a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/09/2015

Deus me livre

Estaria a tarde de setembro adiantado calma, morna e com possibilidades de se ouvirem as moscas, caso as houvesse, não fosse a algazarra que vem aos altos e baixos, mais dos primeiros que dos segundos, dos lados da cantina.
O senhor, vamos supor que se chama Ramos, trabalha na portaria da empresa e regressou de férias neste muito dia, para quem tem a pachorra de me ler há tempos, sabe que "muito dia" vem directamente traduzido do inglês, há expressões que se me colam aos dedos e não saem nem com pasta de dentes, mas dizia eu que o senhor Ramos regressou de férias e trazia muita saudade da dona Esmeralda que anda nas lides das limpezas da cantina e sei lá mais o que faz ela ali enquanto canta, mas hoje não canta, o dueto que ouvimos é outra coisa.

Uma vez que sou sensível a barulhos, não lhes gosto dos comprimentos de onda, estou aqui estou a levantar-me e a ir lá das duas uma, ou para me divertir, ou para lhes perguntar se ouvem mal com cara feia, eu, mas ainda não me decidi.

Devido à inercia que me manteve a terminar uma coisa que estava a fazer muito bem feitinha, levantei-me só alguns minutos passados, pus-me ao caminho que não é longo, mas quando lá chego já só a encontro a ela a esfregar a vitrina da montra das sobremesas e das saladas, com muito vigor aplicado ao pano amarelo. 
- Vim tarde para a festa, já percebi. – isto digo eu. 
- Qual festa, menina? ... Aquela conversa? Ouviu?! 
- Ouvi a barulheira. O senhor Ramos vinha com saudades suas, não vinha? 
- Ele?! – olha-me por cima dos óculos com o pano a descansar-lhe na mão, por um momento, a avaliar se me conta se não conta. 
Diga lá, ele vinha. 
Olhe, vinha, pronto. Disse-me que pensou em mim nas férias, acha normal?! – e retoma a esfrega do vidro que deve ser o vidro mais lavado de toda a região de Lisboa e Vale do Tejo.
- E a dona Esmeralda? Não pensou nele? 
Aixa?!?!?!? - o olhar reprovador que me oferece por cima dos óculos é dos que eu gosto, mas crendo que me estiquei um pouco para além das minhas funções, arrepiei caminho. 
Dona Esmeralda, até eu pensei nele de cada vez que vi o outro, o substituto, qual é o problema? 
Ela sacode a cabeça com firmeza, muda de vidro e atira-me com o que lhe vai na mente. 
Sabe porque é que ele falava alto? Eu digo-lhe. Ele vinha com aquelas conversas das coisas sem sal e sem glúten, sabe como ele é com a mania das alergias, e eu disse-lhe, sabe? Eu disse-lhe – a esfrega continua com o mesmo vigor, que é muito – disse-lhe que o que ele devia era ser menos alérgico àquelas coisas e mais alérgico ao alho e à cebola crus, que ele come muito. – pausa para me fitar avaliando o impacto da ideia que acabou de revelar. 
A minha filha mais velha – a dona Esmeralda tem duas filhas – que trabalha muito com médicos, ela sabe, ah pois sabe, e diz que o alho e a cebola crus fazem muito mal. Devem ser cozinhados, está a ver? Assim num refogado bem puxadito, está a ver? – o refogado bem puxadito acompanha com uns gestos dificílimos de descrever realizados com a mão livre e que dão a ideia de estar a apalpar balões no ar - mas ele não gostou que eu lhe dissesse aquilo, o que é que lhe hei-de fazer? Ele é assim, tem lá aquela mentalidade dele... - conclui com um encolher de ombros.
Eu não a interrompo. 
- Sabe que ele pensava que os rapazes que vê na televisão sem pêlos nenhuns, todos lisinhos, está a compreender? Pensava que já tinham nascido assim, os rapazes? – o pano amarelo está agora mais dobrado a limpar as calhas onde correm as portas de vidro da vitrina.
Dona Esmeralda, quais rapazes? 
Ó filha, esses moços, esses do desporto, que aquilo é tudo lisinho, não é? Pois ele pensava que tinham nascido assim, não sabe que os homens também fazem depilação. Definitiva! 

O detalhe de ter a depilação masculina sido adjectivada como definitiva, conduziu a conversa para desenvolvimentos não autorizados para publicação.

