Sinto um prazer íntimo ao colocar um toro de lenha na lareira e só recentemente aceitei apossar-me de razões. Faço-o com a mão dentro de uma luva almofadada para desencorajar completamente uma farpa de se me espetar num dedo e depois fico a velar o cepo enquanto pega as chamas emprestadas dos outros, vultos meio cinzas ainda unas, cinzas vencidas no final deste texto. Enquanto olho a transformação dar-se lentamente, o meu prazer será cruel?, tenho o mesmo pensamento de sempre, que vem em forma de pergunta: alguma vez no tempo ou no espaço de todas as lareiras do mundo, se repetirá a mesma configuração de toros e chamas, exatamente o mesmo número de toros do mesmo formato e as mesmas chamas a dançar a mesma dança, em um dado momento? se sim, então temos infinito não, temos antes um muito círculo teimoso e dele poderão a seguir advir inúmeras certezas quanto a tudo; caso contrário, caso contrário (está repetido de propósito, aplica-se assim). Mesmo que vivesse os quinhentos anos de que me sinto merecedora, nunca viria a saber a resposta a esta estúpida pergunta que não me larga no inverno, angustia-me. Porém, continuo: luva, toro, fogo, olhar, pensamento, pergunta, resposta?, angústia, sai luva, levanta, vai, estende a roupa, ao vento, enche a cabeça, de molas, agrupa as meias pela cor, fecha este ciclo.
Sim, continuarei, em dois mil e dezasseis continuarei a colocar os toros na lareira p'raí até abril, tempo de virem as magnólias conversar comigo, o prazer íntimo, queria eu dizer, vem desta conversa da Terra, murmúrios azuis doutras ondas que me chegam ao âmago e me pedem isto e aquilo, e eu dou isto e aquilo, o toro na fogueira, a roupa ao vento, o fechar dos ciclos.
Por causa destas brincadeiras, fiquei amolecida e hoje quase comprei uma árvore anã em Coimbra, tive mesmo um impulso para ela, detive-me ali à sua frente, ai que é isto, mas segurei a mão direita com a esquerda a tempo de nada disso. Aquilo irrita-me, as bonsai, sempre me irritaram, as coisas são mesmo como são, e fazê-las mirradas é estúpido, eu amo árvores das grandes e muito e de repente uma dessas atarracadas à força caber-me-ia à janela, em qualquer janela, do lado de dentro, é que eu ia amolecida, mas não. Não comprei atarracadinha-lingrinhas, deixei-a lá com as suas mini folhinhas vaidosas a brilhar. Ali, na grande superfície onde estávamos as duas, debaixo das luzes branco-gelado-tipo-frigorífico que iluminam a grande área comercial que por sua vez vende grandes soluções para a sua casa e o seu jardim, não me chegou murmúrio nenhum, apenas a vontade de sair dali depressa.
30/12/2015
28/12/2015
A batata doce
De entre todas as batatas doces que estão à venda na secção
de legumes do supermercado, escolho aquela que, na parte mais larga, tem um
diâmetro conveniente ao encaixe da minha mão. As batatas doces só o são se entrarem
no pequeno mundo em que me movimento sem lhe perturbarem a ordem. Uma batata
doce muito fina perder-se-ia mais tarde no seio da caixa de legumes do meu
grande frigorífico, sufocada entre cenouras e alfaces, alhos franceses e limões,
couves coração e tomates, a batata doce muito fina, que tem uma área de pele
demasiado extensa quando comparada com o seu volume, seria rapidamente agredida
por estes elementos externos na sua magrinha harmonia, degradando-a. Embora não
seja imprescindível fazê-lo, prefiro notar ainda que são todas feias as batatas
doces. Foi só alguns dias depois, sem estar planeado – a ordem do pequeno mundo
meu só parcialmente é planeada – que me dediquei a ela, a peguei e a lavei
debaixo da torneira, com os dedos a esfreguei, e com uma faca a cortei depois, devagar,
às rodelas. Para manter a harmonia - vou atrever-me - celeste, as rodelas têm a
espessura de um dedo meu medido a olho (também meu). Abri o armário de cima e
escolhi o prato fundo que já pertenceu à minha avó e que lhe mereceu muitas
vezes o nome de pyrex, põe isso num
pyrex, filha, ter-me-ia ela dito agora, e eu obedeci dispondo as rodelas
sem as atropelar umas com as outras, encostando tangencialmente a pele de uma e
de outra rodela, acomodando-as assim. Com a voz da minha avó ainda a soar
dentro da minha memória, põe isso num
pyrex, filha, coloquei o prato dentro do forno micro-ondas e liguei-o. Nos
minutos seguintes a esta cena, se tivéssemos um microscópio capaz, veríamos
como as ondas micro mergulham para dentro das moléculas de água que calhou
pertencerem a estas rodelas de batata doce e não a outras, e nelas chapinham de
forma também ordenada, veríamos que minimalmente quantificada, micro-magia que
excita muito as moléculas de água, seria então uma alegria que nos faria
exclamar ahhh e ohhh observar os hidrogénios e os oxigénios vendo as suas
quenturas subir docemente a um nível maximal.
Mas não temos um microscópio capaz. Ao fim de vinte minutos
ou vinte e cinco, abro a porta do forno micro-ondas e dos meus olhos nus
vislumbro os calores translúcidos emanando das rodelas agora macias de um cansaço
feliz, um pouco coradas, bastante transpiradas de todo o micro-bombardeamento
que lhes excitou as aguinhas e retiro uma do prato fundo. A rodela esquentada morde-me
os dedos que, com um jeito certeiro, lhe despem a cinta de casca e, assim
pelada, a levam perto da boca. Sopro-lhe então doçuras minhas, faço-lhe um
pedido de arrefecimento simples e só depois, suavemente, lhe enterro os dentes.
26/12/2015
Mesmo que traga o iva eu quero
Ouvi a mensagem anunciar-se no telemóvel havia já um bocado de tempo durante o qual continuei a ler o livro sem me alterar. A janela que deita para a serra deixa-me ver as pontas das folhas da palmeira alta que sobreviveu ao abandono de décadas e depois às obras de reconstrução desta ex-ruína, e que, esta manhã, se agitam muito com o vento. Não encontro em mim a urgência do contacto permanente com o mundo exterior conhecido, não me lanço em ânsias de ler a mensagem. Foi apenas quando fechei o livro para iniciar as tarefas do dia, que me quedei um pouco tentando adivinhar o remetente. Ora num dia de acalmia após as turbulências festivas talvez seja da Raquel, que não me respondeu à mensagem de boas festas e é seu hábito responder tardiamente. Das minhas filhas não será, que ainda dormem no quarto ao lado: imagino-as de olhos fechados, tranquilas, os cabelos longos e encaracolados espalhados pelas almofadas, são quase iguais os cabelos das minhas filhas, então talvez seja do pingo doce anunciando uma baixa extraordinária do preço do quilo de borrego, que eu nem morto nem vivo compro borrego ao quilo, mas pode também ser da fnac, dos livros e suas promoções só para pessoas que não sei quê e isto, caramba, isto aborrece-me, não sei se mais se menos que as mensagens de boas festas por atacado, vindas de quem as envia para toda a sua lista de contactos à qual eu pertenço por acasos da vida, aquilo entope as vias dos operadores de telecomunicações e pessoas como eu não valorizam mesmo nada essas mensagens por atacado, até ficam a considerar um pedacinho menos quem as envia, pensando bem prefiro saber do preço do borrego ao quilo, sempre acho tanta graça aos borregos.
Levantei-me e aprovisionei o telemóvel para ler a mensagem, errei. Nem Raquel nem livros nem borrego, a rádio popular optou por vender os grandes eletrodomésticos em promoção, tanto pode ser um frigorífico como uma máquina de lavar, o iva nestes dias está de férias. Mas do que eu preciso agora é de um telefone novo, um que venha com filtro de spam de mensagens, já com certeza há desses, e mesmo que traga o iva eu quero.
(a fotografia tirei-a a meio do post interrompido por motivos evidentes; a palmeira referida desta vez não quis ficar e o vento também não)
Levantei-me e aprovisionei o telemóvel para ler a mensagem, errei. Nem Raquel nem livros nem borrego, a rádio popular optou por vender os grandes eletrodomésticos em promoção, tanto pode ser um frigorífico como uma máquina de lavar, o iva nestes dias está de férias. Mas do que eu preciso agora é de um telefone novo, um que venha com filtro de spam de mensagens, já com certeza há desses, e mesmo que traga o iva eu quero.
(a fotografia tirei-a a meio do post interrompido por motivos evidentes; a palmeira referida desta vez não quis ficar e o vento também não)
24/12/2015
A todos um Natal Feliz
Também neste blogue, enquanto as filós se aprontam e o bacalhau está quase, fica uma mensagem de Natal para todos. Uma do tipo à-antiga, cuja ideia muito boa foi copiada daqui.
(a máquina fotográfica não quis focar tudo, porquê não sabemos e pelo incómodo pedimos desculpa)
(a máquina fotográfica não quis focar tudo, porquê não sabemos e pelo incómodo pedimos desculpa)
22/12/2015
A banda
Desde há um tempo que não consigo escrever do fundo, entrar nos meus confins e escarafunchar em busca de tesouros, o que me sai é raspado com esforço da superfície da pele e depois vou compor sem graça num retângulo igual a este em que escrevo agora. Tenho muita pena de ficar assim desagregada em duas partes, a casca e o núcleo, que deixou de estar ao meu alcance. Causa-me a situação um tom esverdeado no rosto, muito feio, que vejo ao olhar-me no espelho da casa de banho lá no trabalho. O verdadeiro espírito do natal não me entrou como de costume, ainda não me bateu a espécie de amor pela humanidade em geral, o desejar boas festas a torto e a direito mas do coração, o caminhar a sorrir por defeito, tudo isto era assim e nada disto está sucedendo. Hoje até dei um salto acrobático à hora do almoço ao centro comercial e em duas lojas comprei cinco prendas, estou quase lá que eu no total são mais de trinta, e quando estava já de volta ao carro, esbarrei na Margarida, olá, disse-me a Margarida e eu mas donde a conheço, esta moça, ah! conheço do trabalho e claro que ali nunca a tinha visto, no centro comercial, de férias, informou-me, e então a ela sorri e dei as boas festas, por acaso simpatizo mesmo com a Margarida, mas o natal nem aí, de sacos de presentes na mão, me entrou de frente, portanto durante a tarde tentei rodear-me de jingle bells dos bons e tudo, mas acabei n'"A banda" do Chico Buarque que é o melhor jingle bells que podia haver afinal, principalmente a parte do velho que se julga moço e sai dançando na rua e se alguém estiver a fim é aqui se faz favor.
De maneira que às vezes apetecia-me ser brasileira e fazer-me bonita, dizer-me: deixa p'ra lá não esquenta a cabeça não (aposto que voltava a ter o rosto cor de rosa). Por exemplo, a dona Rita, que é brasileira e limpa o escritório lá do trabalho, assoma à minha porta com as luvas de borracha amarelas e, toda bem disposta com o seu rabo de cavalo loiro a dar a dar, diz-me que é um calor humano que dali vem. Mas não é. O calor que dali vem, de dentro da minha sala, é do aquecedor elétrico. Que faz vzzzzzz o tempo todo sem parar e só foi interrompido quando eu toquei "A banda" do Chico Buarque e acabei me consolando um pouco com a parte da moça feia que vai à janela e pensa que a banda toca para ela.
De maneira que às vezes apetecia-me ser brasileira e fazer-me bonita, dizer-me: deixa p'ra lá não esquenta a cabeça não (aposto que voltava a ter o rosto cor de rosa). Por exemplo, a dona Rita, que é brasileira e limpa o escritório lá do trabalho, assoma à minha porta com as luvas de borracha amarelas e, toda bem disposta com o seu rabo de cavalo loiro a dar a dar, diz-me que é um calor humano que dali vem. Mas não é. O calor que dali vem, de dentro da minha sala, é do aquecedor elétrico. Que faz vzzzzzz o tempo todo sem parar e só foi interrompido quando eu toquei "A banda" do Chico Buarque e acabei me consolando um pouco com a parte da moça feia que vai à janela e pensa que a banda toca para ela.
