Há anos que nos escrevemos. Nunca nos vimos, nem sequer por fotografia, nem isso passou pela cabeça de qualquer de nós. Julgo-a mulher, mas podia ser homem, visto daqui é igual e o seu nome escrito não esclarece. São natais e natais de votos trocados, e anos novos com desejos de prosperidade para lá e para cá, cedo esquecidos, e anos do dragão e anos chineses também, anualmente lá vem um de cada. Julgo que é mulher, mas escrevemo-nos como máquinas e fazemos comércio de máquinas, eu a comprar, ela a vender. Se uma das máquinas precisa de alguma coisa, preciso de alguma coisa, eu peço, ela primeiro diz que não, essa já não, tem outra para vender mas eu não compro e quem ganha sou eu, tenho de ser eu, e logo vem um natal ou vem o ano do dragão, lá se refrescam os votos, a frio os recebo, a frio os envio. Há anos que nos escrevemos. Não há, nunca houve, um traço de emoção, nem das boas nem das más, é um continuado todo, de metal e de plástico, as máquinas e nós, ela e eu robots.
Ontem, antes dos cordiais cumprimentos na língua do costume, escrevi-lhe um já agora informo que em breve não nos escreveremos mais, eu vou sair deste percurso, apanhar outro, o nome que fica tenha a bondade de ver abaixo, cordialmente se fizer favor com licença e atenciosamente cumprimentos sinceros, o costume.
Mas a resposta voou em menos de um minuto, se me vou reformar, vai retirar-se para o seu doce lar? e se a minha filha, não sei como deixei escapar uma filha, que mau robot fui um dia, para além de ter ficado pela metade, e está crescida a sua filha?, que ela tem um menino e o menino já vai com cinco anos ha ha. Ha ha vinha a seguir ao menino, agora tenho a certeza, é mulher. Uma fissura no frio das máquinas, uma nesga com gente sendo gente, ela desliga o robot, eu, perplexa, desligo também o meu.
Que não me vou reformar, ainda está muito cedo para me retirar ao meu doce lar, mas não usei o doce, que doçuras é aqui para nós, em que há calor e energia humana, há isto que é tão bom. E que tenho duas, corrigi, duas filhas, não uma. Sim, crescidas, ambas, hesitei mas acrescentei as idades, se calhar já vou longe demais na fissura. Porém ainda deixo soltar a minha curiosidade ocidental, nada ancestral, pelos dedos fora: e pode ter um segundo filho, ou a lei do filho único ainda se mantém?
A resposta não veio num outro minuto, aliás ainda não veio.
(há muitos anos, antes de eu ter filhas, esteve um cidadão chinês, professor catedrático, a trabalhar junto de mim por um tempo longo; um dia recebo uma chamada telefónica da embaixada da China em Portugal, querendo saber se o cidadão comparecia ao trabalho, se estava tudo como previsto... confirmei, sim, estava tudo como previsto, era um cidadão exemplar; ficámos amigos mas só até ele regressar ao seu país, de lá mandou dizer que eu já não podia escrever-lhe mais, amizades não eram autorizadas pelas instâncias superiores - ele já tinha a filha permitida por lei e o seu sonho, não me esquecerei, era um dia poder ir ao parque com ela que, desde que ela nascera, seis anos antes, não tinha tido um dia livre: trabalhava sete dias por semana desde cedo até à meia noite, sempre)
Bem, querida Susana, pois eu desejo que apanhe um doce novo percurso.
ResponderEliminarMuito obrigada, querido Outro Ente. :-)
EliminarOs chineses nunca me convenceram. E do seu novo percurso o blogue faz parte? Ou isto é um adeus disfarçado de chinesice?
ResponderEliminarOs chineses - pelo menos os que conheço - são muito humildes na atitude e trabalhadores. Têm almas submissas mas dão-se o direito de pensar, tomam tempo para pensar, coisa que eu gostaria de ver mais na cultura ocidental, somos, no geral, muito apressados. Mas estão em franca expansão e isso está a mudá-los, penso eu. Repito: penso eu. (um dia destes conto uma coisa aqui no blogue que me aconteceu com dois chineses)
EliminarQuerida bea, o meu novo percurso dará mais espaço para ter o blogue e mais paz de espírito, sobretudo, muitíssimo mais paz de espírito. :-)
Não é um adeus, não no blogue.
Ah...ainda bem. Que seja bom para si, a paz de espírito é coisa que merece a luta de qualquer ser humano.
EliminarAfinal, só cheguei aqui há poucochinho, nem daria para tomar gosto.
Sabe, eu distingo entre os chineses que conheço individualmente e são simpáticos e sorridentes mas muito virados apenas para os seus, sem gostarem de misturas; e o povo chinês em bloco, uma espécie de entidade colectiva a quem reconheço traços de mentalidade que não consigo entender e me preocupa que esteja, pouco a pouco, a tomar posse do mundo.
Essa parte é de facto preocupante, bea, a de eles parecer estarem a tomar posse do mundo...
EliminarE eu gosto tanto de a ter por aqui. :-)
Se o novo percurso trará mais paz de espírito, venha ele, Susana.
ResponderEliminar( conta, conta, daquela forma que é só tua, o episódio com os dois chineses, anda, aguardarei...)
Beijinhos
Querida Ava, obrigada pelo incentivo, hei de contar o episódio, sim.
EliminarBeijinhos de volta, muitos.
Que post alegre e triste, que é como quem diz quente e frio, Susana. De facto há povos com um estigma. Aquilo que está escrito entre parêntesis é revoltante. Mesmo cá, continuam herméticos, parecem estar por vontade própria dentro um um parêntesis.
ResponderEliminarMuitos êxitos para a tua nova vida, querida Susana. :)
Sim, é revoltante. E vivia numa casa de 20 metros quadrados com a filha, a mulher e a mãe. Um professor catedrático.
EliminarMuito obrigada, querida Teresa!
E vai um abraço dos bem horrorosos que agora já só os podemos dar aqui...
:-)
Susana, boa noite,
ResponderEliminarPassei só para desejar uma caminhada cheia de boas passadas nesse novo percurso.
Um beijinho,
Mia
Muito obrigada, querida Mia. :-)
EliminarE eu desejo-te um maravilhoso fim de semana e deixo outro beijinho para ti.
Querida Susana.
ResponderEliminarAs mudanças são muito boas na nossas vidas: não há dúvidas de os dias que aí vêm serão mais vibrantes.. isso é garantido! ;-) Vai ser muito bom para ti, de certo, eu cá fico é com pena de perder as histórias da D. Esmeralda! :)
A cadência deste "post frio" leva-nos exactamente onde queres que leve! Cá para mim vai de máquinas (que afinal têm coração) à D. Esmeralda!
Beijinho Susana e tudo de bom para este novo caminho! Fico deste lado a torcer e à espera de continuar a ler-te...
Carla