a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

25/08/2015

Imensa poesia fluida

A estação de comboios de São Bento põe-se a jeito para muitas oculares de registo fotográfico de todos os tipos; desperta um passado comum que nos abraça como se faz aos filhos e acaricia-nos, até, um ou outro sonho representado num dos painéis de azulejos que contam histórias só nossas. Foi este o aperitivo para um dia de cruzeiro no Douro. Apanhámos aqui o comboio com destino à Régua, percurso que inclui uma parte a prometer ser linda: a composição desliza como se quisesse desenhar a margem do rio. Ora qualquer pessoa com isto se anima, sem esforço, da expectativa de ver o Douro de comboio antes de o ver por dentro, no seu curso líquido, quando lhe escorrermos na superfície da artéria, mais tarde. Vê-se bem que promete, a viagem de comboio promete. Mesmo que o joão pestana não apanhe a mesma carruagem ou, apanhando, não se sente ao nosso colo e a gente se mantenha de olho bem aberto, não nos deixam descortinar a paisagem nem constatar-lhe o selo de beleza, a promessa ficamos sem saber se é cumprida. Esta viagem de comboio pela margem do Douro recomendo-a apenas, embora vivamente, às pessoas que gostarem muito de observar durante duas horas todos os detalhes da parte do graffiti que cobre a sua janela, visto do seu avesso. Há-os de todas as cores, os graffiti, é uma questão de escolher o lugar junto à tonalidade que mais lhe agradar. O meu é preto como mostra a figura e agora podemos inclinar a cabeça e dizer em coro, enternecidos, oh tão fofinho ou oh que lindo, se tivermos vontade. Não é o meu caso, que antes queria ter apreciado a paisagem lá fora a espraiar-se sob a luminosidade da manhã fresca de verão, de forma que saí do comboio duas horas mais velha, atordoada, irritada e triste. O Douro terá feito algum mal à CP, pergunto-me, a CP não gosta do Douro, respondo-me, gosta é, e está visto que muito, de graffiti nos seus comboios deste abençoado troço, ou será das janelas, não gosta de janelas com a função a que se destinam as janelas, por isso circula assim, com elas tapadas de muitas cores, vestiram-se os comboios para uma festa, outra, que não esta.


Mas ainda há o barco, o cruzeiro, o Douro por dentro. A partir do apeadeiro da Régua, caminhamos em manada atrás da menina que empunha alto mas não muito a bandeira do operador turístico, não nos dispersemos, que somos várias manadas de vários operadores turísticos, todos devolvidos pelo mesmo comboio, e todos por ali abaixo assaltados por pilhas de chapéus a cinco euros, brandidos nas mãos de vendedores atacantes, a cada cinco passos cinco euros, chapéus a cinco euros, mas bem, vamos em direcção às maravilhas do nosso Douro tão lindo, desviamo-nos dos chapéus sem com eles colidir, isso conseguimos, o Douro a vislumbrar-se lá em baixo, até que enfim, e o nosso é o último barco do cais.

Dentro, as mesas dispõem-se muito juntas, conto sete mesas vezes sete lugares dá quarenta e nove passageiros, minha senhora dá licença, chego a minha cadeira à frente para a senhora de trás se sentar, costas com costas comigo, e ela nem é gorda, isto é apertado sorrimos de lado uma à outra, desculpe, se faz favor, olhe a sua mala, caiu, obrigada.

Neste momento ocorre-me que o cruzeiro tem a duração de seis horas e noto que deste lugar mal vejo o rio lá fora, felizmente as janelas do barco são das boas, estão nuas, mesmo assim tive um impulso de fugir, em vez disso sorri e tentei meter conversa com os cinco desconhecidos da nossa mesa (o melhor do mundo são as pessoas, lembrei-me).

É com o barco já em andamento e o primeiro porto meio bebido, um porto branco, que nos é servido o próximo entretenimento. Que é isto, parecem obras, mas ai não, não são obras, é uma espécie de música, intensa barulheira distorcida que jorra dos altifalantes dispostos em todos os cantos dentro e fora do barco (dez minutos depois, quando consigo desenfiar-me do meu lugar fazendo levantar oito pessoas de duas mesas para eu poder passar, fui verificar que fora também, no deck também há altifalantes), música terrível, aos berros para superar o ruído do motor do barco, tzztum tzztum a bundjinha, há música brasileira tão boa e eles nisto, seis horas assim não, tzztum tzztum a bundjinha, o resto não percebo, mas estás aqui é para ver o rio, olha para o rio, já olhaste, já olhei, é tão lindo, pois é.

Antes mesmo de o almoço ser servido, já me tinham assaltado pensamentos encorajadores do tipo tu sabes nadar e a água não está fria, a margem é já ali, pensamentos de querer ir ver o rio mais de dentro, sentir-lhe o pulsar do sangue, misturar-me com ele, fazer ali imensa poesia fluida, mas antes de me deixar encorajar tanto, tentámos trilhar o caminho mais fácil: implorámos em três rondas de ataque (Erik e eu) para desligarem a música. À terceira desligaram, respirei de alívio, agradeci do coração, e depois olhei em volta: ninguém pareceu importar-se, nem mesmo os brasileiros presentes (havia também espanhóis, ingleses, holandeses, canadianos e portugueses mas poucos).