20/12/2015
Um livro que não faça chorar
- Chegou a ver-me do livro?
A dona Esmeralda é daquelas pessoas que acorda às cinco horas da manhã desde antes de ela própria ter nascido e que nunca se atrasa em nada, tudo o que faz é para adiantar, prepara o dia seguinte porque se cá já não estiver, ninguém terá de fazer o trabalho por ela, esfrega e lava diariamente o que a meu ver seria feito de acordo com a necessidade a cada três dias.
- Não, dona Esmeralda, esqueci-me, desculpe. Trago amanhã.
Eu nasci depois do tempo, creio estar sempre em atraso, não me levantei nunca às cinco da manhã senão quando o telefone tocou com a pior notícia da minha vida, vivo desde que me lembro numa espécie de certeza de estar em falta, mas isso talvez se deva apenas ao facto de receber da vida mais do que dou. Não me tinha verdadeiramente esquecido do livro, mas precisava de mais tempo para o escolher, caso que não quis explicar-lhe naquele momento em que ela varria o chão da cantina e eu passava com um café na mão e a urgência do trabalho à espera.
- Não faz mal, se me trouxer para o fim de semana pode ser, não é pressa.
A filha e as netas da dona Esmeralda orbitavam em redor dela e da sua cozinha até há dias. As voltas que a vida dá sem lhe serem pedidas, levaram o orbitar da sua família para longe, sobretudo longe para quem terá de se servir de comboio, barco e autocarros para as visitas, que não podem ser frequentes.
- Trago amanhã, dona Esmeralda - prometi.
A cozinha é, como sabemos, o coração de uma casa, é nela que nasce o aroma do café e o da laranja acabada de espremer pela manhã, é ela que inspira as melhores conversas, foi nela que criei este blogue, entre o fim de um jantar e o arrumar da loiça. Imagino a cozinha da dona Esmeralda sempre quente e arrumada, um rádio ligado baixinho em cima de um naperon branco feito por ela, em crochet, em serões frente ao televisor no tempo em que o marido era vivo. O rádio ligado baixinho não imagino, é verdade, no momento em que me pediu um livro, um que não faça chorar, um que seja levezinho de ler, está a ver? contou-me do rádio, eu disse que sim, que estava bem, nada de livros que fazem chorar, o rádio fica ligado para o canário se distrair, coitadinho, o dia todo sozinho, o irmão deu-lhe o canário para compensar o vazio que agora o livro deve ajudar a preencher.
Visitei as minhas estantes de livros com os requisitos da dona Esmeralda em mente, este não, ela vai chorar, aquele talvez seja muito rebuscado, este aqui não me parece que lhe capte a atenção, precisei de mais tempo do que esperava para me decidir, na verdade foi tarefa muito mais difícil do que supunha. Escolhi dois para aumentar as minhas possibilidades de acertar. Um livro de contos da Isabel Allende que li muito antes de ser mãe e me fez desejar ter uma filha - vim a ter duas - e o livro das pequenas memórias de Saramago que a mim fez chorar mas talvez a ela não faça. Não podia emprestar-lhe livros que não me tinham marcado o coração. Expliquei-lhe no dia seguinte, no cantinho do café onde a apanhei depois do almoço dela, que esse sim é tarde, a seguir ao de toda a gente, os meus porquês de lhe ter levado aqueles dois livros.
E agora estou aqui a pensar que, indo o fim de semana a meio, talvez um dos livros também já o vá e mal posso esperar por segunda feira para saber qual.
A dona Esmeralda é daquelas pessoas que acorda às cinco horas da manhã desde antes de ela própria ter nascido e que nunca se atrasa em nada, tudo o que faz é para adiantar, prepara o dia seguinte porque se cá já não estiver, ninguém terá de fazer o trabalho por ela, esfrega e lava diariamente o que a meu ver seria feito de acordo com a necessidade a cada três dias.
- Não, dona Esmeralda, esqueci-me, desculpe. Trago amanhã.
Eu nasci depois do tempo, creio estar sempre em atraso, não me levantei nunca às cinco da manhã senão quando o telefone tocou com a pior notícia da minha vida, vivo desde que me lembro numa espécie de certeza de estar em falta, mas isso talvez se deva apenas ao facto de receber da vida mais do que dou. Não me tinha verdadeiramente esquecido do livro, mas precisava de mais tempo para o escolher, caso que não quis explicar-lhe naquele momento em que ela varria o chão da cantina e eu passava com um café na mão e a urgência do trabalho à espera.
- Não faz mal, se me trouxer para o fim de semana pode ser, não é pressa.
A filha e as netas da dona Esmeralda orbitavam em redor dela e da sua cozinha até há dias. As voltas que a vida dá sem lhe serem pedidas, levaram o orbitar da sua família para longe, sobretudo longe para quem terá de se servir de comboio, barco e autocarros para as visitas, que não podem ser frequentes.
- Trago amanhã, dona Esmeralda - prometi.
A cozinha é, como sabemos, o coração de uma casa, é nela que nasce o aroma do café e o da laranja acabada de espremer pela manhã, é ela que inspira as melhores conversas, foi nela que criei este blogue, entre o fim de um jantar e o arrumar da loiça. Imagino a cozinha da dona Esmeralda sempre quente e arrumada, um rádio ligado baixinho em cima de um naperon branco feito por ela, em crochet, em serões frente ao televisor no tempo em que o marido era vivo. O rádio ligado baixinho não imagino, é verdade, no momento em que me pediu um livro, um que não faça chorar, um que seja levezinho de ler, está a ver? contou-me do rádio, eu disse que sim, que estava bem, nada de livros que fazem chorar, o rádio fica ligado para o canário se distrair, coitadinho, o dia todo sozinho, o irmão deu-lhe o canário para compensar o vazio que agora o livro deve ajudar a preencher.
Visitei as minhas estantes de livros com os requisitos da dona Esmeralda em mente, este não, ela vai chorar, aquele talvez seja muito rebuscado, este aqui não me parece que lhe capte a atenção, precisei de mais tempo do que esperava para me decidir, na verdade foi tarefa muito mais difícil do que supunha. Escolhi dois para aumentar as minhas possibilidades de acertar. Um livro de contos da Isabel Allende que li muito antes de ser mãe e me fez desejar ter uma filha - vim a ter duas - e o livro das pequenas memórias de Saramago que a mim fez chorar mas talvez a ela não faça. Não podia emprestar-lhe livros que não me tinham marcado o coração. Expliquei-lhe no dia seguinte, no cantinho do café onde a apanhei depois do almoço dela, que esse sim é tarde, a seguir ao de toda a gente, os meus porquês de lhe ter levado aqueles dois livros.
E agora estou aqui a pensar que, indo o fim de semana a meio, talvez um dos livros também já o vá e mal posso esperar por segunda feira para saber qual.
15/12/2015
Vertigem
Sempre me lembro de carregar o medo de me deixar cair no puré
morno interior e escuro, sem fim, que sabes, este que mantenho especialmente
fechado dentro da caixa forte em aço escovado para nem sequer brilhar. Nela sei
aprisionar a voz dos séculos que desdobrada lê mensagens de outros milénios
nossos e mais nada agora para não doer. Confere-me, porém, a certeza de ser
imortal. Por causa da vertigem que vem toda de mel, que me queres escorrer
lânguida para o milenar eu, é que tenho o medo. Pode cá haver dentro essa
poesia, isso pode. Essa tão quente e cheia, que se me perco engolida nela é por
inteiro que vamos e depois é capaz de, quando eu regressar, o pobre mundo já
estar rodando em dois mil e duzentos pedaços a sul, e ao erguer-me? serei
atingida por um vazio estranho de um tempo sem nós, desmoronado. Portanto
finco-me à superfície do eu, não caio não. Sei parecer a olhos muitos algo
quase nada, um todo murcho, um ramo seco ante ideais gravados em promoção nas
capas brilhantes de folhetos grátis, personagem sem nome, sei parecer, e sem
unicidade, um programa fictício de domingo à tarde, um arrancar de bocejos às
pedras.
Levo-me pois à cozinha. Ponho a
cafeteira a funcionar – o anteceder do café é sempre feliz - e deixo-me já
tomar pelo aroma que mergulha-me bem, entras-me logo sem medo neste toda-eu sem
fim.
Sento-me com a chávena a
fumegar delícias frutadas de alívios indefinidos para me pôr a escrever devagar
sobre a luz. Não essa tua do olhar, mas a do farol do meu carro que finalmente
se fundiu, eu sabia - é a oficina, o pagamento, o número de contribuinte e um
suspiro furtivo: porque à tona fico, embora mortal, a salvo de mim.
10/12/2015
Incubadora de posts dá nisto
Voltei a usar o meu caderno de notas para incubadora de posts, daqui em diante acabou-se o ai-eu-não-me-esqueço. Esqueço. As ideias são tão perecíveis como a flor da magnólia ou os morangos.
Posto isto - brincadeirinha com a palavra - posto isto:
Hoje jantei sozinha, quer dizer, com um livro. Mas um livro de tal maneira grosso que não queria manter-se aberto com o peso próprio das duas metades, não obstante uma bem maior que a outra, e fechava-se enquanto eu cortava o frango com os olhos no prato. Meto-lhe, então, depois de o voltar a abrir, o comando da televisão atravessado em cima das páginas abertas, mas o pobre também não tem peso próprio para desempenhar a tarefa e o livro dá-lhe uma dentada franca, chláp. Considerei ir buscar mais comandos de televisão, da playstation três, etc, devo ter uns seis em casa ou sete se contar com a wii, mas devido a não serem transparentes, a leitura tornar-se-ia impossível ou muito difícil entre duas garfadas bem cortadinhas de frango junto a um livro coberto de comandos remotos atravessados.
Mas vamos ao ponto. Acabei então de comer sem ler e no fim sobrou um bocado do vinho no copo, perfeita ocasião para dar alimento finalmente aos meus famintos olhos. Começámos, mas o vinho pediu um pedaço pequeno de chocolate negro para brincar na boca. Dei-lho, até lhe dei dois, para ele sossegar e me deixar ler. E então, às linhas tantas, solto uma gargalhada muito boa, tão boa que me lancei em notas na incubadora de posts por causa dela. A magnífica Clarice Lispector estava a contar-me na página aberta que usa máquina de escrever (o meu nível de interesse sobre a questão intensificou-se porque aquilo foi escrito enquanto eu me incubava dentro de minha mãe, fiz as contas), e usa máquina de escrever no colo. Como se a máquina fosse uma pessoa. Que a máquina lhe provoca pensamentos e sentimentos, que lhe capta subtilezas e, depois, a gargalhada minha aqui: "Eu gostaria de dar um presente a minha máquina".
Quando parei de rir, disse à página aberta que adoro isto de oferecer presente a máquina de escrever, que ela é maravilhosa por se lembrar de coisa assim, que se eu pudesse ir ver a Clarice ao Brasil eu ia, mas lembrei-me de repente de uma coisa. Eu já fiz pouco, gozei mesmo a sério, quase achincalhei, em outros natais, as minhas duas irmãs que tinham cães, cada uma o seu. Só porque elas ofereciam presentes aos cães. Ao próprio e ao cão-sobrinho. E isto eu sempre achei parvinho. Mesmo mesmo parvinho. E só conto hoje aqui no post porque agora já não acho.
Posto isto - brincadeirinha com a palavra - posto isto:
Hoje jantei sozinha, quer dizer, com um livro. Mas um livro de tal maneira grosso que não queria manter-se aberto com o peso próprio das duas metades, não obstante uma bem maior que a outra, e fechava-se enquanto eu cortava o frango com os olhos no prato. Meto-lhe, então, depois de o voltar a abrir, o comando da televisão atravessado em cima das páginas abertas, mas o pobre também não tem peso próprio para desempenhar a tarefa e o livro dá-lhe uma dentada franca, chláp. Considerei ir buscar mais comandos de televisão, da playstation três, etc, devo ter uns seis em casa ou sete se contar com a wii, mas devido a não serem transparentes, a leitura tornar-se-ia impossível ou muito difícil entre duas garfadas bem cortadinhas de frango junto a um livro coberto de comandos remotos atravessados.
