a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/12/2015

A banda

Desde há um tempo que não consigo escrever do fundo, entrar nos meus confins e escarafunchar em busca de tesouros, o que me sai é raspado com esforço da superfície da pele e depois vou compor sem graça num retângulo igual a este em que escrevo agora. Tenho muita pena de ficar assim desagregada em duas partes, a casca e o núcleo, que deixou de estar ao meu alcance. Causa-me a situação um tom esverdeado no rosto, muito feio, que vejo ao olhar-me no espelho da casa de banho lá no trabalho. O verdadeiro espírito do natal não me entrou como de costume, ainda não me bateu a espécie de amor pela humanidade em geral, o desejar boas festas a torto e a direito mas do coração, o caminhar a sorrir por defeito, tudo isto era assim e nada disto está sucedendo. Hoje até dei um salto acrobático à hora do almoço ao centro comercial e em duas lojas comprei cinco prendas, estou quase lá que eu no total são mais de trinta, e quando estava já de volta ao carro, esbarrei na Margarida, olá, disse-me a Margarida e eu mas donde a conheço, esta moça, ah! conheço do trabalho e claro que ali nunca a tinha visto, no centro comercial, de férias, informou-me, e então a ela sorri e dei as boas festas, por acaso simpatizo mesmo com a Margarida, mas o natal nem aí, de sacos de presentes na mão, me entrou de frente, portanto durante a tarde tentei rodear-me de jingle bells dos bons e tudo, mas acabei n'"A banda" do Chico Buarque que é o melhor jingle bells que podia haver afinal, principalmente a parte do velho que se julga moço e sai dançando na rua e se alguém estiver a fim é aqui se faz favor.

De maneira que às vezes apetecia-me ser brasileira e fazer-me bonita, dizer-me: deixa p'ra lá não esquenta a cabeça não (aposto que voltava a ter o rosto cor de rosa). Por exemplo, a dona Rita, que é brasileira e limpa o escritório lá do trabalho, assoma à minha porta com as luvas de borracha amarelas e, toda bem disposta com o seu rabo de cavalo loiro a dar a dar, diz-me que é um calor humano que dali vem. Mas não é. O calor que dali vem, de dentro da minha sala, é do aquecedor elétrico. Que faz vzzzzzz o tempo todo sem parar e só foi interrompido quando eu toquei "A banda" do Chico Buarque e acabei me consolando um pouco com a parte da moça feia que vai à janela e pensa que a banda toca para ela.

26 comentários:

  1. Se não é para ela, é para mim, Susana! Juro que ouvi a banda passar cantando coisas de amor. ;))

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    1. Então já somos duas, Ava.
      Eu também a ouvi. Várias vezes de seguida. :-)

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  2. Para onde vão os guarda-chuvas, de Afonso Cruz:

    «A minha mãe, Sr. Elahi, interrogava-se para onde vão os guarda-chuvas. Sempre que ela saía à rua, perdia um. E durante toda a sua vida nunca encontrou nenhum. Para onde iriam os guarda-chuvas? Eu ouvia-a interrogar-se tantas vezes que aquele mistério, tão insondável, teria de ser explicado. Quando era jovem, pensei que haveria um país, talvez um monte sagrado, para onde iam os guarda-chuvas todos. E os pares perdidos de meias e luvas. E a nossa infância e os nossos antepassados. E também os brinquedos de lata com que brincávamos. E os nossos amigos que desapareceram debaixo das bombas. Haveriam de estar todos num país distante, cheio de objectos perdidos. Então, nessa altura da minha vida, era ainda um adolescente, decidi ser padre. Precisava de saber para onde vão os guarda-chuvas.
    - E já sabe? - perguntou Fazal Elahi.
    - Não faço a mais pequena ideia, mas tenho fé de encontrar um dia a minha mãe, cheia de guarda-chuvas à sua volta.»

    Um beijo, querida Susana.

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    1. Querida flor, adorei. Sabes, nunca li Afonso Cruz, quer dizer, li agora este trecho que me ofereceste. Mas já gostei, porque eu também penso este tipo de coisas. Por exemplo, para onde vão as canetas que perdemos. Incrível. Obrigada.
      Outro beijo, querida flor.

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  3. Homónima, eu discordo e discordarei sempre das tuas três primeiras orações, pois se há coisa que me faz ler-te cada vez que partilhas connosco é precisamente esse teu jeito de ires ao teu âmago, à tua alma, e duma maneira ou d'outra desmonstrares tal.
    A banda? Tu também nos dás música, em forma de narrativa. :)
    Bj grande

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    1. Querida Homónima, essas são palavras compõem uma oração que vem direita ao meu âmago, afaga-o. Muito obrigada. :-)
      Outro beijo grande de volta.

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  4. Eu sou a moça feia, Susana, e toco nestas teclas mas desafino imenso.
    Estou aqui a espreitar para te desejar um Feliz Natal do fundinho de mim, viu? Não esquenta, vai, cê passou o ano inteirinho dando presente pra todo o mundo. Amar tanto também cansa, né?

