a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/04/2017

O meu Amarante era Duque

Também eu tive um cão fiel na minha infância. Infância, infância: a última vez que me lembro de brincar com o Duque sei que tinha quatro anos. Eu andava sempre a pensar agora tenho três anos, agora tenho quatro, etc. Queria crescer e ia contando o tempo que, naquela altura, arrastava-se lento (agora é ao contrário). Então o Duque era um Pastor Alemão todo preto no qual o meu pai confiava muito, parece que falava com o cão sem falar e o cão percebia tudo. Mas quando um dia, corria eu pela casa ainda de fraldas e entrei na cozinha a alta (bem… não muito) velocidade, o Duque se levantou de um salto lá do repouso aos pés do dono, correu, ultrapassou-me na cozinha e depois atirou-me ao chão com um empurrão de focinho na minha barriga, o meu pai não percebeu logo. Levantou-se e foi averiguar dos intentos do cão, mas para quê tanta violência, o que andas a fazer, seu maluco, eu a chorar no chão em cima das fraldas, e então percebeu que o Duque sabia o que ele, meu pai, houvera esquecido. O forno estava ligado a cozinhar qualquer coisa e eu levava talvez interesse na corrida a velocidade, vá, moderada, de ir experimentar o vidro do forno com as mãos ou o nariz, fito que o Duque telepaticamente captou e, por ter discordado, foi interromper-me a corrida deitando-me ao chão, como já foi dito.

Mas já andava eu livre de fraldas há muito, tinha os tais quatro anos e estávamos na casa de férias dos meus avós. O Duque tinha uma casota só dele, onde eu calculava que à noite ele dormia.
- Duque, vamos brincar às casinhas, faz de conta que eu também moro aí!
Mas só cabia lá um de nós de cada vez, e se fosse eu era agachada e quieta que cabia, correr nesta casa não se consegue. Só que para além de exígua, a casinha do Duque cheirava um bocado mal a cão e eu não aguentei o cheiro por muito tempo, portanto mudei a brincadeira de “às casinhas” para “aos cavalos” e o Duque não se opôs (aparentemente).
- Duque, tu és o cavalo.
Montei no dorso do Duque, que ele era mesmo bom para meu cavalo, e disse, anda cavalinho, para ele perceber os papeis. Mas ele não percebeu nada. O Duque sentou-se mal me sentiu em cima dele e eu escorreguei pelo dorso abaixo, apeada à força.
- Duque! Põe-te em pé! Tu és o cavalo!
Indignava-me ele ter brincado tão bem às casinhas, sermos tão amigos eu e ele, e agora não querer brincar de cavalo, um cão destes tão lindo!, eu achava-o lindo e o meu pai dizia que ele era lindo porque era todo preto e não preto e castanho como é habitual nesta raça. Quando o Duque se pôs em pé, eu montei-o outra vez, ele outra vez se sentou e eu tzzzz pelo Duque abaixo. Pá, ó Duque, vá lááá! Mas nada, ele não queria brincar de cavalo.
Tentei apanhá-lo noutras horas, noutros dias, apanhava-o de costas, distraído, eu devagarinho alçava a perna, ele percebia tão bem o meu pai também tinha de perceber-me a mim, era para brincar de cavalo e correr comigo às costas, anda cavalinho, mas ele sentava-se sempre e eu sempre escorregava. O Duque nunca quis ser cavalo.

É mesmo como diz a Teresa: é um cão fiel o que temos no jardim da nossa infância.

8 comentários:

  1. Se me permite a humilde opinião, eu acho que o duque era muito duque e parente da realeza canina; queria ser quem era, um cão. Há cães assim, têm a mania de querer ser quem são e não se deixam indrominar. Mas conheci cães que faziam de cavalos e não lhes caiam os parentes na lama. Há cães para tudo. E pessoas. O ramo do mundo é tão variado que a gente nunca chega a conhecê-lo. Quanto mais conhecemos mais sabemos que desconhecemos. É socrático, mas parece verdadeiro.
    Bom Dia:)
    Mas até que é de respeitar esse cãozito já mortinho da silva.

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    1. Vou aproveitar que é Páscoa para lhe dizer, bea, que gosto muito muito dos seus comentários. Aliás, a bea não comenta, a bea vem aqui conversar comigo. E isso é mesmo bom.
      Por acaso calhou eu contar logo o pior do Duque, que foi não querer fazer de cavalo quando de nós os dois, ele era o mais parecido com um cavalo, e isso para mim era óbvio. Enfim.
      Mas era um cão incrível, acho que foi até o meu primeiro amor, eu estava sempre à procura dele para brincarmos. E quando a minha avó o fechava na casa das batatas e das cebolas, porque a minha irmã mais pequena tinha medo dele, eu saltava a janela dessa espécie de arrecadação e ia lá fazer companhia ao cão, no meio das batatas e das cebolas. Um cheirete.
      Bom dia, bea e Boa Páscoa :-)

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  2. Que bela amizade por um cão. O meu Amarante não era meu, mas corria pelo campo fora, em África. Na verdade não era de ninguém, já que os anteriores donos o tinham deixado ali, na quinta de uns amigos dos meus pais que nós visitávamos aos fins-de-semana. A ideia desse cão afável, fiel ao seu anterior dono, percorreu-me a vida. Agora encontrei-o de novo porque tenho a certeza que ele nunca deixou de me procurar.

    Este encontro de cães no jardim deliciou-me. É muitas vezes pelos cães que se fazem amigos para a vida. E tu tiveste um cão formidável que te ajudou a crescer. Boa Páscoa, querida Susana. [Que bela surpresa. :)]

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    1. O "teu" Amarante deve ter sido um cão feliz. É bonito continuares a encontrá-lo, Teresa.
      Sim, eu tive muita sorte com o Duque. Mas foi o meu primeiro e último cão. Até agora. E tu vieste reavivar-me a memória. Até fui à procura de fotos dele, mas deve tê-las a minha mãe em álbuns para lá de antigos. :-)
      Boa Páscoa, querida Teresa.

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  3. os meus filhos fazem ao Gorbi como tu fazias ao Duque e o Gorbi fazia aos meus filhos como o Duque te fazia :)

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    1. ah............ bom.... então se calhar todos os cães fazem a mesma gracinha... Não são cavalos, pronto, está visto.
      :-)

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  4. Nunca tive um cão que ficasse muito tempo, depois de África, mais nenhum. O único amor que me ficou foi pelo Tomba lobos do livro "Maria Tonta como eu" da Maria Rosa Colaço. O cão e a menina são as personagens centrais da história e é impossível não nos rendermos àquela amizade. Quando penso em cães, é aquele que me ocorre como se estivesse vivo e eu o conhecesse.
    ~CC~

    ~CC~

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    1. É notável a capacidade que alguns livros têm de se nos entranharem como se tivessem sido, mais do que lidos, vividos por nós. Não li esse livro, CC. Mas agora já sei que existe.
      Um abraço e Boa Páscoa. :-)

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