No fim, com uma vitrina a brilhar por testemunha, a dona Esmeralda remata com um deus me livre, filha, deus me livre!

De volta ao meu trabalho, não sei se o deus me livre se deve aos hábitos de consumo de alho e cebola crus, se à mentalidade dele ou se a ambos. Só sei que a solidão do senhor Ramos me entristece.

12 comentários:

  1. Poderá ser também da depilação definitiva... :))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Essa é a parte da conversa que não posso revelar, Luisa. Mas sim, é uma hipótese a considerar. :-)

      Eliminar
  2. O senhor Ramos, deve pensar que, homem que é homem, se não tem pêlos é porque nasceu sem eles, não lhe deve passar pela cabeça que, homem que é homem, se depile, ainda por cima, definitivamente...
    Susana, este post está a fazer-me rir e isso até pode fazer de mim uma criatura desalmada, sem o mínimo de solidariedade para com a "solidão" do senhor Ramos, mas, repara, a dona Esmeralda iria querer cozinhar, o alho e a cebola que o homem tanto gosta de comer crus, "Assim num refogado bem puxadito..." estás a ver, não estás?...talvez Deus esteja também a livrar de boa, o senhor Ramos, por incompatibilidade e evite mais duas pessoas que passam a estar acompanhadas mas sem fazerem verdadeira companhia uma à outra, aquilo de que tão bem falou o Nietzsche...

    Beijinhos Susana, e um resto de domingo em bom.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Faz rir, pois faz, Cláudia, as teorias deles, quando confrontadas e defendidas pelos próprios em duelo verbal, sempre educado, têm muita graça.
      Há hordas de gente que, estando acompanhada, está só. Mas não tenho a certeza se seria o caso destes dois. :-)
      Beijinhos, Cláudia, e boa semana.

      Eliminar
  3. Eu acho é que i Sr. fica com mau hálito de comer alho e cebola. Por isso é que a D. Esmeralda lhos quer cozinhar! :)
    E olha que ela parece pronta a mandar o homem à Esteticista! Lisinho é que ela o quer! ;)

    Beijocas, Susaninha, e boa semana. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E achas bem, Maria. Alho e cebolas crus notam-se bem até uma distância considerável. :-)
      Beijos e boa semana para ti também.

      Eliminar
  4. Apesar de falares mais vezes na dona Esmeralda, já tinhas referido por aqui o senhor da portaria num texto em que se pressentia teres um carinho especial por ele.
    Pois, não me parece que a senhora tenha razão quanto ao alho e à cebola. Mas folgo em saber que está muito inteirada sobre o método de depilação dos rapazes. Mas a maioria deles faz definitiva, é? Não sei nada dessas coisas...
    A solidão de alguém é sempre comovente, Susana.
    Beijo e boa semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Isso é que é boa memória, Isabel! Que me lembre já tinha referido o senhor Ramos - ainda sem nome atribuído - duas vezes, mas foi há muito tempo.
      Eu tenho carinho especial por quem é só e mesmo assim se interessa pelos outros e pelos mistérios da vida (ele é um filósofo).
      Nem eu sei dessas coisas Isabel... mas se não me ponho a pau, aprendo :-)
      Beijo e boa semana para ti também.

      Eliminar
  5. Não pude deixar de visualizar a D. Esmeralda a apalpar balões no ar e imaginar todas as expressões que acompanharam o diálogo. Já construí uma D. esmeralda, não faço é ideia nenhuma se corresponde à verdadeira. Mas também não é preciso, não gostaria de me dececionar. Gosto desta que me transmites através dos teus textos.
    Beijinhos e votos de uma boa semana, Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Maria, aposto que a "tua" dona Esmeralda é a verdadeira. :-) E aposto que a imaginas na perfeição.
      Beijinhos e uma óptima semana para ti também.

      Eliminar
  6. Desconfio que a solidão do senhor Ramos continuará durante muito tempo, caso ele continue a ingerir alho e cebolas crus. Deus valha a quem lhe esteja por perto! :)

    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O pior é que ele não tem ninguém por perto, que eu saiba.
      Teté, que bom ver-te aqui! Bem-vinda! Foi divertido brincar aos fotógrafos lá no teu blogue. E que bem orquestraste toda aquela gente a fazer apostas "na água". :-)
      Beijinhos de volta.

      Eliminar