Mas vamos ao ponto. Acabei então de comer sem ler e no fim sobrou um bocado do vinho no copo, perfeita ocasião para dar alimento finalmente aos meus famintos olhos. Começámos, mas o vinho pediu um pedaço pequeno de chocolate negro para brincar na boca. Dei-lho, até lhe dei dois, para ele sossegar e me deixar ler. E então, às linhas tantas, solto uma gargalhada muito boa, tão boa que me lancei em notas na incubadora de posts por causa dela. A magnífica Clarice Lispector estava a contar-me na página aberta que usa máquina de escrever (o meu nível de interesse sobre a questão intensificou-se porque aquilo foi escrito enquanto eu me incubava dentro de minha mãe, fiz as contas), e usa máquina de escrever no colo. Como se a máquina fosse uma pessoa. Que a máquina lhe provoca pensamentos e sentimentos, que lhe capta subtilezas e, depois, a gargalhada minha aqui: "Eu gostaria de dar um presente a minha máquina".
Quando parei de rir, disse à página aberta que adoro isto de oferecer presente a máquina de escrever, que ela é maravilhosa por se lembrar de coisa assim, que se eu pudesse ir ver a Clarice ao Brasil eu ia, mas lembrei-me de repente de uma coisa. Eu já fiz pouco, gozei mesmo a sério, quase achincalhei, em outros natais, as minhas duas irmãs que tinham cães, cada uma o seu. Só porque elas ofereciam presentes aos cães. Ao próprio e ao cão-sobrinho. E isto eu sempre achei parvinho. Mesmo mesmo parvinho. E só conto hoje aqui no post porque agora já não acho.
08/12/2015
A professora de matemática
Lembro-me bem dela, chamava-se Helena e o nome assentava-lhe bem, pela elegância. Eu tinha onze anos e ela era alta, o seu cabelo bonito. Era a minha professora de matemática. Mandava-nos ao quadro fazer exercícios e falava com voz firme, quente e calma. Era mulher que me inspirava respeito e admiração, era muito bonita a professora Helena e eu queria ser como ela. Naquela altura eu tinha - tínhamos todas, era uma moda - um livrinho de autógrafos. No final de uma aula de matemática, pedi um autógrafo à professora. Ela escreveu que me desejava felicidades na minha vida académica e privada. Fui ver "académica" ao dicionário. A letra dela era alta e elegante, a condizer-lhe com o nome, Helena. Lembro-me que escreveu a azul. Um dia a professora de matemática faltou, um dia, dois, uma semana, ouvimos dizer que estava doente. Doente também eu tinha estado, e as minhas irmãs, o xarope ajudava e as atenções da nossa mãe também, por isso não me importava nada o estar doente, pensava que era normal estar doente. Continuei a correr no recreio com as minhas colegas, a jogar ao mata ou a saltar à corda, que era a minha especialidade. As meias de lã até ao joelho que tínhamos de usar - era um dos requisitos da farda - tinham a mania de escorregar até formarem um fole no tornozelo. Havia muitas meninas a puxar as meias para cima no recreio, uma meia, depois a outra.
Quando a professora de matemática voltou, aproveitei o final de uma aula, aproximei-me da secretária quando ela estava a escrever no livro dos sumários e perguntei-lhe que doença ela tinha tido. Olhou para mim e hesitou. É uma doença das senhoras, disse por fim. Doença das senhoras. Fiquei mais um segundo ou dois à espera de saber qual doença era essa das senhoras, mas ela baixou a cabeça e continuou a escrever. A professora Helena tinha duas filhas a estudar lá no colégio, eram mais velhas do que eu e por isso não me atrevi a perguntar-lhes de que doença das senhoras se tratava. Pouco tempo depois a professora Helena tornou a faltar e veio outra cujo nome não me lembro, nem se era alta ou como era. A professora Helena desta vez não voltou. Soubemos pouco depois que morrera da doença das senhoras. Fiquei muito triste e horrorizada por ela ser tão nova, pensava que só as velhinhas morriam, pensei que se a minha mãe morresse eu também morreria, que uma mãe não podia morrer, era proibido as mães morrerem e senti uma dor aflita e terrível pelas filhas dela, não sabia como se respirava se a mãe morresse, como se fazia para o coração bater. Não me atrevi a aproximar-me delas quando retomaram as aulas, limitei-me a observá-las discretamente no recreio. Mas notei, nestas observações, que elas continuavam a correr como dantes, que as meias também lhes escorregavam para os tornozelos, tal como as das meninas que, como eu, tinham mãe. E que elas também as puxavam para cima, uma meia, depois a outra. E foi precisamente isto que, ao fim de algum tempo, me sossegou.
Quando a professora de matemática voltou, aproveitei o final de uma aula, aproximei-me da secretária quando ela estava a escrever no livro dos sumários e perguntei-lhe que doença ela tinha tido. Olhou para mim e hesitou. É uma doença das senhoras, disse por fim. Doença das senhoras. Fiquei mais um segundo ou dois à espera de saber qual doença era essa das senhoras, mas ela baixou a cabeça e continuou a escrever. A professora Helena tinha duas filhas a estudar lá no colégio, eram mais velhas do que eu e por isso não me atrevi a perguntar-lhes de que doença das senhoras se tratava. Pouco tempo depois a professora Helena tornou a faltar e veio outra cujo nome não me lembro, nem se era alta ou como era. A professora Helena desta vez não voltou. Soubemos pouco depois que morrera da doença das senhoras. Fiquei muito triste e horrorizada por ela ser tão nova, pensava que só as velhinhas morriam, pensei que se a minha mãe morresse eu também morreria, que uma mãe não podia morrer, era proibido as mães morrerem e senti uma dor aflita e terrível pelas filhas dela, não sabia como se respirava se a mãe morresse, como se fazia para o coração bater. Não me atrevi a aproximar-me delas quando retomaram as aulas, limitei-me a observá-las discretamente no recreio. Mas notei, nestas observações, que elas continuavam a correr como dantes, que as meias também lhes escorregavam para os tornozelos, tal como as das meninas que, como eu, tinham mãe. E que elas também as puxavam para cima, uma meia, depois a outra. E foi precisamente isto que, ao fim de algum tempo, me sossegou.
06/12/2015
O espírito do natal e por que fiz eu um blogue
Num dia em que subi ao escadote cinco vezes, comprei um
calendário aos escuteiros à porta do centro comercial, num dia em que temperei
o peito de peru para o jantar de amanhã, em que bebi um cappuccino preparado
pela minha filha mais nova, num dia em que comprei atacadores para as botas
antes de os velhos se romperem por completo, em que ouvi numa loja uma mulher velhota e muito bem arranjada dizer a outra mais nova que quando ele se cruza com ela no elevador, por ter uns olhos azuis que
parecem água e um sorriso maravilhoso, ela ganha o dia, num dia assim percebi, numa espécie de epifania de cristal, embrulhada no calor do aquecedor que está junto de mim num sopro contínuo,
entre uma linha e outra do meu trabalho caseiro, entre uma nota e outra do
concerto para piano número dois de Rachmaninov, sentada no canto onde ainda não está armada a árvore de
natal dois mil e quinze porque o espírito natalício não me chegou este ano, ainda não, percebi que o
que me levou a criar um blogue não foi a vontade de escrever. Foi uma vontade mais
nuclear, mais essencial, foi uma necessidade. A de alargar a celebração da vida
para fora de mim. Transbordava eu, sempre foi assim, de celebrações solitárias que
caíam ao chão, enterravam-se no cimento das pedras, eram lavadas com a chuva, evaporavam-se no verão, seguiam nas asas das gaivotas que as largavam no mar, fugazes. Ó mãe tu gostas de tudo! disse
a mais nova aos quatro anos porque eu todas as manhãs achava a praia linda na
fila da marginal, meninas, olhem, a praia está linda (e estava mesmo). Nunca me importei de perder um jogo de cartas
ou qualquer jogo, ou em corridas com as minhas irmãs, jamais empurrei as outras
raparigas do colégio para subir primeiro na carrinha que nos levava a casa, subia
em último mas havia sempre um lugar para mim (apenas tinha mais trabalho em descobrir
qual). As minhas celebrações interiores de vida chegavam-me. Chegam-me. Não quis
ser a melhor, não me era
necessário, continua a não ser, fui algumas vezes a pior e até chorei sem ninguém ver, depois as mãos limparam as lágrimas, o nariz fungou pela
última vez e os minutos continuaram a passar, veio um bom e depois mais vieram.
E fui uma das melhores num momento ou noutro, dádiva que me fez subir às nuvens
de um céu azul. Basta-me olhar ao espelho e constatar que não há ninguém
igualzinha a mim, nem entre as minhas irmãs: num
caso a voz, noutro as mãos, não mais que isso. Portanto, o meu lugar é meu.
Seja ele qual for, na carrinha do colégio, na cadeira em
que me sento sem árvore de natal, o Carl Sagan tinha razão, sou única.
E tu também és.
Este momento que partilhamos porque nascemos no mesmo
século (tens entre quinze e cento e quinze anos?), estamos aqui no mesmo tempo, entendemos a mesma língua, não te importas de ler o português do acordo ortográfico de que pouca gente gosta e dás a tua
voz às minhas palavras: era mesmo isto que eu queria. A celebração já não é
minha, é nossa: cresceu, viverá.
(estou aqui estou a achar que isto é amor… mas no natal pode-se,
alarga-se o amor um bocado, ninguém estranha nem dá medo e depois faz bem)
(ou seja, acabou de me chegar o espírito)
05/12/2015
Eu serei linda em Lisboa
A luz do frigorífico novo é de um branco-gelado que foge para o azul-glaciar, oscila entre emitir sensações de nave espacial e sala de operações de um hospital perto de si. Cobre-me esta luz oscilante enquanto alcanço o iogurte natural sem açúcar para lhe meter dentro os flocos de aveia simples, os flocos de aveia simples lembram-me os papelinhos tipo confetti que saem do furador de folhas de papel e faço a piada do costume para os meus botões sobre que bom não ter de assinar estes todos, divirto-me muito sozinha quando trago a alma dentro, sendo então todo este preparo em prol de ver se me largo de uns quilos que andam sempre comigo, eu mereço a elegância eterna. Mas vá, neste ponto, e sendo o frigorífico novo muito lindo e metalizado por fora (e é precisamente deste lado do grande eletrodoméstico linha-branca-variante-metalizada que nos encontramos), admite-se uma luz indecisa entre a tal nave espacial e a sala de operações -vou dizer - onde levei uma injeção na pálpebra superior do olho esquerdo por uma pequena coisa que ali estava indevidamente e tudo isto para quê?
Tudo isto para dizer que em Paris fui nova, linda, se fui, ninguém me avisou. Linda é em Lisboa que vou conseguir, como já expliquei com o parágrafo do frigorífico. No entanto, para ser linda depois de nova já não, necessito ocupar-me muito de mim, de forma que para poupar tempo que utilizarei a meu favor vou repostar (postar segunda vez) um dos textos que saíram na altura em que só eu lia este blogue, no qual se pode observar na verdade pura das crianças que de facto nova já não:
Eu ainda não tinha completado quatro décadas de idade. Estávamos as três a jantar, as minhas filhas adolescentes e eu. Elas sentadas à minha frente, do outro lado da mesa. Como gosto de as ouvir e de estimular a sua expressão de opiniões, iniciei uma conversa cujo tema já me fugiu, apesar de não terem passado muitas primaveras desde então. Porém recordo-me que desatei a utilizar tipo isto e tipo aquilo: "Hoje tipo o meu dia foi tipo bom e tipo o vosso?"
- Ó mãe, não gozes, não se diz tipo assim!
- Ah não? Então tipo como é que se diz?
- Sei lá, diz-se, pronto! Não dá para explicar...
- Explicar - continuo a divertir-me - ou tipo explicar?
- Ó mãããããee!!! (coro)
- Pronto, está bem. A mãe está velha e gorda...- rematei, para as deixar ganhar.
Dois pares de olhos bem abertos e sérios a fitarem-me, em jeito de avaliação. Os garfos pararam a meio dos trajetos verticais, cena congelada. Durou uns segundos, garanto.
