a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/03/2016

A poesia num mata moscas com voz

Dona Silvina fazia a limpeza lá do escritório. De dentro da sua pele cor de chocolate de leite, retribuía-nos os bons dias não a sorrir mas a rir. Como se viver agarrada à esfregona, a carregar baldes de água escada acima escada abaixo, de luvas amarelas de borracha, fosse caso para tanta alegria. Eu costumava perguntar-lhe à segunda feira como tinha sido o fim de semana. A resposta era invariável, eu sabia, mas mesmo assim queria ouvi-la: como foi o fim de semana, dona Silvina? e ela, a rir: foi ótimo! Uma vez houve que eu quis saber mais, intrigava-me toda aquela alegria: ótimo como, dona Silvina? Ótimo!, repetiu, no sábado abri as janelas, liguei o rádio bem alto e fiz a limpeza à casa toda, ficou a brilhar (e ria-se)! Dona Silvina conquistou assim o meu coração, que é mais fácil de se abrir para quem anda de esfregona na mão a ter fins de semana ótimos do que para quem exibe punhos de camisas caras e semblante sobranceiramente carregado. Um dia dona Silvina, no caminho para casa, ao atravessar a estrada na passadeira dos peões, foi colhida por um motociclo que depois de a fazer tombar fugiu. Ficou dona Silvina no chão com um pé partido e, depois de um tempo no hospital, um ano em casa a recuperar. O seu lugar nas limpezas lá do escritório foi ocupado, à vez, por várias colegas. Mas dona Silvina recuperou totalmente e regressou. Hoje de manhã, nas suas voltas com a esfregona, aproximou-se da porta envidraçada da cantina, que estava entreaberta, e ouviu uma voz. Parou sem largar a esfregona e pôs-se à escuta. A voz vem de dentro da cantina deserta e dona Silvina verifica através da porta envidraçada que a televisão está desligada. Mas a voz continuava e parecia vir dali, do lugar por cima da outra porta, a que dá para a copa mergulhada na penumbra, por cima da qual está pendurada a lâmpada de matar moscas, azul, sempre acesa e pronta a atacar. Dona Silvina fita a lâmpada: poderá vir dali esta voz?

Quando acabei de beber o café, toquei no vidro do meu telefone e parei o poema falado que encontrei aquidirigido a quem diz não ter tempo para a poesia. Saio da copa a pensar nisto, não apago a luz que não tinha acendido e, através do vidro da porta entreaberta, vejo dona Silvina a olhar para o mata moscas pendurado por cima de mim.

A alegria escolhe quem não só tem tempo para a poesia, como é capaz de a encontrar num mata moscas com voz.

22 comentários:

  1. Em primeiro lugar gosto do novo cabeçalho, depois gosto da dona Silvina (ainda bem que voltou!), de poesia, de mata-moscas (mas daqueles sem luz, género raquete para moscas), e de telefones que mandam parar poemas. Por isso fico aqui mais um bocadinho, e depois saio toda contente porque gosto de cá voltar.

    Um beijo, querida Susana.

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    1. O outro cabeçalho já estava desde julho do ano passado, era mais que tempo de mudar, mas ainda não tinha encontrado a nova "obra" para pôr aqui. Gosto muito da Armanda Passos.
      Mas gosto ainda mais que aqui venhas, Teresa, e que aqui deixes as tuas palavras, ficam aqui tão bem. :-)

      Um beijo, querida Teresa.

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  2. (olha, a Susana andou a pintar a casa!)

    Não sei se é ela que escolhe, a alegria, se são algumas pessoas que escolhem ser assim. Seja lá de que forma for, as Donas Silvinas deixam-nos sempre a sorrir. É contagiante a alegria.

    Tem uma boa Páscoa, Susana. Beijinhos

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    1. (ainda cheira muito a tinta?) :-)

      Querida Ava, é mesmo isso. Mas olha que eu me pergunto muitas vezes por que razão será que quanto mais simples são as vidas das pessoas, mais felizes elas parecem ser.

