a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/05/2017

Três chichis no mesmo post

Ainda havia tempo de chegar ao supermercado do bairro antes da hora do fecho. E antes da hora próxima da hora do fecho, aquela em que o dono da pequena superfície, guardião permanente da entrada, não tem ainda aposta no rosto a expressão que diz estamos-quase-a-fechar-não-podia-ter-vindo-mais-cedo-não e me faz sentir pessoa culpada que vive à beira do atraso (é feio). Não sou de voluntariamente me levantar muito muito cedo, o que sempre me revestiu de um secreto sentimento de culpa, especialmente perante as pessoas que estão prontas ainda o sol não nasceu, prontas e frescas, ao dia um têm feito o trabalho que era para o dia três, tive um colega assim. Escrevi não sou, mas a verdade é que não era. Não era de voluntariamente me levantar muito muito cedo desde que durante os três primeiros anos de maternidade não dormia duas horas seguidas, não podia mesmo deitar-me antes das quatro ou cinco da manhã porque a minha bebé primeira, a Muzi, linda que não sei dizer, aquilo foi um bebé de querer logo ter mais bebés, mas adorava brincar a essa hora comigo, era pela noite adentro, ela lhalhá e eu a cair. Que brincar eu lá brincava, mas depois era para ir trabalhar carregando um cansaço do qual tenho a impressão de ter levado décadas a livrar-me. Dizia então que vou a tempo de entrar no supermercado com margem de segurança, já sou mesmo pessoa de chegar cedo a qualquer hora do dia, gosto muito. Portanto, antes de atravessar a estrada parei junto do Renato, o rapaz que passeia os cães, esperei que ele removesse os grandes óculos escuros do seu rosto cicatrizado pela vida, e deixei-o espetar-me aqueles beijos sonoros nas faces, olá Renato, como estás? O Renato leva pela trela um só cão e o bicho olha para cima, para mim, parece que traz olhos tristes mas não traz, é mesmo dele estes olhinhos, os cães adoram o Renato porque vice-versa. Sai então um chichi para o muro que ladeia o passeio, enquanto o Renato me responde franzindo a testa, cansado, ando sempre a fazer diretas.
- Então mas o trabalho no bar agora é todas as noites?
- É. E eu não durmo, tenho de ir buscar os cães a partir das seis.

Finjo que tenho um bocado de pena dele por estar assim privado do sono, pois isso custa, pois custa, respeito muito quem não pode dormir como quer, evidentemente, mas digo finjo porque sabemos ambos que ele ama esta sua vida de andar com os cães, vê-se pelos cães, este já fez uns três chichis de três ângulos diferentes para o mesmo muro e no mesmo post, está a marcar o território diz o Renato. Noto-lhe uma tatuagem que ainda não conhecia, composta por uma flor entrelaçada em nome de mulher no braço magro que a manga do blusão, arregaçada, revela. Falo ou não falo na tatuagem, não falo. Que ainda falta algum tempo de segurança para o supermercado fechar mas não o bastante para a tatuagem abordar (pois rimou). Não vá este nome de mulher ser da namorada que as minhas filhas lhe viram, mãe, o Renato tem uma namorada, e isto dar conversa para eu entrar no supermercado sob o olhar supradescrito do dono, ainda por cima agora, que de levantar cedo e não me atrasar até já sou.

2 comentários:

  1. Vejam bem...o que a vida muda em nós. Em mim é mais a idade que a vida. Mas pronto, a vida.

    Os cães são uns chatos com a ideia de marcar território. Bolas! Em qualquer quadradinho pingam que se farta, um cheiro que não se aguenta e depois nas paredes fica aquele escorrimento amarelo.

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    1. É verdade, bea, muda mesmo. Felizmente :-)

      O muro estava um bocado amarelo, lá isso estava.

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