte pela extrema vivacidade das palavras em alguns poemas!
      Assunto com muito potencial para desenvolvimentos, realmente. 😊
      Bom fim de semana.

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