a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/12/2018

Ossos do elefante

Discutia com o gestor da obra a cor da massa a colocar entre os ladrilhos da casa-de-banho a refazer toda ela de novo após o desmantelamento global. Eu não houvera pensado de maneira nenhuma com antecedência na cor da massa para entre os ladrilhos, isto dito por forma a dar a ideia melhor.
- Quer branca, marfim ou mais acastanhada? – pergunta-me o gestor da obra.
Estou a processar as imagens que me correm na mente mostrando o efeito de cada uma das cores mencionadas, tentando apurar a vista da imaginação para detetar as diferenças, e o gestor da obra, com a sua experiência larga em detalhes semelhantes a este, vem em meu auxílio.
- Olhe que o marfim fica muito bem.
- Pode ser o marfim, então.
Vladimir, o trabalhador que vai colocar a referida massa, aguardava o resultado da conversa em silêncio, coberto de um pó muito branco que lhe descolora o já russo cabelo e pestanas também.
- Marfim – ele repete – essa é cor quê?
- Marfim, Vladimir, é uma espécie de branco. Branco sujo. – diz o gestor da obra apontando para a porta da casa-de-banho, presente, e em branco (sujo?...).
Vejo que para Vladimir o tal de marfim ainda não está claro (mas claro que deve ser do sujo).
Eu, que já simpatizo com este cidadão russo parcialmente aportuguesado devido ao tempo, por exemplo por chegar Vladimir dois minutos antes da hora combinada, impreterivelmente, e trabalhar dez horas seguidas se não contarmos com a interrupção para o caldo que come aquecido no micro-ondas e que ainda ninguém conseguiu ver portanto pensamos ser um caldo magro tal como é o seu comensal, ajudo.
- É a cor dos dentes dos elefantes. O material dos dentes dos elefantes é que é o marfim… - não posso garantir que não tenha aqui ilustrado com as mãos o desenho, no ar, dos dois dentes de elefante de que eu disporia se fosse um.
- Sim – o gestor da obra parece impressionado – é isso Vladimir, os dentes dos elefantes!
Vladimir está a observar o teto da casa-de-banho, pensativo. E de repente exclama.
- Ah! Então esse país o Marfim de Costa, já percebi!
- Costa do Marfim – diz o gestor da obra.
- Isso. Nós dizemos no russo Costa de Dentes do Elefante. Se você traduzir mesmo traduzir.
E, logo a seguir.
- Não. Não é dentes do elefante... Se traduzir mesmo traduzir é ossos do elefante. Em russo dizemos Costa do Ossos do Elefante. Já percebi!
Depois, parecendo animado, retomou o trabalho. O seu dispositivo eletrónico pendurado no parafuso sobrevivente do recente desmantelamento da já conhecida deste post casa-de-banho, segue emitindo, também ele debaixo de uma camada de pó, baixinho, uma música clássica.

Antes de sair, o gestor da obra, que é patrão de Vladimir, para um segundo à porta e diz-me em voz mais baixa, um nada solene, ele ouve música clássica.

12 comentários:

  1. Susana! Bons olhos te leiam após os olhos, que são, obviamente e também, bons, escreveram. Espero que isto não tenha ficado confuso... Gosto deste post, pronto. E afinal explicar a cor marfim é tão fácil ;)

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    1. Confuso nada, Gina. Ficou até bem claro. Mas quem me dera ter uns olhos bons.
      E eu gosto deste comentário.

      Conjetura: se o bege passou recentemente a "nude" por todo o lado, o marfim é capaz, se não nos pomos a pau, se passar a "dental" ou tipo isso. O melhor é disfarçar.
      :-)

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    1. Há dias fiquei presa - uma artéria, um punhado de cabelos, uma unha qualquer - aqui:

      "Estou com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está "eu"?
      Preciso fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim - enfim, mas que medo - de mim mesma."
      Adivinhas quem escreveu? :-)

      E eu de ti. Obrigada por continuares aí, doce tu, a aromatizar o espaço.

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  3. Depois desta narrativa... é impossível não simpatizar também com o Vladimir!

    (só não simpatizo nada com o AO que tirou o acento ao "pára"!)

    Beijinhos escritos a ébano sobre o marfim
    (^^)

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    1. Eu também não simpatizo com o AO e muito especialmente antipatizo "para". Foi mesmo uma péssima ideia tirar o acento.

      Beijinhos de volta, Afrodite, e obrigada. :-)

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  4. minha lindeza de Susy 3,

    quando o meu mano mais velho construiu a casa, a porcaria do empreiteiro berrava com um empregado de Leste, por conta da importância de um contraforte da máxima importância, já que a vivenda atrás, com piscina rente ao terreno do meu mano, ficava uma boa cota abaixo. O mano chega, só escutava asneiredo feio (ele não diz asneiras) e aproximou-se com cautela, para tentar perceber. Descobriu muito, aprendeu muito: a porra do empreiteiro era um aldrabão, não só não cumprindo o especificado previamente, cagando no contraforte, que aquilo era tudo a andar, o empregado de Leste a tentar convencê-lo que, sendo o terreno mais arenoso, jamais teria que ser como o empreiteiro merdoso petendia fazer.

    Mano grande desliga do empreiteiro de merda e enceta conversa com o "trolha": um arquitecto, absolutamente convecido que, mais dia, menos dia, a parede/muro do meu mano ruiria e até poderiam estar na piscina os filhos do dono da casa uma cota valente abaixo.

    Mano grande impõe-se e diz que, sendo a casa dele, e quem a pagava, seriam seguidas, doravante, as instruções do trolha-arquitecto :)

    ______________
    (teve imensos problemas com o trolha-empreiteiro, após este episódio, mas soube levar a água ao seu moinho, dignificar quem o merecia e, mais, encostar à parede o merdas, proibindo-o de tratar daquela forma fosse quem fosse na construção da casa, o que aconteceu :)

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    1. alex, que história. se temos por este nosso país fora tanta construção mal feita, péssima e pobre em qualidade, se deve a essa sorte de empreiteiros a condizer com a construção que lhes sai. que bom o arquiteto (sem aspas, não é?) estar ali, a assegurar o que o empreiteiro não quis nem ver.
      o "meu" empreiteiro é bom homem, trata bem os seus funcionários, e neste Vladimir confia cegamente, já mo disse.
      Que bom o teu mano ter conseguido levar esse barco a bom porto, e que bom saber, obrigada pela história.
      saudades disto, querida alex. dessa intensidade.
      :-)

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  5. Pessoas, sempre pessoas inteiras as que nos trazes Susana, saio sempre daqui com mais conhecimento sobre a humanidade. E não raro...com um grande sorriso.
    ~CC~

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    1. E eu saio deste comentário com um sorriso também. Muito obrigada, querida CC, quem fala em pessoas inteiras!

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