a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/02/2014

Chamar ao sono

Esta noite sonhei que andava à procura de sombra verde para os olhos, eu. Sombra verde.

Como não sou mulher de pôr sombras nos olhos, já basta as que cá passam e não querem sair, fiquei tão admirada com isto que acordei.

Decidi então, em alternativa e ainda no morno da cama, se é para ficar bonita vou é comprar a camisola que vi na montra da loja do centro comercial aqui do bairro.

A rapariga que lá trabalha quase todos os dias e ao domingo também, gosta de mim. Cumprimenta-me com dois beijinhos e trata-me por querida.

É uma rapariga que põe sombra nuns olhos que reflectem sombras, essas profundas, da alma.

Lembro-me de um dia ter deixado escapar que o marido, quer dizer, não somos casados mas estamos juntos há tanto tempo, não é, o marido, dizia, lhe bate. Mas não muito, pouco. E é só quando se distrai e bebe mais um bocadinho, sabe, querida? E quando dou um passo em frente e enceto uma reacção adequada, indignada, acorre ela, como que a salvar-se, não, não volta a acontecer, ele prometeu.

Quando lá vou à loja oiço-lhe as histórias. É o filho tão pequenino e ela, nos psicólogos, isto há-de melhorar, ele ao que consta não voltou a esticar a mão, não lhe mostro a pressa que por vezes levo no bolso, são as sombras que lhe vejo na alma que me retêm ali. Como todos sabemos desde que Saint-Exupéry escreveu o livro, ficamos responsáveis por quem cativamos.

Cruzo a porta da loja e ela está a atender uma cliente com muita pressa, ora vejamos o que se seguiu. A minha amiga diz à cliente, vou só dar um beijinho a esta senhora. Não demore, olhe que tenho pressa (a cliente tem pressa).

Não demorou o beijinho, claro, mas vi que hoje a sombra é de outro tom, que tom é este.

Meti-me dentro do provador com a camisola não dos meus sonhos, esses andam a passear-me por corredores de maquiagem sabe-se lá porquê, mas de um tamanho acima do meu, mais pequeno não há, querida.

Devo ter engordado, a camisola serviu, é para levar.

Já a sós na loja, que a pressa veio buscar a outra cliente, enquanto faz a dobra da mercadoria, digita no computador a referência, a cor, o tamanho, que é acima do meu (faltei ao ginásio toda a semana, está aqui o resultado), o preço que é de saldo, vai saindo esta conversa.

Sabe querida, e ao dar uma olhada para o cartão de débito que lhe estendo diz o meu nome, e eu, sabe o meu nome, e ela, a sorrir, sei, vi no cartão.

- Como está o seu filho? - pergunto.

- Está bom, foi com a madrinha ver o espectáculo do La Féria. O pai não quis ficar com ele e eu estou a trabalhar, não posso trazer um menino de sete anos para a loja, querida.

- Pois não.

O processo de pagamento e ensacamento do produto em saldo terminou, e ela,

- Venha cá mais vezes.... ai, o nome...

Ajudei-a com o meu nome, ela justifica-se

- São os anti-depressivos, querida, esqueço-me das coisas.

E continua, em resposta ao meu arquear de sobrancelhas.

- Ai não sabia? Fui trocada por outra, estou separada, pus-lhe as roupas à porta, foi mesmo assim, malas cheias à porta, descobri tudo no telemóvel. Ela a chamá-lo amor, imagina, querida, foi um choque, amor! E ele a negar tudo, mesmo com o telemóvel, tudo lá escrito, amor, amor. Ando a anti-depressivos, tem que ser, olhe que perdi sete quilos. E a médica disse-me para eu comer, por causa do meu filho, e eu como, o meu filho é tudo.

Entrou outra cliente e eu despedi-me. Disse-lhe que vai correr tudo bem, para que ela acredite.

Eu acredito.

E agora já sei que o tom que lhe vi na alma é o verde que me veio chamar ao sono.

Meteu-se ali para lhe vestir a vida de esperança.

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