a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/08/2015

A cada baixada, não download, baixada (ou então que título se dá a isto?)

Hoje à tarde visitou-me uma vontade súbita de cozinhar à qual obedeci. Sopa de agrião que é a minha preferida de todas e uma lasanha de atum a pedido (eu antes queria ervilhas com ovos), e depois fui buscar um frasco de quatrocentos gramas de grão de bico cozido. Escorri o líquido conservador de propriedades de grão de bico cozido e deitei as bolinhas amarelo desmaiado sem as contar para dentro de uma taça (de que cor é a taça?). Com uma ferramenta de esmagar batatas e movimentos de cima para baixo, lentos, a arte de cozinhar ainda não se revelou para mim, mas sei que não quer nada com pressas e eu lembro-me disto à medida que baixo a ferramenta de esmagar batatas e pressiono os grãos, com jeitinho, ao mesmo tempo apercebo-me de que a oportunidade de os contar, a cada baixada, não download, baixada, esvai-se definitivamente, processo irreversível no qual nasce mais um pedaço de entropia, os grãos se esfumando ante os meus olhos castanhos de encantos tamanhos, ai não é, as cascas soltam-se dos interiores macios que se ligam entre eles com boa vontade, tanta que a transmitem à taça feita há muitos anos de um plástico amarelo gema de ovo (é esta a cor), ou seja, íamos na quarta ou quinta esmagadela de grãos agora continuamente desmaiados no seu amarelo único quando ao levantar de novo a ferramenta vem tudo atrás, é a união a fazer a força que vence a gravidade e eu já se sabe gosto disto, a ferramenta há-de ter um nome que não faz falta conhecer para que ela dê serventia enterrando-se docemente na massa de grãos com cascas à solta, também gosto de coisas à solta, mas ela soltar-se nada, é um daqui não saio daqui ninguém me tira, vem tudo acima agarrado à ferramenta já se sabe de quê, grãos em massa una e taça a dar-lhes colo côncavo, de forma que lhe deito outra mão a segurar os ânimos, separar os materiais, mas o que vem a ser isto. 

Sem saber ainda que aquilo ia dar o maior parágrafo da minha vida, juntamos-lhe cinco colheres de sopa de flocos de aveia dos meus, que parecem incontáveis pedacinhos de papel de impressora de oitenta gramas por metro quadrado, ter deixado o blogue encher-se de pó dá nisto (ou foi o carro?), uma avalanche de ideias soltas que se atropelam, xô, portanto cinco colheres de sopa de aveia em flocos, vamos pôr uma colher de café de gengibre, filha, toma, substitui-se essa coisa que está na receita que eu não faço ideia o que é (não disse? a arte de cozinhar etc), e depois a abóbora. 

Que não me seduz por aí além, mas a receita diz que sim, abóbora esmagada (claro), depois de cozida, junta-se ao preparado dos parágrafos precedentes. De qualquer forma estamos quase no fim, que só faltam as ervas que diz que são ervas verdes. Juro, ervas verdes, não estou a inventar, aliás eu invento muito menos do que parece. Reuni a comissão de opiniões e decidimos que ia ser salsa em pó e umas folhas de caril de um verde acastanhado (paciência) e também, naturalmente, esmagadas.

Agora frigorífico com a taça amarela gema de ovo e seu conteúdo para que durante a noite façam o que tiverem a fazer e amanhã hambúrgueres disto para o jantar, é uma receita vegetariana pois é.

Depois conto como foi. Os grãos não, esses não me lembrei de os contar.

(nota muito póstuma: para quem leu, dois posts atrás, a palavra "fluida" sem acento no i e fez "tss tss esta mulher não sabe escrever", queria informar que é propositado, eu cá detesto aquele acento no i e no meu blogue mando eu, mas como o Xilre inventou de escrever fluídos - por acaso acho que ele me anda a imitar - eu tive a boa ideia de fazer a nota muito póstuma)

10 comentários:

  1. Deu-te uma vontade súbita de cozinhar ou de escrever?
    E não há uma forma mais funcional de dar cabo dos grãos?
    A falta de acento no fluída deve ser para tornares a palavra mais líquida! ;)
    Beijo, Susana.

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    1. Isabel, na mouche. Fluido que é fluido não tropeça em saliências desnecessárias.
      Há forma mais funcional de esmagar grãos, mas faz barulho e não inspira posts.
      E sim, claro, deu-me uma vontade súbita. Dupla. :-)
      Beijo, Isabel.

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  2. Depois de há uns anos a economia nacional ter estado quase, quase, a ser salva pelo franchising do pastel de bacalhau, há que continuar a senda da inovação, intrepidamente, neste país! Daí, uma modesta contribuição, pela invenção dos «fluídos», forma que, meramente por acaso, coincide com o particípio passado do verbo «fluir» (com acento e tudo!). Quem sabe se, bem promovido, ainda se torna um invento de valor, daqueles que ajudam a aumentar o rating da República...

    Uma boa semana, Susana :)

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    1. Meramente por acaso, diz muito bem. E quanto ao seu invento (nosso, que eu é que tive a ideia da poesia fluida) é capaz de vir a ter valor, mas não com um franchising (itálico) de pasteis de bacalhau que não levam acento nenhum, esses já muita gente inventa há imenso tempo de tomar assento para os degustar... Filhós?

      Uma boa semana para si também, caro Xilre! :-)

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  3. Querida Susaninha, foi um prazer entrar na sua cozinha de letras (e de afetos) e ler este seu tecido bordado com temperos e ervas verdes (a salsa parece-me bem), cozido com linha amarelo desmaiado. Quanto ao “fluido”, estou a vê-lo aterrorizado, com um grão-de-bico equilibrado no “i”, tentando escapar da fúria destruidora da ferramenta esmagadora de batatas :)

    Um beijinho

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    1. Ah, Miss Smile! Um comentário melhor que o post não vale!
      :-)
      Tão bom, tão bonito. Obrigada, querida Miss Smile.

      Outro beijinho.

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  4. Susana, vou repetir-me e acredite que nada tem a ver com senilidade. Acho que ainda estou um pouco longe... dizia eu que me vou repetir, e vou repetir-me escrevendo que beber os seus textos fazem um bem danado à alma. Provavelmente ao corpo também.

    Uma pessoa embebeda-se com as letras que andam ali a rodopiar à nossa volta num vira muito perfeito. E uma pessoa vira e volta a virar sem problema algum. Ressaca? Nem pensar. Isto é "bubida" da boa.

    Um grande beijinho para si :)

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    1. "Bubida" da boa é esta de receber um comentário como o seu, que não só faz um bem danado à minha alma como também ao meu corpo, porque me abriu um sorriso de alegria no rosto e outro no coração.
      Muito muito obrigada.

      Querida Maria, outro beijo dos grandes para si.

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  5. Querida Susana, hoje venho aqui só para te deixar um beijo.
    O texto, magnífico, já o li no outro dia.
    Até já.

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    1. Querida Teresa, e eu li este teu maravilhoso comentário ontem e só agora te respondo. Muito obrigada.
      Eu dou-te um beijo de volta e um abraço. :-)
      Até já.

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