Depois saiu o veredicto, sincero, claro:
- Gorda não estás...
(este post inspira-se neste outro, que me enterneceu, que gostei tanto de ler)
Tudo isto para dizer que em Paris fui nova, linda, se fui, ninguém me avisou. Linda é em Lisboa que vou conseguir, como já expliquei com o parágrafo do frigorífico. No entanto, para ser linda depois de nova já não, necessito ocupar-me muito de mim, de forma que para poupar tempo que utilizarei a meu favor vou repostar (postar segunda vez) um dos textos que saíram na altura em que só eu lia este blogue, no qual se pode observar na verdade pura das crianças que de facto nova já não:
Eu ainda não tinha completado quatro décadas de idade. Estávamos as três a jantar, as minhas filhas adolescentes e eu. Elas sentadas à minha frente, do outro lado da mesa. Como gosto de as ouvir e de estimular a sua expressão de opiniões, iniciei uma conversa cujo tema já me fugiu, apesar de não terem passado muitas primaveras desde então. Porém recordo-me que desatei a utilizar tipo isto e tipo aquilo: "Hoje tipo o meu dia foi tipo bom e tipo o vosso?"
- Ó mãe, não gozes, não se diz tipo assim!
- Ah não? Então tipo como é que se diz?
- Sei lá, diz-se, pronto! Não dá para explicar...
- Explicar - continuo a divertir-me - ou tipo explicar?
- Ó mãããããee!!! (coro)
- Pronto, está bem. A mãe está velha e gorda...- rematei, para as deixar ganhar.
Dois pares de olhos bem abertos e sérios a fitarem-me, em jeito de avaliação. Os garfos pararam a meio dos trajetos verticais, cena congelada. Durou uns segundos, garanto.
Depois saiu o veredicto, sincero, claro:
- Gorda não estás...
(este post inspira-se neste outro, que me enterneceu, que gostei tanto de ler)
30/11/2015
Terça feira
Todas as terças feiras do último mês me viram sair de casa depois do jantar, meter-me no carro... não, afinal não viram, porque na garagem costuma estar escuro e eu gosto de fazer o corredor até ao meu carro às escuras enquanto penso que não tenho medo dos ratos imaginários como a minha vizinha do sétimo andar tem e ainda ensaio o andar da Charlize Theron no reclame de um perfume chamado J'adore (isto há anos) em que tudo é dourado e o vestido dela também e depois o vestido cai ao chão no fim daquele caminhar que eu imito mas sem a parte de deixar cair o vestido ao chão, o que me ia atrasar um bocado, além disso sujava-se um vestido tão lindo e para mais não sendo completamente certo não haver ali ratos.
Portanto todas as terças feiras, agora é que é, saio depois do jantar para ir a meio da cidade, ouvindo a música que o rádio está a passar na altura, por exemplo uma ária de Bach, sabe muito melhor ouvir uma ária de Bach quando não se está à espera de ouvir uma ária de Bach do que quando sabemos perfeitamente que foi esse o disco que pusemos a tocar, portanto é assim que vou e vou apanhar três jovens com idades para serem minhas filhas e uma delas por acaso é mesmo minha filha, ao treino de voleibol. Faço a distribuição tipo carreira da noite, ao princípio dava uma grande volta porque me enganava sempre no caminho e uma das mães começava a ligar e a filha dessa mãe a dizer lá atrás sim, mãe, estamos quase, quando ainda eu não estava nada quase, mas a miúda não devia saber. Pelo caminho uma tagarelice sobre os passes, os serviços, o treino, enfim, aqueles nomes técnicos ditos muito depressa (elas falam sempre todas ao mesmo tempo) enquanto eu mergulhada no Bach, é um casamento de mundos que vai bem pela avenida da república fora e eu nestes momentos sou feliz sem querer (a imitar a Charlize Theron também).
Há três viagens atrás aproveitei uma distração na tagarelice e ataquei: então digam-me lá, alguém aí atrás gosta de ler?
- Ó mãe não comeces... - diz a minha filha.
- Não - diz a Joana.
- Sim - diz a Sara.
Isto ao mesmo tempo, evidentemente.
Claro que a Sara e eu fizemos a despesa da conversa o resto desse caminho, a miúda leva um avanço interessante considerando a idade tenra que tem, é a minha tia, diz ela, dá-me muito livros. A conversa das leituras da Sara tem pontuado as viagens desde aí, sem no entanto abandonar a Joana à noite que passa lá fora ou a Bach.
- Porque não lês, Joana?
- Não sei... acho que é porque não tenho livros.
Hoje ao jantar fui informada de que a Joana começou a ler um livro, que está a adorar e que já leu mais de cinquenta páginas. Ora isto também é situação para me fazer feliz.
- E que livro é, filha?
- Não sei, mãe... não me lembro...
Não faz mal. Amanhã é terça feira.
Portanto todas as terças feiras, agora é que é, saio depois do jantar para ir a meio da cidade, ouvindo a música que o rádio está a passar na altura, por exemplo uma ária de Bach, sabe muito melhor ouvir uma ária de Bach quando não se está à espera de ouvir uma ária de Bach do que quando sabemos perfeitamente que foi esse o disco que pusemos a tocar, portanto é assim que vou e vou apanhar três jovens com idades para serem minhas filhas e uma delas por acaso é mesmo minha filha, ao treino de voleibol. Faço a distribuição tipo carreira da noite, ao princípio dava uma grande volta porque me enganava sempre no caminho e uma das mães começava a ligar e a filha dessa mãe a dizer lá atrás sim, mãe, estamos quase, quando ainda eu não estava nada quase, mas a miúda não devia saber. Pelo caminho uma tagarelice sobre os passes, os serviços, o treino, enfim, aqueles nomes técnicos ditos muito depressa (elas falam sempre todas ao mesmo tempo) enquanto eu mergulhada no Bach, é um casamento de mundos que vai bem pela avenida da república fora e eu nestes momentos sou feliz sem querer (a imitar a Charlize Theron também).
Há três viagens atrás aproveitei uma distração na tagarelice e ataquei: então digam-me lá, alguém aí atrás gosta de ler?
- Ó mãe não comeces... - diz a minha filha.
- Não - diz a Joana.
- Sim - diz a Sara.
Isto ao mesmo tempo, evidentemente.
Claro que a Sara e eu fizemos a despesa da conversa o resto desse caminho, a miúda leva um avanço interessante considerando a idade tenra que tem, é a minha tia, diz ela, dá-me muito livros. A conversa das leituras da Sara tem pontuado as viagens desde aí, sem no entanto abandonar a Joana à noite que passa lá fora ou a Bach.
- Porque não lês, Joana?
- Não sei... acho que é porque não tenho livros.
Hoje ao jantar fui informada de que a Joana começou a ler um livro, que está a adorar e que já leu mais de cinquenta páginas. Ora isto também é situação para me fazer feliz.
- E que livro é, filha?
- Não sei, mãe... não me lembro...
Não faz mal. Amanhã é terça feira.
28/11/2015
Um anjo no hospital (post do tamanho de um episódio)
Sentou-se na cadeira ao meu lado na sala de espera improvisada num corredor do hospital. No colo uma mala de pele vermelha, pele vermelha parece que quer dizer índia, mas quer dizer pele vermelha. Da mala retirou um pequeno livro que folheou antes de começar a ler. As folhas curvaram-se em grupo umas sobre as outras e sob a pressão do seu polegar, depois com o alívio do polegar deixaram-se cair na mesma sequência, de novo aplanadas: o som que fizeram as folhas transportou-me para as leituras que fiz nas revistas das seleções do reader's digest há mil anos ou, diria mais, há cem (esta parte lógica baseia-se numa tirada do Obélix, caso contrário eu não me teria metido nisto, evidentemente). Entretanto, ela começou a ler. O livro está escrito em francês, mas eu não consigo daqui ler nada de jeito, e até queria aproveitar porque estou precisada de treinar o francês, mas esticar-me não posso, estou torcida com a dor que aqui me trouxe hoje.
Ao fundo deste corredor feito sala de espera surge um médico que se vê mesmo que é um médico. Aproxima-se dela e diz-lhe em voz relativamente baixa, mas eu capturo tudo, que o meu português continua bom:
- Ela diz para lá ir buscar os iogurtes, tem iogurtes para si.
Depois o médico sacode a cabeça e fala de novo, perante a minha companheira de banco, que ainda não disse nada.
- Mas olhe... eu acho que ela está é nervosa.
- Obrigada - falou agora.
Na minha cabeça formou-se a cena. Esta rapariga cujo francês é melhor que o meu e tem uma mala de pele vermelha está a acompanhar uma doente que tem iogurtes para ela e que não está aqui. Satisfeita com a minha própria dedução, encosto a cabeça na parede atrás de nós e tento relaxar, controlar a dor. De vez em quando a leitora do livro em francês solta uma pequena risada e nunca mais vai buscar os iogurtes. Eu um iogurte até ia, que já não como há imensas horas (não vou repetir a lógica do Obélix para não cansar, mas apetecia-me devido a estar radiante por afinal não ter tido uma faca cirúrgica do tipo bisturi a abrir-me a barriga hoje mesmo) claro que gosto das risadas da minha vizinha, mas fico quieta e continuo sem meter conversa, quero atentar às chamadas dos nomes, o meu há de surgir muito distorcido no altifalante e eu temo não o compreender, apesar de vir em português.
De repente ouve-se uma barulheira vinda do fundo do corredor de onde surgiu há pouco o médico, uma mulher com idade para ser minha mãe e de certeza avó (ou mesmo mãe, ai lá escapou) da rapariga do livro em francês, vem agarrada a um funcionário do hospital que tenta acalmá-la, calma, calma, já vamos, calma, e ela não se acalma, ó Cristina!, Cristina!, onde estás Cristina?, tenho aqui os iogurtes para ti, ó Cristinaaaa!
O rapaz que a acompanha condu-la ao assento vago do outro lado da Cristina, que fechou o livro e está a olhar para eles. A mulher senta-se pesadamente, traz um tubo enfiado na mão, diz que não vê nada, ó Cristinaaaa!!, diz, não, grita, grita que não vê nada, enquanto mete a mão com o tubo dentro da mala cuja cor já não me lembro qual era e procura os iogurtes, Cristina!, tu não comeste nada para vires para aqui comigo e eu estou preocupada, come os iogurtes! (os pontos de exclamação vêm com os gritos).
- Leonor, eu não quero iogurtes - afinal não se trata de mãe e filha (digo eu) nem avó e neta.
- Sim, queres, vais comer os iogurtes!!! Tu não comeste nada, Cristina!!! Eu trouxe-os a pensar em ti!!! - a mão continua dentro da mala e os gritos fora, por todo o lado, eu nesta fase já me tornei admiradora da Cristina.
De repente surgem de dentro da mala cuja cor me escapou, duas embalagens de gelatina de morango pronta a comer no caso de se ter uma colher.
- Isso não são iogurtes - a Cristina pôs em palavras o meu pensamento.
- Não são iogurtes?!
- Não - não tenho a certeza se foi só a Cristina ou se eu também articulei este não.
Mas ela não se fez rogada, espetou com as duas embalagens de gelatina e de secção quadrada, agarradas por um lado no topo, quem já foi ao supermercado e ainda não se fartou deste post de grandes dimensões está mesmo a ver como é, espetou com elas, dizia, em cima do casaco da Cristina, dobrado no seu colo,onde também está a mala de pele vermelha. Não tenho fome, diz a Cristina, come!, tens de comer!, grita a Leonor, mas isso não mata a fome de ninguém, penso eu.
- Está bem. Mas não posso comer isto assim, tens uma colher, Leonor?
A Leonor tem duas e volta com a mão entubada para dentro da mala, sem nunca parar de gritar - toda a sala de espera está, obviamente, a acompanhar, mas creio que mais ninguém tira notas (que são mentais, por causa da dor que tenho). Saem as colheres semi-embrulhadas num pedaço de papel com muito mau aspeto, uma delas está limpa!, grita Leonor, vê lá qual é, Cristina! E os seus dedos esfregam as colheres a ver qual delas é a limpa, o processo dá-lhe tempo de gritar que o médico foi um mal educado!, não, Leonor, o médico teve mesmo muita paciência, paciência?! com aquele tom?!, sim, dificilmente arranjas outro tão paciente. E continua: não tenho fome, Leonor, deixa estar. Nesta altura nota que o seu casaco está sujo, uma das embalagens está a verter gelatina derretida, olha, já me sujou o casaco. E limpa-o com a mão e com muita paciência.