      Uma boa Páscoa para ti também, Ava, com beijinhos. :-)

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  3. E eu gosto de donas silvinas e de quem gosta de donas silvinas.
    Obrigada Susana, muito, muito:)
    Beijinho*****

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    1. Quem agradece sou eu, querida ana. Acompanhaste o meu café da manhã e mostraste-me um belo poema falado que só depois, já em casa, ouvi por completo. :-)

      Um beijinho também para ti.

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  4. A voz da poesia não está só no mata-moscas da D. Silvina. Está também por aqui e anda absolutamente à solta. :)

    [Também gosto do novo cabeçalho]

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    1. Tão à solta anda a voz da poesia que se farta de pousar nas esquinas das teclas, querida luisa. :-)

      [obrigada]

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  5. Soltem os poemas e as donas silvinas cheias de alegria contagiante. Mata moscas dispenso, fazem-me lembrar choques elétricos :) BEijo Susana

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    1. Aquele mata moscas trabalha muito pouco, eu nunca o ouvi fritar nenhuma, felizmente. Por isso estamos safas, GM. :-)

      Outro beijo, querida GM.
      Parabéns pelos 25 anos! E que contem muitos mais, com saúde e muito amor.

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  6. Susana, fiquei ali pendurada a pensar no seguinte: é a alegria que nos escolhe ou somos nós que a escolhemos e fazemos por a ganhar? Ou são duas forças que trabalham em simultâneo?

    Beijos (com mais açúcar por ser Páscoa, ou talvez nada disso!)

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    1. Não sei se é uma escolha, se é um fluir natural dos elementos, se a alegria for um deles. Ou ainda se é genético. Há pessoas que sentem alegria como se vivessem ensopadas nela, enquanto que outras conseguem apenas aflorá-la por breves momentos. E há ainda aquelas que se fecham para toda e qualquer alegria e embebem-se antes em tristeza, muitas vezes pontuada por queixume. O que eu observo é que quanto mais simples é a vida das pessoas, mais alegres elas parecem ser. Isto regra geral, há exceções, claro.

      Beijos com açúcar, sim, porque não? :-)

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  7. E é por isto que gosto de vir: poesia maravilha.
    (Saio a rir.)
    Até amanhã,
    Outro Ente.

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    1. E eu gosto que venha, querido Outro Ente.
      (fiquei a sorrir)

      Boa Páscoa. :-)

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  8. E há tantos atalhos de alegria por aqui, como o teu. Os outros, sei que sabes quais são. Vejo-te também a passear por lá :)
    A poesia nem sempre dá alegria, mas ajuda a dividir a dor.
    Adorei o teu novo cabeçalho :)

    Um beijinho e uma Páscoa feliz, querida Susana

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    1. Eu gosto dos Atalhos, Miss Smile, vão dar mais depressa ao que procuro e sei que enontro. :-)
      Acho que precisamos da poesia quando deixamos de acreditar no pai natal e nos duendes, nos coelhinhos de patinhas sujas de farinha, nas fadas...
      Obrigada :-)

      Outro beijinho e uma boa Páscoa também para ti, querida Miss Smile.

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    2. Falaram em atalhos, é para rimar com cabeçalhos?

      Páscoa feliz para a duas, e porque não para todos?
      Beijos semeados por aqui. :)

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    3. Precisamente, Teresa. E com alhos. Com bugalhos, não.
      :-)

      Páscoa feliz para ti, sua felizarda das marmeladas bovino-bezerrinas... aquilo é que foi um miminho do mais horroroso....

      :-)

      (sim, estou com inveja, nota-se muito?)

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  9. muito bom :) um mata moscas poeta, simplesmente genial!

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    1. Muito obrigada, Manel. (a genialidade é roubada a dona Silvina, mas agradeço eu, pronto)

      E uma boa semana. :-)

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