Ainda havia tempo de chegar ao supermercado do bairro antes
da hora do fecho. E antes da hora próxima da hora do fecho, aquela em que o
dono da pequena superfície, guardião permanente da entrada, não tem ainda
aposta no rosto a expressão que diz estamos-quase-a-fechar-não-podia-ter-vindo-mais-cedo-não
e me faz sentir pessoa culpada que vive à beira do atraso (é feio). Não sou de
voluntariamente me levantar muito muito cedo, o que sempre me revestiu de um
secreto sentimento de culpa, especialmente perante as pessoas que estão prontas
ainda o sol não nasceu, prontas e frescas, ao dia um têm feito o trabalho que
era para o dia três, tive um colega assim. Escrevi não sou, mas a verdade é que
não era. Não era de voluntariamente
me levantar muito muito cedo desde que durante os três primeiros anos de
maternidade não dormia duas horas seguidas, não podia mesmo deitar-me antes das
quatro ou cinco da manhã porque a minha bebé primeira, a Muzi, linda que não sei
dizer, aquilo foi um bebé de querer logo ter mais bebés, mas adorava brincar a
essa hora comigo, era pela noite adentro, ela lhalhá e eu a cair. Que brincar eu
lá brincava, mas depois era para ir trabalhar carregando um cansaço do qual tenho
a impressão de ter levado décadas a livrar-me. Dizia então que vou a tempo de entrar
no supermercado com margem de segurança, já sou mesmo pessoa de chegar cedo a
qualquer hora do dia, gosto muito. Portanto, antes de atravessar a estrada
parei junto do Renato, o rapaz que passeia os cães, esperei que ele removesse
os grandes óculos escuros do seu rosto cicatrizado pela vida, e deixei-o
espetar-me aqueles beijos sonoros nas faces, olá Renato, como estás? O Renato
leva pela trela um só cão e o bicho olha para cima, para mim, parece que traz
olhos tristes mas não traz, é mesmo dele estes olhinhos, os cães adoram o
Renato porque vice-versa. Sai então um chichi para o muro que ladeia o passeio,
enquanto o Renato me responde franzindo a testa, cansado, ando sempre a fazer diretas.
- Então mas o trabalho no bar agora é todas as noites?
- É. E eu não durmo, tenho de ir buscar os cães a partir das
seis.
Finjo que tenho um bocado de pena dele por estar assim
privado do sono, pois isso custa, pois custa, respeito muito quem não
pode dormir como quer, evidentemente, mas digo finjo porque sabemos ambos que
ele ama esta sua vida de andar com os cães, vê-se pelos cães, este já fez uns
três chichis de três ângulos diferentes para o mesmo muro e no mesmo post, está
a marcar o território diz o Renato. Noto-lhe uma tatuagem que ainda não conhecia, composta por uma
flor entrelaçada em nome de mulher no braço magro que a manga do blusão,
arregaçada, revela. Falo ou não falo na tatuagem, não falo. Que ainda falta
algum tempo de segurança para o supermercado fechar mas não o bastante para a tatuagem
abordar (pois rimou). Não vá este nome de mulher ser da namorada que as
minhas filhas lhe viram, mãe, o Renato tem uma namorada, e isto dar conversa para eu
entrar no supermercado sob o olhar supradescrito do dono, ainda
por cima agora, que de levantar cedo e não me atrasar até já sou.
Vejam bem...o que a vida muda em nós. Em mim é mais a idade que a vida. Mas pronto, a vida.
ResponderEliminarOs cães são uns chatos com a ideia de marcar território. Bolas! Em qualquer quadradinho pingam que se farta, um cheiro que não se aguenta e depois nas paredes fica aquele escorrimento amarelo.
É verdade, bea, muda mesmo. Felizmente :-)
EliminarO muro estava um bocado amarelo, lá isso estava.