- Então deita isso no lixo, pronto!
O altifalante diz o meu nome seguido de gabinete cinco. Já não vi se as gelatinas foram para o lixo, mas não foi preciso. Bastou-me trazer do hospital a certeza de que os anjos existem e de que foi por ter estado sentada ao lado de um, que a dor se foi embora e a minha barriga chegou a casa inteira.
Ao fundo deste corredor feito sala de espera surge um médico que se vê mesmo que é um médico. Aproxima-se dela e diz-lhe em voz relativamente baixa, mas eu capturo tudo, que o meu português continua bom:
- Ela diz para lá ir buscar os iogurtes, tem iogurtes para si.
Depois o médico sacode a cabeça e fala de novo, perante a minha companheira de banco, que ainda não disse nada.
- Mas olhe... eu acho que ela está é nervosa.
- Obrigada - falou agora.
Na minha cabeça formou-se a cena. Esta rapariga cujo francês é melhor que o meu e tem uma mala de pele vermelha está a acompanhar uma doente que tem iogurtes para ela e que não está aqui. Satisfeita com a minha própria dedução, encosto a cabeça na parede atrás de nós e tento relaxar, controlar a dor. De vez em quando a leitora do livro em francês solta uma pequena risada e nunca mais vai buscar os iogurtes. Eu um iogurte até ia, que já não como há imensas horas (não vou repetir a lógica do Obélix para não cansar, mas apetecia-me devido a estar radiante por afinal não ter tido uma faca cirúrgica do tipo bisturi a abrir-me a barriga hoje mesmo) claro que gosto das risadas da minha vizinha, mas fico quieta e continuo sem meter conversa, quero atentar às chamadas dos nomes, o meu há de surgir muito distorcido no altifalante e eu temo não o compreender, apesar de vir em português.
De repente ouve-se uma barulheira vinda do fundo do corredor de onde surgiu há pouco o médico, uma mulher com idade para ser minha mãe e de certeza avó (ou mesmo mãe, ai lá escapou) da rapariga do livro em francês, vem agarrada a um funcionário do hospital que tenta acalmá-la, calma, calma, já vamos, calma, e ela não se acalma, ó Cristina!, Cristina!, onde estás Cristina?, tenho aqui os iogurtes para ti, ó Cristinaaaa!
O rapaz que a acompanha condu-la ao assento vago do outro lado da Cristina, que fechou o livro e está a olhar para eles. A mulher senta-se pesadamente, traz um tubo enfiado na mão, diz que não vê nada, ó Cristinaaaa!!, diz, não, grita, grita que não vê nada, enquanto mete a mão com o tubo dentro da mala cuja cor já não me lembro qual era e procura os iogurtes, Cristina!, tu não comeste nada para vires para aqui comigo e eu estou preocupada, come os iogurtes! (os pontos de exclamação vêm com os gritos).
- Leonor, eu não quero iogurtes - afinal não se trata de mãe e filha (digo eu) nem avó e neta.
- Sim, queres, vais comer os iogurtes!!! Tu não comeste nada, Cristina!!! Eu trouxe-os a pensar em ti!!! - a mão continua dentro da mala e os gritos fora, por todo o lado, eu nesta fase já me tornei admiradora da Cristina.
De repente surgem de dentro da mala cuja cor me escapou, duas embalagens de gelatina de morango pronta a comer no caso de se ter uma colher.
- Isso não são iogurtes - a Cristina pôs em palavras o meu pensamento.
- Não são iogurtes?!
- Não - não tenho a certeza se foi só a Cristina ou se eu também articulei este não.
Mas ela não se fez rogada, espetou com as duas embalagens de gelatina e de secção quadrada, agarradas por um lado no topo, quem já foi ao supermercado e ainda não se fartou deste post de grandes dimensões está mesmo a ver como é, espetou com elas, dizia, em cima do casaco da Cristina, dobrado no seu colo,onde também está a mala de pele vermelha. Não tenho fome, diz a Cristina, come!, tens de comer!, grita a Leonor, mas isso não mata a fome de ninguém, penso eu.
- Está bem. Mas não posso comer isto assim, tens uma colher, Leonor?
A Leonor tem duas e volta com a mão entubada para dentro da mala, sem nunca parar de gritar - toda a sala de espera está, obviamente, a acompanhar, mas creio que mais ninguém tira notas (que são mentais, por causa da dor que tenho). Saem as colheres semi-embrulhadas num pedaço de papel com muito mau aspeto, uma delas está limpa!, grita Leonor, vê lá qual é, Cristina! E os seus dedos esfregam as colheres a ver qual delas é a limpa, o processo dá-lhe tempo de gritar que o médico foi um mal educado!, não, Leonor, o médico teve mesmo muita paciência, paciência?! com aquele tom?!, sim, dificilmente arranjas outro tão paciente. E continua: não tenho fome, Leonor, deixa estar. Nesta altura nota que o seu casaco está sujo, uma das embalagens está a verter gelatina derretida, olha, já me sujou o casaco. E limpa-o com a mão e com muita paciência.
- Então deita isso no lixo, pronto!
O altifalante diz o meu nome seguido de gabinete cinco. Já não vi se as gelatinas foram para o lixo, mas não foi preciso. Bastou-me trazer do hospital a certeza de que os anjos existem e de que foi por ter estado sentada ao lado de um, que a dor se foi embora e a minha barriga chegou a casa inteira.
24/11/2015
Post relativamente parvo, porém necessário
Não consegui
decidir qual a árvore mais bela de toda a avenida dom joão segundo à hora do almoço,
vou até dizer que se tratou aquilo de um orgasmo visual, tipo mesmo em grande.
No fim da alameda, eu já ia relativamente cansada de me forçar a desviar o olhar das
laterais arborizadas para não embater nos carros da frente quando, como se não bastasse tanto, apresenta-se-me um grupo de seis à direita, as
copas grandes de um verde escuro à excepção de uma mão cheiinha de folhas novas
de um verde claro, alinhadas duas a duas, as árvores frondosas, e com um tal entrelaçado de troncos
que faz lembrar notas de uma música antiga, perfeitamente habilitadas – digo eu – a fazer o olho de qualquer máquina fotográfica chorar de alegria, incorporada em telemóvel ou independentemente disso. Digo chorar de alegria para não
repetir a metáfora do orgasmo visual, o que, se formos bem a ver as coisas, não traz
grande diferença.
A dona Esmeralda
perguntou-me hoje à tarde, a meio do corredor, ao ver-me de mão na barriga, a minha mão foi estacionar-me na barriga sem
eu a mandar propriamente, perguntou-me ela então, não sem um certo entusiasmo no olhar, por cima dos seus óculos dourados, se
eu não estou por acaso de bebé: não está por acaso de bebé?... Está de se ver que não sabe ela a minha idade, mas eu, ai foi tão
bom ouvir aquilo, tão bom, que fingi não perceber, diga diga, dona Esmeralda, estou quê? só para ela repetir a pergunta,
assim em voz baixa e com a cabeça mais próxima de mim do que estaria se me perguntasse que horas são.
- Não, dona Esmeralda, não estou de bebé.
- Não, dona Esmeralda, não estou de bebé.
Mas que me deu
vontade de estar, ah deu. Era da maneira que não pensava no novo governo, nem no avião militar russo abatido, não pensava no presidente nem nos ministros nem nos atentados que não me canso de incompreender, nem sequer nos refugiados, não pensava em coisa
nenhuma que me afligisse porque quando estamos de bebé, temos incorporados filtros muito bons. De forma que recomendo, para quem ainda puder.
É que acima de tudo, já agora, este nosso mundo precisa de mais gente boa. E nós, a gente boa, de podermos continuar a apreciar as belezas do nosso caminho. Em paz e de bebé na barriga. Ou não.
Tikka masala
Saio de casa tentando refazer mentalmente o caminho para a garagem onde levo o carro uma vez por ano à manutenção, normalmente engano-me (hoje também). Já dentro do grande hangar onde penso sempre que não me importava de trabalhar, espero uns minutos enquanto outros clientes que entregam carros da marca do meu - detalhe que sempre me faz sentir ligeiramente irmã daquelas pessoas - contam coisas. Ao chegar a minha vez - quem está a seguir, estou eu - sou informada de que precisamos de dois pneus novos e mais algumas coisas específicas para automóveis. Os de trás estão bons, perguntei, os de trás estão bons, ouvi. Respirei um pouco de alívio e foi quando me ofereceram um carro novo, um motor isto, uma tecnologia aquilo (as voltas que uma pessoa dá para não dizer que carro é este), muito interessante, para eu experimentar, a única coisa que lhe pedimos, minha senhora, é que preencha este pequeno questionário e nos diga a sua opinião sobre o carro no final do dia, quer, quero. Fui, no caminho para o trabalho (nesse nunca me perco), a ser conquistada sem hesitação e, posso mesmo dizer, à maluca - a tal ponto que quase me resvala a vontade para pensamentos completamente fora da caixa - pelo carrinho de pequenas dimensões, mas que giro é o carro. Ou seja, chego ao trabalho muito bem disposta sem querer, acho impossível não ser conquistada por um carro novo, afinal deve ser tão somente isso, seja lá ele que carro for, os estofos desportivos, os pespontos brancos e grossos, o volante todo ergonómico, o azulinho daqui e dali, o rádio na TSF, que rico carrinho, a câmara de estacionamento que me mostra linhas no pavimento e me confunde a manobra, mas isso o problema é meu, evidentemente.
O dia de trabalho fechou em queda (deixei cair uma caixa pesada ao chão ao tentar abrir uma porta estúpida que nem ela, a maçaneta polida sem querer rodar, a caixa a escorregar-me dos braços com equipamentos caros dentro, um deles... ai) portanto saltamos esta parte.
No final do dia, antes de me atirar para o fogão, em casa, a fazer o jantar, e depois de ter entregado o carro que de manhã me conquistou tanto e por mim esperou estacionado o dia inteiro, toda aquela tecnologia ali e eu nada, depois de preenchido o questionário sobre a minha opinião e trazido o meu com dois pneus novos e mais umas peças próprias para carros, já tinha dito, e agora está o período a ficar grande, passei no supermercado. Na caixa, arrumei as compras nos sacos à velocidade mais alta que consegui, quero ir para casa. Duas maçãs reinetas saltaram para fora do saco em que as meti, rolaram para o chão e eu fui atrás delas. Apanhei uma de cada vez enquanto a empregada me anunciava os sessenta euros que eu devia pagar, e meti-as num outro saco. Ouvi então alguém dizer olá e percebi que já era um segundo olá. A mãe de um amigo da minha filha ali na caixa também, a sorrir de me ver de rabo para o ar atrás das maçãs, eu sei bem ler sorrisos, como está, estou bem, trocámos os beijos, ela trazia o cabelo bonito e eu perguntei-lhe pelo filho, se está a gostar do curso, o miúdo entrou na universidade e estuda precisamente o mesmo que eu estudei, que belos tempos foram aqueles, pago as maçãs reinetas e o resto, suspiro, volto para os pneus novinhos em folha com pedacinhos de borracha espetados para fora e vamos para casa.
Inventei tudo, claro. Um prato indiano que levou uma tikka masala pré-preparada e pedaços de uma das maçãs reinetas, metade de um pimento vermelho, frango aos bocadinhos e alho francês, cebola e sementes de mostarda, folhas de caril e quando invento sai bom. Depois de arrumar a cozinha, sentei-me a escrever. Tinha de contar do carrinho novo que hoje foi meu por vinte quilómetros. E a escrever eu não invento. Nota-se.
O dia de trabalho fechou em queda (deixei cair uma caixa pesada ao chão ao tentar abrir uma porta estúpida que nem ela, a maçaneta polida sem querer rodar, a caixa a escorregar-me dos braços com equipamentos caros dentro, um deles... ai) portanto saltamos esta parte.
