Lembro-me então dos pequenos caranguejos no lodo que dá chão ao rio. Lá estarão andando de lado, aos arrancos apressados quando a maré deixa. Uns são pequenos outros ainda mais. Absolutamente da mesma cor do lodo, se castanho ou se cinzento fugido, abetonado, condizendo com o majestoso pilar da ponte, não me decido. Mantenho para já, filha de um desconfinamento diário impulsivo, a certeza de que os verei quando o rio se retrai mais fino. Mas são, vejamos, não caranguejos no lodo, como disse, antes são caranguejos do lodo, que é outra coisa. Entretanto, a gaivota voou embora e eu vou fazer café.
a voz à solta
21/07/2020
Café da manhã
Devagar, como sempre faz, o dia emerge da noite. A janela aberta deixa que dele entre um braço de luz prateada, num silêncio. Uma gaivota ronda o pedaço, lançando os seus gritos de praia perto, tão perto da adolescência, ao longe. Com eles quebra o silêncio, golpeando o ar aqui e ali, para lá e depois para cá.
14/07/2020
Nenhuns baites por segundo
Por um lado, a segunda circular está pior, obrigada. Por outro lado, ela está mais dinâmica. E ainda por outras palavras, a segunda circular está aqui está não a almoçar, mas a ser promovida a primeira circular. Ah pois é. Ao entrar-se nela, temos ondulação forte, tremedeira, interrupções súbitas no piso (cabum), uns excessos levantados por raízes de árvores vizinhas olá cá estou eu. Características acentuadas, novos graus de liberdade de movimentos, como já se percebeu.
Mas valeu a pena toda aquela agitação adicional, circular (de primeira), ao cabo da qual voltei a entrar no edifício do Cliente Grande. Tão feliz. E quando digo entrar quero dizer transportar para dentro do edifício a matéria, as próprias moléculas, as forças entre elas, a vontade de estar ali que levava incluída, eu.
12/07/2020
Incertezas
Afinal não se sabe, em princípio, se a COVID-19 tem ou não pico. Em termos gerais, digamos assim. Ou se não é bem pico porque a curva achatou e é só surto. Primeiro, pelo menos, mas também segundo, previsto para depois do verão. A verdade é que deixamos de limpar as compras do supermercado com detergente antes de as arrumar. O pacote de arroz era fácil, assim como a garrafa de azeite, já o saco que traz a alface levantava dúvidas, limpar exatamente como, o saco é mole, o do pão também. E então a fruta? Lavamos as mãos, isso lavamos, muito bem. Mas também já não tiramos as máscaras com todos os predicados aprendidos na televisão, os elásticos, a ordem, isso assim. Tiramo-las como calha, aliás semitiramo-las, porque as puxamos para o queixo se for das com preguinhas ou desenfiamos de uma orelha, se for das de bico de pato, dizem. Eu pessoalmente, passo a redundância, prefiro as segundas não sei porquê.
Que todavia estão iguais às terças, sextas e sábados desde março. E a hoje, que é domingo.
08/07/2020
Slot aborrecido (ai o itálico!)
Na porta de embarque bato os olhos na sola de um sapato de ténis, a sola está voltada para mim. Tem um perfil parecido com o do sapato que deixou as marcas no chão do quarto da Saminhas no último assalto. Este perfil esteve na lista top mais na altura, quando fomos a várias lojas de calçado virar sapatos para apreciação das solas. O perfil foi então eliminado, as estrias da borracha são mais largas. O sapato do ladrão, ou da ladra, era outro.
O tempo de espera para entrar no avião é um vazio repleto de aborrecido. O miúdo da frente da fila, por exemplo, torce o pequeno tronco do colo do pai abaixo, acompanhando a tentativa de um gemido. Quer sair. Ou quer embarcar. A mãe do miúdo já andou a passar por baixo das fitas delimitadoras de contenção de passageiros em filas para ir apanhar o cachopo fora da área, tinha ele escapado do colo do pai com sucesso.
Hesito entre ter saudades do comboio e culpar a máscara que me dá comichão no nariz e um bocado de falta de ar.
30/06/2020
Geometrias
Casados fez sessenta anos em plena pandemia, os vizinhos da
casa em frente estão atarefados a cuidar do seu jardim holandês. As folhas do
chão são varridas e reunidas. Não utilizam máquinas, fazem eles enquanto acenam
a quem passa, ou a mim, que estou a espiá-los detrás da janela da cozinha. A
sebe poliédrica perimétrica é aparada mantendo as superfícies lisas, os ângulos
retos. As ervas supérfluas, indesejadas, são removidas com mãos
experientes dentro de luvas de entre as flores escolhidas em amarelo, lilás,
branco. Os canteiros de novo intactos. É um jardim bonito e bem cuidado, como
era de esperar, mas falta-lhe uma coisa para ser promovido a quintal: a roupa
estendida entre a qual se vê uma toalha de piquenique aos quadrados
vermelhos e brancos a esvoaçar na brisa da tarde como nos livros de histórias. As
toalhas deste tipo têm a especialidade de não ficar estiradas, hirtas, em
direção ao chão. Elas atraem a brisa da tarde de propósito para ficarem bonitas
nas ilustrações dos livros. Não há roupa estendida em toda a rua, aliás; feito que
terá origem na proliferação já antiga das máquinas de secar. O contentor de
tampa verde informando sobre a sua espécie de conteúdo está ali por perto,
aberto e quase cheio, bem alimentado pelos resíduos colhidos no jardim da casa em frente. Deve
estar para breve o dia de passar o carro-camião-mas-limpinho que com o seu
braço mecânico vai, apanha e vira os contentores da tampa verde de rodas para o
ar, dois a dois, agita-os esvaziando-os e volta a pousá-los. É só preciso, na
véspera, colocá-los alinhados lado a lado, estimando razoavelmente o alcance do
braço mecânico, direitinhos. Todos os moradores da rua sabem isto e eu
também, que venho de passagem. Eles não falham: eu só me enganei uma vez.
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