A duas horas e meia do fim do passeio, já depois de termos descido trinta e cinco metros na eclusa que já foi a maior da Europa (impressionante esta eclusa, também tem foto onde se vê um barco muito maior, que se meteu lá dentro connosco), o motor do nosso barco calou-se. Começámos a deslizar na água de uma forma que se designa normalmente por à deriva, embatemos num objecto verde que sinaliza a zona navegável e os rapazes da tripulação a correr ao deck e a esbracejar para um barquito de borracha que ia a passar, pode levar-nos até à margem? o motor do barco avariou. O barquito de borracha tentou, sem sucesso, a potência não chegou para tanto, e foi a lancha que passou veloz (os rapazes a esbracejar outra vez), que nos arrastou para atracar num local apropriado onde ficámos à espera, durante uma hora, do autocarro que nos levou de regresso ao Porto. E, como não há duas sem três, também mostro o barco protagonista da aventura, no qual nesta última hora de espera, atracado, se ouviu então música portuguesa do tipo pimba, tira o carro e toma lá o bacalhau, essas coisas, que não é tão má como a outra, porque não tem o tzztum tzztum.


(Douro, querido rio, voltaremos para te visitar. Sem comboios sujos, sem barcos barulhentos, sem lixo. Assim havemos de conseguir ver-te. A ti.)

PS: No dia seguinte, escrevi à CP - Comboios de Portugal a manifestar a minha indignação pelo estado dos comboios, todos os que vi no Douro estavam assim. Já passaram duas semanas e ainda não obtive resposta.

13 comentários:

  1. A estação de S. Bento é a mais bonita que conheço. O Douro é uma perdição. Ou não fosse eu uma duriense de gema.

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    1. Essa também é a estação mais bonita que conheço e o Douro será uma perdição para mim, talvez, se da próxima o conseguir realmente visitar.
      Um abraço lisboeta a essa duriense de gema. :-)

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  2. Obrigada Susana, pela denúncia de tanto inútil folclore. É preciso ter coragem para dizer que não presta, que não vale, que é chinesice, bijuteria para entreter turistas apressados. Felizmente, o Douro é outra coisa, é muito mais. Mas é preciso procurar.
    Abraço

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    1. Folclore! Bolas, porque não me lembrei dessa palavra maravilhosa que tinha ficado tão bem ali no post?! Inútil, de facto. Eu, que não sou turista apressada, senti-me mesmo em excursão de carneirada, até tive vergonha. É uma vergonha, de facto.
      Agora irei procurar, sim, mas de carro. :-)
      Outro abraço, querida MP.

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  3. O Douro é mesmo uma perdição, Susana, é de cortar a respiração. Já fiz esse percurso mais que uma vez, mas de carro e fiquei por lá uns dias, para poder ver o máximo possível. Mas este ano, desassossegaram-me para ir fazer o tal cruzeiro, ora pois claro que sim, vamos lá ver como é, isso nunca fiz. Então, para o próximo mês, lá vou eu... e agora fiquei tão empolgada, mal posso esperar...:)
    Beijinhos, Susana.

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    1. É mesmo o que vou fazer, Cláudia, de carro. Quero ter a respiração cortada pelo Douro, que o Tejo já ma cortou muitas vezes, o safado. E o Mondego também é capaz de fazer o mesmo. :-)
      Mas olha, o cruzeiro... sei não. Leva tampões para os ouvidos, podem dar jeito. :-)
      Beijinhos, Cláudia, e boa sorte (depois podias abrir um blogue para contar isso, sim?)

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  4. Ainda não fiz esse passeio mas está na minha lista! :)
    O Douro é tão bonito.
    Beijos Susana

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    1. Querida Just, desejo-te boa sorte (depois contas?). Se não adorares música doida, leva tampões para os ouvidos.
      Beijos de volta. :-)

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  5. Há uns anos fiz essa viagem, mas não integrada em grupo organizado.
    Há vários operadores e, presumo, com ofertas e qualidade distintas. Na altura, tive música ao vivo boa e o passeio foi agradável.
    De facto, em várias zonas há comboios todos pintalgados. Fico aborrecida quando apanho disso na linha de Cascais porque não posso ver o mar.
    Se não foi uma reclamação, a empresa, em termos legais, não ter obrigação de responder. Embora a ética "mande" agir de outra forma. Digo isto porque às vezes somos demasiado brandos em expor os problemas e não pedimos o livro de reclamações.
    Beijo, Susana.

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    1. Sim, é verdade, há vários operadores. Mas eu não fui em grupo organizado, fui, pronto. :-) E por acaso acabo de chegar de Carcavelos e reparei que sim, que os comboios da linha de Cascais andam na mesma...
      O que eu fiz com a CP acho que foi uma reclamação, em local próprio no site da empresa.
      Beijo de volta, Isabel, e obrigada pelo teu comentário. :-)

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  6. Quase nos cruzámos como já tínhamos constatado e não me aconteceram alguns desses percalços. Aconteceram outros. Gostei mas não repetia. É algo para se fazer uma vez e basta. Mas agora constato através dos teus olhos e do teu sentir que fiz a viagem completamente alheia a tudo isso.
    (nem sei se é bom ou mau!)
    ;)

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    1. Eu acho que é bom, Maria, se fizeste a viagem alheia ao que é dispensável, é porque conseguiste apreciar bem.
      Pois foi, quase nos cruzámos. :-)

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  7. Quase nos cruzámos como já tínhamos constatado e não me aconteceram alguns desses percalços. Aconteceram outros. Gostei mas não repetia. É algo para se fazer uma vez e basta. Mas agora constato através dos teus olhos e do teu sentir que fiz a viagem completamente alheia a tudo isso.
    (nem sei se é bom ou mau!)
    ;)

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