No final do dia, antes de me atirar para o fogão, em casa, a fazer o jantar, e depois de ter entregado o carro que de manhã me conquistou tanto e por mim esperou estacionado o dia inteiro, toda aquela tecnologia ali e eu nada, depois de preenchido o questionário sobre a minha opinião e trazido o meu com dois pneus novos e mais umas peças próprias para carros, já tinha dito, e agora está o período a ficar grande, passei no supermercado. Na caixa, arrumei as compras nos sacos à velocidade mais alta que consegui, quero ir para casa. Duas maçãs reinetas saltaram para fora do saco em que as meti, rolaram para o chão e eu fui atrás delas. Apanhei uma de cada vez enquanto a empregada me anunciava os sessenta euros que eu devia pagar, e meti-as num outro saco. Ouvi então alguém dizer olá e percebi que já era um segundo olá. A mãe de um amigo da minha filha ali na caixa também, a sorrir de me ver de rabo para o ar atrás das maçãs, eu sei bem ler sorrisos, como está, estou bem, trocámos os beijos, ela trazia o cabelo bonito e eu perguntei-lhe pelo filho, se está a gostar do curso, o miúdo entrou na universidade e estuda precisamente o mesmo que eu estudei, que belos tempos foram aqueles, pago as maçãs reinetas e o resto, suspiro, volto para os pneus novinhos em folha com pedacinhos de borracha espetados para fora e vamos para casa.
Inventei tudo, claro. Um prato indiano que levou uma tikka masala pré-preparada e pedaços de uma das maçãs reinetas, metade de um pimento vermelho, frango aos bocadinhos e alho francês, cebola e sementes de mostarda, folhas de caril e quando invento sai bom. Depois de arrumar a cozinha, sentei-me a escrever. Tinha de contar do carrinho novo que hoje foi meu por vinte quilómetros. E a escrever eu não invento. Nota-se.
18/11/2015
Isto tinha sido ontem, mas não quis fazer dois posts no mesmo dia
O chili que
sobrou do jantar passou a noite em cima do fogão desligado de propósito. Pela manhã estava o
tacho aflitinho para o levar ao frigorífico passar o resto do dia muito fresco.
À hora do almoço já o meu chili livre de quenturas mas não de frescuras, e diz-me na cantina a dona Esmeralda quer sopa? hoje não obrigada, então não
tem fome, não tenho fome. Resposta perante a qual - reparar bem nesta maravilha que me aconteceu - ela me questiona, evidentemente.
- Mata-bichou tarde, foi?
- Mata-bichou tarde, foi?
Pausa feita por mim neste momento.
- Mata-quê, dona Esmeralda?
- Se mata-bichou tarde, menina. – a dona Esmeralda já não me trata por menina mas eu nem sempre encaro as verdades de frente se não forem muito lindas – não conhece a expressão?
- Mata-quê, dona Esmeralda?
- Se mata-bichou tarde, menina. – a dona Esmeralda já não me trata por menina mas eu nem sempre encaro as verdades de frente se não forem muito lindas – não conhece a expressão?
Ela já está toda satisfeita a olhar-me trocista por cima dos seus óculos conhecidos de ginjeira em toda a Lisboa e Vale do Tejo, gosto imenso de dizer Lisboa e Vale do Tejo, e
já me apanhou na curva do tabuleiro que seguro nas mãos, desta vez ganha ela.
- Não, não conhecia o verbo mata-bichar. É um verbo interessante na medida em que a parte que se conjuga é aquela que a solo não é verbo nenhum e vice versa mas isto claro que eu não lhe disse, antes levei o pensamento assim encadeado no tabuleiro sem sopa para a mesa e sentei-me com a elegância que me apeteceu. O que eu disse ao sentar-me com a elegância que me apeteceu foi é muito giro esse verbo, dona Esmeralda.
- Não, não conhecia o verbo mata-bichar. É um verbo interessante na medida em que a parte que se conjuga é aquela que a solo não é verbo nenhum e vice versa mas isto claro que eu não lhe disse, antes levei o pensamento assim encadeado no tabuleiro sem sopa para a mesa e sentei-me com a elegância que me apeteceu. O que eu disse ao sentar-me com a elegância que me apeteceu foi é muito giro esse verbo, dona Esmeralda.
Tão giro que
nessa tarde, ao fazer a escolha do almoço da semana seguinte, lá no trabalho somos muito
organizados nessa matéria, quase me fugiu a caneta e pus a cruz da terça feira no
ensopado de borrego para impressionar a Carla, que me afiança há anos vai para
décadas que o ensopado de borrego da nossa cantina é uma maravilha (e a Carla é boa cozinheira, dizem), uma maravilha ou muito bom, depende dos dias, mas ela garante. Eu cá borrego nunca comi, toda a gente sabe isso, não precisamos de ir à minha mãe perguntar, bastou-me cheirar uma vez a panela ao lume tinha eu uns sete anos, fugi. Portanto não, desviei a caneta e votei no prato da dieta como convém às gordas e depois fui para casa tarde e pensei que podia muito bem deixar de ser esquisita, talvez os borregos de hoje sejam mais suaves no cheiro da cozedura, e ia e provava o ensopado
para depois contar como ficou admirada a Carla ao observar-me a mim e ao borrego e assim fazer um post como deve ser.
(o chili continua no frigorífico - uma das colegas mais inteligentes que tive em toda a minha vida tinha a palavra frigorífico como password do computador, por isso de vez em quando ocorre-me dar notícias frescas)
(o chili continua no frigorífico - uma das colegas mais inteligentes que tive em toda a minha vida tinha a palavra frigorífico como password do computador, por isso de vez em quando ocorre-me dar notícias frescas)
17/11/2015
Ser um pouco aqui
Não sou flor nem sou porta. Não sou pássaro (mas aprenderei a voar), não um autocarro. Estou fora de tudo o que não sou. O interstício inteiro de o não eu é que sou. Ocupo no universo um nada de poucos litros (alguns a mais). O não ser é maior do que o ser. Em mim e em ti a maioria do ser, o não ser.
Porém o pouco que fiz, o que dei, quando te abracei, de meus braços saiu, com estas mãos, estes lábios te beijei, te vibrei, com os parcos litros de universo que sou te fiz. Não foi o quê? não foi a flor nem a porta, não o pássaro (que aprendeu a voar) ou o autocarro.
Antes ser um pouco aqui que muitos ali.
(não votarei em candidatos à presidência da república que dizem que estão contra, que é preciso destruir e que não são isto nem são aquilo, não são, e o que são não dizem)
Porém o pouco que fiz, o que dei, quando te abracei, de meus braços saiu, com estas mãos, estes lábios te beijei, te vibrei, com os parcos litros de universo que sou te fiz. Não foi o quê? não foi a flor nem a porta, não o pássaro (que aprendeu a voar) ou o autocarro.
Antes ser um pouco aqui que muitos ali.
(não votarei em candidatos à presidência da república que dizem que estão contra, que é preciso destruir e que não são isto nem são aquilo, não são, e o que são não dizem)
15/11/2015
Amor à vida
Enquanto espero pelo embarque, o voo está atrasado, penso em poesia. Penso, sentada entre desconhecidos, que cada poema é um ser único, existe desde antes de ser escrito. Tem um nome, um determinado número de sílabas, o seu próprio adn, tem alma. E aguarda pelo seu poeta. No botão de uma rosa, num oco de uma árvore morta, no aroma do pão a cozer, numa sombra de luar, no voo da águia, num acorde musical ou no contorno de um cacho de uvas. Depois vem a brisa e leva-o. Transporta-o no seu torso até junto do poeta que o poema designou seu. Sem saber que foi escolhido, o poeta faz uma sílaba, depois outra, põe-lhe uma vírgula, uma rima, dá-lhe uma melodia até que o poema ganhe um corpo inteiro, torna-se autónomo.
Quando finalmente começa o embarque, fecho o pensamento e vagueio com o olhar pelos meus vizinhos: os dois homens que me passam à frente na fila sorrateiramente e eu deixo, a mulher jovem de cabelo cor de laranja que fala inglês alegremente com um homem de cabelo louro, muito comprido. Ela tem dentes bonitos e lembra-me a Cláudia, minha amiga de infância segundo a qual, aos oito anos, eu fazia muitas perguntas.
Logo após aterrar em Eindhoven, ainda dentro do aeroporto, passa por mim alguém que ao telefone comenta, em tom de urgência, qualquer coisa sobre o presidente francês. Os horrendos ataques em Paris tinham acabado de ocorrer.
Hoje continuo a fazer muitas perguntas, faço aliás cada vez mais. Pergunto, por exemplo, que tipo de seres são estes que, em vez de amor à vida, têm-no à morte, à deles e à dos outros.
Quando finalmente começa o embarque, fecho o pensamento e vagueio com o olhar pelos meus vizinhos: os dois homens que me passam à frente na fila sorrateiramente e eu deixo, a mulher jovem de cabelo cor de laranja que fala inglês alegremente com um homem de cabelo louro, muito comprido. Ela tem dentes bonitos e lembra-me a Cláudia, minha amiga de infância segundo a qual, aos oito anos, eu fazia muitas perguntas.
Logo após aterrar em Eindhoven, ainda dentro do aeroporto, passa por mim alguém que ao telefone comenta, em tom de urgência, qualquer coisa sobre o presidente francês. Os horrendos ataques em Paris tinham acabado de ocorrer.
Hoje continuo a fazer muitas perguntas, faço aliás cada vez mais. Pergunto, por exemplo, que tipo de seres são estes que, em vez de amor à vida, têm-no à morte, à deles e à dos outros.
13/11/2015
Imperfeitamente
Saí do tempo, das flores.
Nas mãos elas, antes minhas.
Eu no coração. Vivo.
Ontem, hoje não.
Ontem, hoje não.
Que é cinza, o ar.
Que do rio subiu.
Que do rio subiu.
Um edifício e
outro.
E outro engoliu.
E outro engoliu.
Nevoeiro então.
De mim: perdida eu.
Mas nele não. Em ti.
As flores? Não as colhi.
De mim: perdida eu.
Mas nele não. Em ti.
As flores? Não as colhi.
11/11/2015
Não sonhei com Porsches de cor nenhuma (mas parece, por causa do outono)
Tornei a tirar as meias. E a gola alta. O cachecol. Aliás os cachecóis, um calorão. Acordo de noite a transpirar devido ao verão que não dorme nem aí. Daqui a pouco quero ir à praia, no verão-verão falhei todos os dias menos um (a praia) e isso pareceu-me impossível, mas não foi, foi só triste porque fiquei branca-amarelada. Não vejo golfinhos desde dois mil e sete, adorava ver golfinhos desde dois mil e sete. Vi pirilampos, imensos, pois vi, acho que posso dizer milhões ou milhares. De milhões. Vi três javalis bebés (adoro a palavra bebé e bebés adoro também) a atravessar a estrada sozinhos e os faróis do meu carro mostraram que bem penteados eles estavam, um pelo brilhante todos três (extremosa mãe). Apanhei amoras com sobrinhos pequenos e um deles queria apanhar a lua, já contei isto três vezes mas o miúdo é demais, encanta-me e encanta toda a gente aquele miúdo. Mostrei-lhe uma mosca no microscópio e ele adorou ver a mosca, mas da primeira vez deu um salto para trás e disse que gaandes!!! por causa dos olhos da mosca e por falar em olhos, eu cada vez gosto mais das cores, tem sido até que os olhos me doam, com certeza é da idade e dos óculos de ver ao perto que agora tem de ser e por acaso vou comprar mais e uma agenda para dois mil e dezasseis também. Engordei dois quilos e meio desde há um ano disse-me a médica e essa parte não me agrada nada, mas hoje havia molotof na cantina e eu vinguei-me e comi molotof na cantina, mas vinguei-me não sei de quê, e agora aproveito para dizer que a vingança é a coisa mais feia de todas e a inveja a segunda mais feia. Ontem fui almoçar com uma filha das duas que tenho tão lindas as minhas filhas, e fui para repor os níveis de alegria à hora do trabalho e repus os níveis de alegria, até os ultrapassei quando parámos ao lado da montra da Porsche e a minha filha me diz os nomes que deu aos quatro carros que estão lá dentro a brilhar há que tempos sem parar, mas estão parados, porque passa por eles todos os dias a caminho da escola e portanto vai de lhes dar nomes, eu não sabia que ela gostava tanto de Porsches, carros absolutamente inúteis de dentro dos quais normalmente saem homens feios, aliás o problema dos homens é acharem que o carro que guiam se for bonito estão safos, não estão, que quando saem de dentro dele o contraste até valha-me deus ai jesus, o melhor era voltar lá para dentro se faz favor num instante. Uma pena os homens pensarem que têm de ser bonitos, o melhor era pensarem noutra coisa mais útil como aspirar a casa ou ir às compras que ficam logo mais bonitos, imprescindível vibrarem com alguma coisa, isso é preciso ser dito, pelo menos uma, acreditarem no seu coração e rirem quando é para rir e ouvirem quando é para ouvir e não terem a mania que sabem tudo e não se porem com paternalismos que ninguém pediu e nunca dizerem as mulheres não sei quê como se nós fôssemos todas iguais, mas se no fim souberem que nas escadas vão eles à frente, tanto a subir como a descer, então está bem, ok, venha lá o Porsche então.
