a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/06/2023

Bibió

As férias de verão da nossa adolescência eram passadas junto às escarpas que se estendiam entre a estrada para as Azenhas do Mar e a maré revolta e salgada lá em baixo a bater nas rochas. O sol da tarde baixava desse lado e, ao contrário das praias do Algarve, presenteava-nos o espírito, os olhos, as bicicletas, as gaivotas e os nossos sonhos de miúdas, com o espetáculo de se pôr no mar. Víamo-lo da janela da sala de jantar. O nosso avô habitualmente não jantava. Suponho que não lhe apetecia sopa, bifes com arroz ou peixe se calhar frito ou cozidinho. Preferia pegar no carro depois do nosso jantar e ir ao café comer uma tosta mista sempre, mas sempre, sem manteiga.
Às vezes as minhas irmãs e eu íamos com ele, uma, duas de nós, ou mesmo todas. Sentavamo-nos a uma mesa do café que ficava nas arcadas das lojas da Praia das Maçãs. O avô pedia a sua tosta mista sem manteiga e eu sentia-me sempre muito feliz. Depois perguntava o que nós queríamos tomar. Normalmente, eu queria uma Coca-Cola. Não me lembro o que pediam as minhas irmãs. Só me lembro da intensa felicidade que sentia nesses momentos. E então respondia ao meu avô, voltando-me para o empregado: era uma Coca-Cola sem manteiga, se faz favor. A gracinha intensificava aquela sensação muito boa mas talvez alguma das manas dissesse 'parva' e revirasse os olhos um bocadinho, a fingir-se farta de mim. (que tempos!) 

Há dias, no almoço com os meus colegas, a propósito de qualquer coisa que ali surgiu, contei-lhes esta pequena história da Coca-Cola sem manteiga, omitindo a parte da felicidade (essa fica entre nós). É que não era alegria nem boa-disposição o que eu sentia, era mesmo uma felicidade intensa.
Parecida com aquela que me vem misteriosamente, instala-se toda e depois fica a latejar com certa doçura imenso tempo, sempre que escrevo neste blogue que continua vivo embora um bocado ferrugento.

6 comentários:

  1. A mim, o que me traz mais felicidade na vida, são as reminiscências. Espectros e epifanias de um momento longo e intenso de felicidade. Às vezes consigo recuperar memórias por um cheiro, pela brisa inspiradora, pelo dejá vu de certas situações ou disposições dos objectos no olhar. Há um congelamento imediato, a procura na memória dessa reminiscências, e, enfim, uma inundação feliz. Boa semana, Susana.

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    1. Que bonito, Diogo! Cada inundação feliz do presente ir encontrar um lugar no futuro, para se aninhar e te inundar de novo.
      Obrigada por contares. :-)
      E boa semana!

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  2. Que giro Susana...são coisas que ficam para a vida toda, efetivamente. Qual ferrugento, qual quê...não deixe de vir sim, somos umas dinossauras:)

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    1. Ha! Somos umas dinossauras! Exatamente, querida CC, mas umas dinossauras todas sim senhor!
      Uma excelente semana para essa dinossaurazinha charmosa aí da Rua da India! :-)

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  3. Aquilo que me apeteceu escrever depois de ter lido este teu texto (e o que gostei dele, Susana, ainda por cima com especial cumplicidade connosco e tudo!), já foi dito, por outras palavras. Costumo dizer, que a colecção de momentos de intensa felicidade que (também) trago dessa fase da vida, mesmo que não voltasse a sentir esse tipo de intensidade no que à felicidade diz respeito, constitui reserva bastante para garantir inundações de felicidade presentes e futuras (peço desculpa pela percentagem de furto de palavras, mas é que é isso mesmo, "inundação feliz")
    Bons dias vindouros! (se possível, alagados de bons momentos)

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    1. Cláudia! Sempre querida e luminosa. Fico a pensar se quem não tem maneira de colher uma reserva dessas, de felicidade intensa, capaz de se reproduzir na memória futura, nos seus verdes anos, poderá mais tarde recuperar esse tempo perdido. Talvez sim. Mas não sei.
      É um privilégio poder ter uma boa infância e juventude.
      Felizes dias vindouros para ti também. :-)

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