a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/02/2017

Silêncio em silêncio ou pipocas à javali

Sei perfeitamente que estou a ficar obsoleta. E não é por resistir às pressões da atualidade para que troque pessoas por tecnologia ou por continuar a negar-me a prescindir de certa reflexão interior privilegiando a superficialidade que se consome num instante. Nem estou a ficar obsoleta por preferir uma agenda em papel a mais alguns bits na memória dum dispositivo eletrónico organizados num calendário também eletrónico (os eletrões do papel servem perfeitamente), não é isso. Estou a ficar nitidamente obsoleta porque deixei de saber comportar-me numa sala de cinema. Aos dezoito anos, quando ia pelo menos duas vezes por semana ver um filme no grande ecrã e nada me fazia sentir desajustada, sabia. Mas entretanto desaprendi. Desencaixei-me ou o que foi. Por exemplo, não levo apetite para comer um balde de pipocas nem sorver líquidos ricos em açúcar por palhinhas, não levo. Portanto não estou em condições de mastigar ali nada, chomp chomp. Também não me tenho lembrado de deixar o meu telefone tocar audivelmente durante o filme ou tampouco me dá jeito passar o tempo todo a escrever no ecrãzinho iluminado: esqueço-me imenso destas normas atualizadas de comportamento nas salas de cinema. E achava simpático enturmar-me, é isso que quero dizer (para não incomodar as pessoas).

Fui ver o filme intitulado “Silêncio”. Já vai há largas semanas num cinema perto de si, daí ter arriscado, pensei: talvez não haja muita gente na sala e ninguém se aperceba da minha obsolescência: o meu silêncio e o do meu telefone e ainda me perdoem a falta do mastiganço de pipocas à javali (por exemplo). E não me enganei, havia pouca gente na sala. Apenas contei três telefones a tocar o que, em três horas de filme, não está mau, um mensagista compulsivo com o ecrã e sua luzinha mesmo perto de mim e pipoqueiros não eram todos todos, vá, só alguns, chomp chomp.

Mas, tal como os padres jesuítas portugueses que pretendiam fundar raízes num país pantanoso como o Japão – palavras do guião – e foram aniquilados, em vez de me embuchar com os desajustes que me estão a manter fora dos padrões de bom comportamento no cinema, tive uma ideia muito boa. Da próxima vez - se houver próxima vez - vou berrar um pedido de desculpas por estar a incomodar os demais com o meu silêncio a cada toque de telemóvel alheio, por exemplo. Ah e tipo com um megafone. Acho que a malta vai aplaudir e a minha mãe orgulhar-se de mim.

(tirando o detalhe de o português falado pelos padres Rodrigues e Ferreira ser tal qual inglês, gostei muito do filme; mas preferia tê-lo visto em silêncio)

21 comentários:

  1. Falas pouco do filme, chomp chomp. :)

    Só dizes que gostaste muito. Imperdoável; queria uma crítica com estrelinhas e tudo. :D

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querido amigo Diogo, críticas a filmes é o que se pode ler no blogue que tu criaste no fim de semana passado. :-) Não é?
      E críticas bem escritas, ainda por cima.
      Eu apenas posso falar do efeito que os filmes fazem em mim (e isso não terá muito interesse) e não do filme enquanto obra de arte. :-)

      Eliminar
    2. Neste? http://morreclarabow.blogspot.pt

      Bem, não se dá o caso de ser um blogue exclusivamente criado a pensar em críticas de filmes, muito menos com estrelinhas... é mais uma experiência, a ver como me sinto na blogosfera depois de dez anos passados sobre o saudoso «L' Chaise Ethnicraft». É verdade, já tive um franco-blogue todo pipi. Adorava-o, e consegui estar 3 anos a postar sem interrupções. Posts maravilhosos. Tinha leitores muito bons.

      :)

      Eliminar
    3. Eu ainda não tinha visto que reativaste o blogue. Como me inscrevi para receber os posts desse blogue por email e não tinha recebido nada (não sei porquê...), assumi que o blogue continuava parado.
      Entretanto, já lá fui atualizar-me e vou metê-lo aqui ao lado na lista, para não lhe perder o passo.
      Não conheci nada desse teu passado blogosférico, só te conheci a embirrar com a G. e vice-versa (o que muito me divertiu, como vos disse).
      Boas criações, Diogo, espero que continues.
      E bom fim de semana.