(é que o outono é a minha estação preferida e o verão está a irritar-me porque não sai de cima, portanto o post deu nisto)
(é que o outono é a minha estação preferida e o verão está a irritar-me porque não sai de cima, portanto o post deu nisto)
Clara
Quando quero lá ir à loja, guardo mais tempo do que o necessário às compras, pode ser preciso. Desta vez foi.
Aproximo-me da porta e através do vidro da montra vejo a empregada em cima do escadote a alimentar as prateleiras mais altas com camisolas dobradas. Nunca a tinha visto em cima do escadote, pareceu-me um bom sinal, entrámos, o meu sorriso e eu, olá. Ela olha para mim com uma expressão estéril, pousa as camisolas na prateleira e começa a descer os degraus, agora vejo que está a chorar.
- Então?... - normalmente, quando chora, começa já eu estou lá dentro, já lhe perguntei como vai a vida, não posso fingir que me esqueço, se entrei tenho de perguntar.
Então?... repito. Cumprimentamo-nos com dois beijinhos, ela molha-me a cara com as lágrimas, limpa-as às costas da mão, desculpe querida, já há tanto tempo que não chorava, e agarra-me no braço, esqueço-me sempre do seu nome. Susana. Isso, Susana, desculpe, é que eu não chorava há muito tempo, sabe? por causa dos comprimidos, e agora olhe, é isto. As lágrimas continuam a escorrer embora ela esteja a tentar sorrir para mim. Esfrega a cara com uma mão, depois com a outra, é o meu filho.
Eu sobressalto-me - que de todas as desgraças nos livre deus os nossos filhos - mas ela já está a explicar, partiu o tablet ontem, com a raiva, irritou-se e partiu-o. E eu ainda só paguei a primeira prestação, comprei-lhe o tablet para ele ficar feliz, sabe? a gente faz tudo pelos filhos, e nem estava caro, oitenta euros não achei caro, mas tem de ser a prestações que eu daqui não levo quase nada e do outro trabalho também não, e há a luz para pagar e a renda, sabe como é querida, as contas, e eu disse-lhe, ó filho, a mãe ainda nem pagou o tablet e tu já o partiste. E depois, querida, Clara continua a falar sem parar de chorar, e depois, agarrou-se ao meu telemóvel e também se irritou, atirou-o ao chão, partiu-me o vidro do telemóvel.
- Que idade tem ele agora, Clara? - eu nunca me esqueço do nome dela, que não é este, mas Clara ficar-lhe-ia bem, talvez lhe desse uma vida melhor, Clara é um nome tão lindo.
- Tem oito. Mas está violento, como o pai, ele assistia ao que o pai me fazia, querida, já lhe contei, não já?
Já, já me contou. E continua a contar-me agora, o rol de fracassos, de tristezas, de desesperanças, chego a casa às dez da noite, tão cansada, vou buscá-lo à ama, não faz os trabalhos da escola, o pai não quer saber dele, mas também, se for para lhe bater é melhor assim, as lágrimas a cair, há tanto tempo que eu não chorava querida, por causa dos comprimidos (querida sou eu mas também as outras clientes da loja, quando as há) e agora partiu o tablet, nem entrada dei, oitenta euros, e eu queria ver o meu filho feliz, mas ele irrita-se com tudo, é dos comprimidos, ele também os toma, querida, não sei o que fazer, eu também tive uma infância muito má e acho que a gente carrega a infância toda a vida, não acha?... eu nem devo ser uma boa mãe, de certeza que não sou.
Clara, oiça, mesmo depois das dez da noite, leia uma história ao seu filho, na cama, antes de ele dormir. Cinco minutos, dez, mesmo que esteja a cair de cansada, faça isso, experimente. Tem livros de histórias lá em casa? tem, isso tem. Então experimente. E no seu dia de folga faça um programa com ele, só os dois. Arrisquei: as crianças precisam de ter coisas boas no horizonte próximo, motiva-as para o resto, um momento diário bom, a história ao fim do dia, se possível um programa semanal com a mãe, ele vai sentir-se mais calmo, vai ver.
- E daqui a alguns dias passo por cá a saber como correu. Promete que experimenta?
Ela prometeu e eu saí da loja mais de uma hora depois de ter entrado, com as minhas compras no saco e a esperança ténue de que pelo menos um livro de histórias seja aberto e faça aquilo para que foi criado: dar aconchego a uma criança e fazê-la sentir o arrepio de prazer que na infância nos percorre a espinha quando estamos no calor da nossa mãe.
Aproximo-me da porta e através do vidro da montra vejo a empregada em cima do escadote a alimentar as prateleiras mais altas com camisolas dobradas. Nunca a tinha visto em cima do escadote, pareceu-me um bom sinal, entrámos, o meu sorriso e eu, olá. Ela olha para mim com uma expressão estéril, pousa as camisolas na prateleira e começa a descer os degraus, agora vejo que está a chorar.
- Então?... - normalmente, quando chora, começa já eu estou lá dentro, já lhe perguntei como vai a vida, não posso fingir que me esqueço, se entrei tenho de perguntar.
Então?... repito. Cumprimentamo-nos com dois beijinhos, ela molha-me a cara com as lágrimas, limpa-as às costas da mão, desculpe querida, já há tanto tempo que não chorava, e agarra-me no braço, esqueço-me sempre do seu nome. Susana. Isso, Susana, desculpe, é que eu não chorava há muito tempo, sabe? por causa dos comprimidos, e agora olhe, é isto. As lágrimas continuam a escorrer embora ela esteja a tentar sorrir para mim. Esfrega a cara com uma mão, depois com a outra, é o meu filho.
Eu sobressalto-me - que de todas as desgraças nos livre deus os nossos filhos - mas ela já está a explicar, partiu o tablet ontem, com a raiva, irritou-se e partiu-o. E eu ainda só paguei a primeira prestação, comprei-lhe o tablet para ele ficar feliz, sabe? a gente faz tudo pelos filhos, e nem estava caro, oitenta euros não achei caro, mas tem de ser a prestações que eu daqui não levo quase nada e do outro trabalho também não, e há a luz para pagar e a renda, sabe como é querida, as contas, e eu disse-lhe, ó filho, a mãe ainda nem pagou o tablet e tu já o partiste. E depois, querida, Clara continua a falar sem parar de chorar, e depois, agarrou-se ao meu telemóvel e também se irritou, atirou-o ao chão, partiu-me o vidro do telemóvel.
- Que idade tem ele agora, Clara? - eu nunca me esqueço do nome dela, que não é este, mas Clara ficar-lhe-ia bem, talvez lhe desse uma vida melhor, Clara é um nome tão lindo.
- Tem oito. Mas está violento, como o pai, ele assistia ao que o pai me fazia, querida, já lhe contei, não já?
Já, já me contou. E continua a contar-me agora, o rol de fracassos, de tristezas, de desesperanças, chego a casa às dez da noite, tão cansada, vou buscá-lo à ama, não faz os trabalhos da escola, o pai não quer saber dele, mas também, se for para lhe bater é melhor assim, as lágrimas a cair, há tanto tempo que eu não chorava querida, por causa dos comprimidos (querida sou eu mas também as outras clientes da loja, quando as há) e agora partiu o tablet, nem entrada dei, oitenta euros, e eu queria ver o meu filho feliz, mas ele irrita-se com tudo, é dos comprimidos, ele também os toma, querida, não sei o que fazer, eu também tive uma infância muito má e acho que a gente carrega a infância toda a vida, não acha?... eu nem devo ser uma boa mãe, de certeza que não sou.
Clara, oiça, mesmo depois das dez da noite, leia uma história ao seu filho, na cama, antes de ele dormir. Cinco minutos, dez, mesmo que esteja a cair de cansada, faça isso, experimente. Tem livros de histórias lá em casa? tem, isso tem. Então experimente. E no seu dia de folga faça um programa com ele, só os dois. Arrisquei: as crianças precisam de ter coisas boas no horizonte próximo, motiva-as para o resto, um momento diário bom, a história ao fim do dia, se possível um programa semanal com a mãe, ele vai sentir-se mais calmo, vai ver.
- E daqui a alguns dias passo por cá a saber como correu. Promete que experimenta?
Ela prometeu e eu saí da loja mais de uma hora depois de ter entrado, com as minhas compras no saco e a esperança ténue de que pelo menos um livro de histórias seja aberto e faça aquilo para que foi criado: dar aconchego a uma criança e fazê-la sentir o arrepio de prazer que na infância nos percorre a espinha quando estamos no calor da nossa mãe.
08/11/2015
Natal de 2038
A passos tantos da descida da avenida da liberdade, mudou o dia, é domingo. A peça que vai no Tivoli terminou há dez minutos ou quinze e eu interrompi os comentários que acerca dela tecíamos, estaquei junto à montra de uma loja, parei as minhas filhas e disse.
- Esta loja é um dos exemplos de que falávamos - tinham-me perguntado horas antes qual a rua em Lisboa com lojas mais caras.
Na montra, o manequim exibe um casaco de fazenda (também pode ser caxemira, admito) em tons outonais, castanho-pastel, padrão escocês não muito intenso, a respirar bem, botões alongados, aberto. Por baixo do casaco, vê-se perfeitamente uma camisa de algodão branco com motivos verde-bandeira (a camisa só pode ser de algodão), não muito bem passada a ferro, não estivesse a loja fechada e eu até ponderava oferecer-me para dar ali um jeitinho. Para além da camisa, o casaco deixa ver uma tira em forma de trapézio da minissaia amarelo-limão, de plástico brilhante (já a saia, se não for de plástico há de ser de borracha), em padrão que imita a pele de um crocodilo de grandes dimensões, talvez mesmo capaz de preencher a avenida na transversal e tocar, em simultâneo, à campainha de um número par com a cauda e à de um número ímpar com o nariz (e depois fugia a correr a esconder-se nas águas do rio). Junto a este manequim assim trajado, está um par de sapatos preto e uma pequena mala de mão.
Então agora vejam lá o preço da saia de plástico, seiscentos e cinquenta euros, mãe, e a camisa de algodão, quinhentos e quarenta, e o casaco, atenção, é comprido, o casaco dois mil e oitenta, faltam os sapatos, setecentos e cinquenta euros. Já passa da meia-noite e dos quatro mil euros nesta montra e ainda não vimos a mala. Bom, a mala é esta, precisamente.
Se não pensar muito na pele de cobra aplicada nas laterais desta peça, nem desgosto. Coubesse lá dentro o meu porta-moedas e eu era ver se não começava já a juntar dinheiro para oferecer a malinha à minha pessoa no natal de 2038.
04/11/2015
Os blogues para alguma coisa?... ai servem servem
Isto torna-se aborrecido.
Eu tenho um blogue pouco movimentado em posts devido a coisas que não interessa nada referir não vá isto assumir o ar de uma queixa e estragar o ramalhete à gente. Mas torna-se aborrecido, dizia, porque eu queria fazer um post muito especial - e vou fazer, não é - e já passou a onda, ou seja, é um post atrasado, enfim. Mas é um post.