    Um beijo, querida Susana.

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    1. Minha querida Teresa, moça feia não escreve coisa linda feito essa não! Com um fundinho lindão assim, olha só!
      Muito obrigada, viu? Valeu!

      Outro beijo, querida Teresa. :-)

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  5. Venho aqui a estas 'bandas' deixar esta musiquinha: Feliz Natal minha querida Susana. Abraços enormes e muita luz no sapatinho.

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    1. Querida Uva, as tuas palavras são uma boa música para estas "bandas", muito obrigada!
      Um Feliz Natal para ti e para os teus, Uvinha. Com muita alegria, que de certeza não falta a quem está à tua volta.

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    2. Olá Uva, Feliz Natal! Um abraço natalício.
      (desculpa Susana, mas comentar lá na Uva é mais complicado)

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  6. A Teresa antecipou-se com o português com açúcar mas eu também não resisto...Mas que papo furado é esse minina? cê não consegue ser feia nem tentando, cê é mas é linda, viu?

    Já sabes que gosto carradas de ti, como estamos na quadra natalícia, gosto rabanadas de ti;

    Este comentário é também um pretexto para vir desejar-te um feliz Natal. Feliz Natal, querida Susana.


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    1. O papo estava furado para poder peneirar o açúcar do português da Teresa e do teu e de todas estas comentadoras tão queridas que eu tenho.
      Eu também gosto rabanadas de ti, Cláudia, e sonhos, às vezes, com um blogue teu, um que venha quiçá em 2016. (boa?)
      Muito obrigada e um Natal muito feliz para ti também, querida Cláudia.

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    2. Isso do blog, não vai acontecer, Susana, quero ler-vos, ler-vos até que os olhos me doam :-)e dizer-vos coisas e gostar muito de continuar a visitar-vos e pensar, abençoadas pessoas que decidiram ter um blog para que eu possa usufruir de mais esta coisa que pode ser tão boa, isto dos blogs. Continua tu por aqui, por favor, ainda havemos de trocar tantos dedos de conversa!
      Até já, Susana. :-)

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    3. Está bem, não insisto mais. :-) O que importa é que continues por aqui, querida Cláudia.
      As caixas de comentários são um lado vivo, muito importante, de um blogue. E tu, como uma das "grandes comentadoras de 2015" :-) dás uma contribuição muito rica, com elegância, és sincera e dedicada.
      Até já, pois. :-)

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  7. Moça, cê tá pirada! Pôxa, uma moça tão linda escrevendo bobagens!

    Boas Festas, Susaninha, e muita luz! :)

    Beijos.

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    1. Querida Maria, com a tua presença assídua e dedicada neste blogue (e nos outros), o Natal é de certea luminoso. Muito obrigada.
      Ah... e bobagem a gente (eu) gosta de escrever, não é não? :-)
      Um abraço apertado, Maria. E um Natal feliz para ti também.

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  8. Mas não é possível, porque este texto e todos os outros são tão incríveis e especiais (às vezes quando tenho desafios de escrita até evito passar por aqui para não me sentir muito pequenina) que são tesouros, sim.
    Bom Natal!
    um beijinho
    Gábi

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    1. Bolas, Gábi, agora fiquei com o coração apertado... tu não tens nada de pequenina, és de uma generosidade imensa, partilhas toda a tua linda cidade no blogue e os emails que recebes e que poderão interessar aos teus leitores, explicas os desenhos do google, escreves os desafios da escrita tão bem e incentivas outros a escrever... eu tenho uma atitude na blogosfera muito mais egoísta, isso sim faz-me às vezes sentir pequenina (tenho a atenuante de ter a vida um bocado cheia de mais, vá lá).
      Um lindo Natal para ti, minha querida Gábi, e escreve muito em 2016.
      Outro beijinho com um abraço apertado.

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    2. Vou guardar esta resposta como uma prenda de Natal :)
      obrigada e um beijinho
      Gábi

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  9. Querida Susaninha, venho, espavorida, trazer-lhe um pratinho de sonhos acabadinhos de fazer. Vai ver que o espírito natalício aparece logo à primeira dentadinha :)

    Feliz Natal!

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    1. Caramba, que sonhos tão bons, Miss Smile. Comi-os todos de uma vez e agora sim, plena de espírito natalício, estou em condições de te desejar um muito Feliz Natal! :-)

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  10. Susana,
    Um Natal cheio de estórias daqueles que só tu sabes contar!
    Beijinho

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    1. Muito obrigada, querida Cuca. :-)
      E o teu que seja quentinho, apesar do frio que faz por aí na Lapónia!
      Outro beijinho.

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  11. Feliz Natal querida Susana Rodrigues.(Escrevo-lho "do fundo", como me soa tudo o que lhe leio.)
    Um beijo,
    Outro Ente.

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    1. Querido Outro Ente, do meu fundo lhe agradeço e retribuo os votos de um Natal muito Feliz junto dos seus e com muitos brinquedos bem arrumadinhos. :-)
      Outro beijo.

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