      Eliminar
  2. Apenas vi 40 minutos desse filme e estou a encontrar coragem para andar mais um bocado; deve ser bom, mas a violência estraga-me mais o ambiente que as pipocas mastigadas à javali. E no Levantado do chão, estou igual, sem coragem para continuar a ler tanta tortura sofrida por pura maldade humana. Antes, sofria mal a violência; agora, dá-me náusea profunda.
    As salas de cinema não perdem encanto. Mesmo com pipocas e telemóveis importunos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito interessante o seu comentário, bea. (como sempre, aliás)
      Compreendo a dificuldade em assistir a violência. Eu também não consigo assistir a violência, e não assisto, quando é inventada, perversamente inventada (como uma vez vi num filme de Tarantino, o único filme dele que vi, cheio de uma violência inventada e perversa, desnecessária, ou seja, desse grande nome do cinema não vejo nem mais um minuto de filme, para mim não presta). Se a violência for na forma de contar a verdade, fico incomodada, triste, revoltada até, mas gosto de conhecer. Aprendo muito, cresço.
      O Levantado do chão li recentemente e adorei. O filme ainda não calhou ver.
      E também gostava de continuar a ver encanto nas salas de cinema. Mas isso acho que já não consigo.
      Bom fim de semana, bea.

      Eliminar
    2. Ao contrário, custa-me menos ver o Tarantino que brinca com a violência, do que a violência que sei que existiu. Essa é que me faz muito dano.

      Eliminar
    3. O que eu acho interessantíssimo no meio disto tudo é encontrar estas diferenças entre nós, pessoas. É belo.
      :-)

      Eliminar
  3. Olá, Susana :)
    O filme ainda não vi, mas há cerca de um ano li o livro e gostei bastante.
    Beijinho.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Marta :-)
      Eu só me apercebi de que havia livro quando passaram os créditos no final do filme. Prefiro sempre ler o livro antes de ver o filme, mas neste caso já não irei a tempo.
      Esta era para mim uma realidade pouco conhecida, a destes padres jesuítas, uma realidade horrenda, mas que dá muito que pensar. E que aprender, como escrevi ali em cima à bea.
      Um beijinho, Marta, e bom fim de semana.
      (comecei a ler há dois dias A Peste, de Camus. Também promete.) :-)

      Eliminar
  4. bom dia Susana,
    "silêncio",tão literal, e tão pouco conseguido: desde o mastigar, ao sorver pela palha curvada, às luzes do telemóvel, isso não foi uma sessão de cinema,foi seguramente uma experiência antropológica.
    sobre o filme não me pronuncio. não o vi, nem sei se o verei; desde a inquisição, ao poder despótico "laico", de cada vez que é aflorado em imagens ou parágrafos demasiado gráficos, já não possuo capacidade de relativizar (cronologicamente são comportamentos aceitáveis), nem forma de aligeirar a minha postura enquanto espetadora ou leitora de algo semelhante.
    bom fim de semana.
    um beijinho,
    Mia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro que sim, Mia, totalmente compreensível. Eu acredito que a nossa capacidade de relativizar e sofrer mais ou menos com o que os ecrãs nos metem olhos adentro é absolutamente pessoal e pode também variar ao longo da vida. Nem sequer carece de explicações, somos como somos e está bem assim.
      Ontem antes de ir ao cinema falei com a minha mãe ao telefone, que me disse que não tem a certeza de ser capaz de ver este filme e pediu-me para lhe dizer depois se o deverá ver se não. Vou dizer-lhe claramente que não veja, não é filme para ela.
      Um beijinho, Mia, bom fim de semana.
      :-)

      Eliminar
  5. E por isso tenho saudades da vida em Lisboa, e do meu Quarteto, enfim.

    Ainda bem que assim pensas. Acho que no último filme de Tarantino - de quem sou fã - era o the hateful eight, uma menina achou que iria estar todo filme ao meu lado a mandar mensagens via telemóvel. Não achou... porque lhe disse que ou desligava aquilo ou chamava o segurança, e ela ia ficar envergonhada.

    Se calhar, hoje já são muitos, e não há seguranças que cheguem!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ah, o Quarteto, também eu tenho saudades. Fiquei mesmo triste quando fechou. Foi nessa altura que comecei a ir menos e menos ao cinema.
      Talvez essas pessoas que estão constantemente agarradas às mensagens, mesmo durante uma sessão de cinema a que escolhem ir, tenham uma inquietação qualquer, de facto é estranho. Fizeste bem em corrigir a miúda, talvez assim ela tenha aprendido alguma coisa, quem sabe ficou a pensar no porquê daquilo.

      :-)

      Eliminar
  6. Ainda não vi o filme. Pelo que leio, preciso de mentalização prévia.

    Ver os filmes em silêncio é que sim, pelo que também me incomodam as pipocas e respetivos adjuvantes.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida luisa, se precisas de te pré-mentalizar, então não sei, talvez seja melhor não ires...
      Eu vi alguns filmes que me impressionaram tanto que preferia não ter ido. Mas filmes de outro tipo - por exemplo o Silêncio dos Inocentes.

      Eliminar
    2. Até me lembrei de um exemplo melhor: Este país não é para velhos.
      Pior seria difícil. Mal empregado Javier Bardem.

      Eliminar
  7. Odeio, odeio, odeio, pipocas no cinema.
    Odeio.

    ResponderEliminar