É que isto divertiu-me. Imenso. E por me ter divertido tanto (eu não me divirto facilmente, sou sisuda), lanço-me a abrir a caixa de comentários, quero mais, deixa cá ver, mas eram para lá de milhões os comentários (pudera), e entornaram-se todos aqui em cima de mim mas ainda consegui ler o primeiro, a sugestão muito adequada de óculos (usar óculos) e depois a resposta à sugestão, que essa então, deu em desabrir (abrir com muito ímpeto) uma família de gargalhadas aqui no meu peito, é que foi mesmo bom.
(eu disse que este post era especial e além de especial é dedicado, claro)
E então pensei pensei e descobri uma maneira de fechar este assunto em grande, de retribuir, de - em vez de ir lá pôr mais um comentário naquela caixa tão cheia - fazer uma coisa melhor (em princípio): um post que consiste em contar uma anedota das muito boas, aliás ótimas, ou seja daquelas que sempre que contei ninguém conhecia - o que é promissor! - anedota que (espero) vá originar uma família de gargalhadas como a minha, lá na autora daquilo que eu já linkei (vou fingir que não sei os nomes das pessoas que estou a referir, para ser mais engraçado, uma tentativa de brincar ao halloween seja lá isso o que for, que eu normalmente detesto o halloween, e por acaso também já venho atrasada nisso, mas também detesto o dia dos namorados e há outro que agora não me lembro, ah! o carnaval), adiante, dizíamos que vai sair uma anedota que fala de óculos - ou seja, segue a sugestão referida - e fala - atenção - de cães (não a temos visto, pois não?...), mas aqui escuso de explicar, evidentemente.
A anedota.
Dois homens passeiam os seus cães. Um homem tem um Dobermann, o outro tem um Chihuahua. O dono do Dobermann diz para o companheiro: e se fôssemos àquele restaurante comer qualquer coisa? O outro, sensato: acho que ali não nos deixam entrar com os cães.
- Não são permitidos animais de estimação no estabelecimento.
- Ah, não, mas o senhor não compreende, eu sou cego e este é o meu cão-guia!
- Um Dobermann?!?!?!.......
- Sim sim, hoje em dia são muito usados, são ótimos cães-guia...
- Pronto, está bem, então entre lá.
O dono do Chihuahua (e o próprio Chihuahua - o atraso do post também se deve ao tempo que se demora a escrever Chihuahua sem erros) observaram a cena e o homem diz para consigo: bem, não custa tentar, porque não?... Saca dos óculos escuros, coloca-os na cara, atravessa a rua e dirige-se ao restaurante.
- Desculpe, não são permitidos animais de estimação no estabelecimento.
- Ah, não, mas o senhor não compreende, eu sou cego e este é o meu cão-guia!
- Um Chihuahua?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!?!?......
- O quê?!?!?...... Deram-me um Chihuahua??????
(estou agora a pensar que se calhar já contei isto no blogue... devia ter tomado nota num papelinho, bolas...)
Eu tenho um blogue pouco movimentado em posts devido a coisas que não interessa nada referir não vá isto assumir o ar de uma queixa e estragar o ramalhete à gente. Mas torna-se aborrecido, dizia, porque eu queria fazer um post muito especial - e vou fazer, não é - e já passou a onda, ou seja, é um post atrasado, enfim. Mas é um post.
É que isto divertiu-me. Imenso. E por me ter divertido tanto (eu não me divirto facilmente, sou sisuda), lanço-me a abrir a caixa de comentários, quero mais, deixa cá ver, mas eram para lá de milhões os comentários (pudera), e entornaram-se todos aqui em cima de mim mas ainda consegui ler o primeiro, a sugestão muito adequada de óculos (usar óculos) e depois a resposta à sugestão, que essa então, deu em desabrir (abrir com muito ímpeto) uma família de gargalhadas aqui no meu peito, é que foi mesmo bom.
(eu disse que este post era especial e além de especial é dedicado, claro)
E então pensei pensei e descobri uma maneira de fechar este assunto em grande, de retribuir, de - em vez de ir lá pôr mais um comentário naquela caixa tão cheia - fazer uma coisa melhor (em princípio): um post que consiste em contar uma anedota das muito boas, aliás ótimas, ou seja daquelas que sempre que contei ninguém conhecia - o que é promissor! - anedota que (espero) vá originar uma família de gargalhadas como a minha, lá na autora daquilo que eu já linkei (vou fingir que não sei os nomes das pessoas que estou a referir, para ser mais engraçado, uma tentativa de brincar ao halloween seja lá isso o que for, que eu normalmente detesto o halloween, e por acaso também já venho atrasada nisso, mas também detesto o dia dos namorados e há outro que agora não me lembro, ah! o carnaval), adiante, dizíamos que vai sair uma anedota que fala de óculos - ou seja, segue a sugestão referida - e fala - atenção - de cães (não a temos visto, pois não?...), mas aqui escuso de explicar, evidentemente.
A anedota.
Dois homens passeiam os seus cães. Um homem tem um Dobermann, o outro tem um Chihuahua. O dono do Dobermann diz para o companheiro: e se fôssemos àquele restaurante comer qualquer coisa? O outro, sensato: acho que ali não nos deixam entrar com os cães.
- Ai não? Então observa lá isto.
O dono do Dobermann saca dos óculos escuros, coloca-os na cara, atravessa a estrada e dirige-se ao restaurante, à entrada do qual está um porteiro, que o detém.
- Não são permitidos animais de estimação no estabelecimento.
- Ah, não, mas o senhor não compreende, eu sou cego e este é o meu cão-guia!
- Um Dobermann?!?!?!.......
- Sim sim, hoje em dia são muito usados, são ótimos cães-guia...
- Pronto, está bem, então entre lá.
O dono do Chihuahua (e o próprio Chihuahua - o atraso do post também se deve ao tempo que se demora a escrever Chihuahua sem erros) observaram a cena e o homem diz para consigo: bem, não custa tentar, porque não?... Saca dos óculos escuros, coloca-os na cara, atravessa a rua e dirige-se ao restaurante.
- Desculpe, não são permitidos animais de estimação no estabelecimento.
- Ah, não, mas o senhor não compreende, eu sou cego e este é o meu cão-guia!
- Um Chihuahua?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!?!?......
- O quê?!?!?...... Deram-me um Chihuahua??????
(estou agora a pensar que se calhar já contei isto no blogue... devia ter tomado nota num papelinho, bolas...)
Um nó horrível na garganta
Já vamos no dia três, faltam doze minutos para o dia quatro e eu com duas histórias para contar e nada até agora. Mas esta noite fiz sopa. E fazer sopa dá-me vontade de escrever. Mais vontade.
Artur tem quinze anos e na escola em que andava no ano passado e no outro ano e no outro antes desse, era gozado por alguns colegas. Sovado, pontapeado, esmurrado. Uma vez foi visto no chão, sem se conseguir levantar, com sangue na cara. Artur tem quinze anos e mudou de escola. Continua um menino calado, isolado, que puxa sozinho a sua mala com rodas e se enfia no canto oposto ao grupo de colegas. Os colegas da nova escola.
Na primeira aula de Física, o professor pediu aos alunos da turma do Artur que dissessem que estudos pretendem seguir depois do secundário. Chegou a vez do Artur.
- Quero ser médico, professor.
Mas o futuro médico manteve-se calado e afastado dos colegas nos intervalos, dia após dia, apesar de um ou outro terem tentado que ele se aproximasse. Ninguém lhe bateu, ninguém o tratou mal na nova escola. Ainda não, pelo menos.
Na semana passada, na aula de Inglês, alguns alunos apresentaram o trabalho que a professora tinha mandado fazer em casa.
O do Artur era sobre bullying. Não precisou de traduzir a palavra, que se enquadrou na mesma língua das outras; o Artur conhece-lhe bem o significado. A apresentação do Artur decorreu no silêncio absoluto, prendeu toda a turma. E terminou assim.
Do you think I enjoy being out of the group? Lonely?
Or do you think I'm shy? Or against my class mates?
Perhaps you think I'm awkward? Selfish? Feeling special?
No. I am only a boy who has a voice inside saying permanently: be careful. Be very careful.
- Mãe... no fim da apresentação do Artur, eu tinha um nó horrível na garganta; não chorei, mas estavam cinco meninas da turma a chorar...
A minha filha andou na mesma escola que o Artur e continua com ele nesta nova escola, desta vez na mesma turma. Hoje perguntei-lhe, ela respondeu: o Artur agora já se chega mais a nós, sim, havemos de conseguir, aos poucos vamos conseguir. Ele vai ficar bem, mãe.
Enquanto passava a sopa com a varinha mágica, pensei se um dia este futuro médico, doutorado em vítima de bullying, não irá por acaso salvar a vida a um dos cobardes que o sovaram.
Artur tem quinze anos e na escola em que andava no ano passado e no outro ano e no outro antes desse, era gozado por alguns colegas. Sovado, pontapeado, esmurrado. Uma vez foi visto no chão, sem se conseguir levantar, com sangue na cara. Artur tem quinze anos e mudou de escola. Continua um menino calado, isolado, que puxa sozinho a sua mala com rodas e se enfia no canto oposto ao grupo de colegas. Os colegas da nova escola.
Na primeira aula de Física, o professor pediu aos alunos da turma do Artur que dissessem que estudos pretendem seguir depois do secundário. Chegou a vez do Artur.
- Quero ser médico, professor.
Mas o futuro médico manteve-se calado e afastado dos colegas nos intervalos, dia após dia, apesar de um ou outro terem tentado que ele se aproximasse. Ninguém lhe bateu, ninguém o tratou mal na nova escola. Ainda não, pelo menos.
Na semana passada, na aula de Inglês, alguns alunos apresentaram o trabalho que a professora tinha mandado fazer em casa.
O do Artur era sobre bullying. Não precisou de traduzir a palavra, que se enquadrou na mesma língua das outras; o Artur conhece-lhe bem o significado. A apresentação do Artur decorreu no silêncio absoluto, prendeu toda a turma. E terminou assim.
Do you think I enjoy being out of the group? Lonely?
Or do you think I'm shy? Or against my class mates?
Perhaps you think I'm awkward? Selfish? Feeling special?
No. I am only a boy who has a voice inside saying permanently: be careful. Be very careful.
- Mãe... no fim da apresentação do Artur, eu tinha um nó horrível na garganta; não chorei, mas estavam cinco meninas da turma a chorar...
A minha filha andou na mesma escola que o Artur e continua com ele nesta nova escola, desta vez na mesma turma. Hoje perguntei-lhe, ela respondeu: o Artur agora já se chega mais a nós, sim, havemos de conseguir, aos poucos vamos conseguir. Ele vai ficar bem, mãe.
Enquanto passava a sopa com a varinha mágica, pensei se um dia este futuro médico, doutorado em vítima de bullying, não irá por acaso salvar a vida a um dos cobardes que o sovaram.
31/10/2015
No chão do comboio, em pé não dá
Caminho apressadamente em direção à estação e avisto a
Jessica dirigindo-se a mim, vai intercetar-me, vai vai, e quando se acerca declara que
se chama Jessica (por isso é que eu sei) e que está numa causa de proteção dos
animais, se eu não quero, por acaso, toda ela sorrisos, tem coisas nas mãos,
vai entrevistar-me ou sei lá eu… Jessica, não dá, estou quase a perder o
comboio, declaração que faz com que ela se afaste sem tirar o sorriso, um aceno
de mão, então boa viagem.
Mas desta vez o comboio vinha em duas prestações, divorciou-se pelo caminho, chegou ao oriente desorientado, desorientou-me e eu perdi mesmo a minha metade, onde é que já se viu um comboio não alinhar nos carris, deixar-se dividir assim e não sei quê, gosto sempre de ler e não sei quê. Fazia tenções, eu, de me sentar no meu lugar, recostar a cabeça e fechar os olhos antes de desatar a fazer qualquer coisa, a semana acabou e a dor no braço esqueceu-se de voltar depois do efeito do comprimido que tomei de manhã cedo para poder pegar ao trabalho em forma total sem falta.
A meio deste post pendular um bocado enjoado (no chão o alfa enjoa mais) aparece o revisor das tatuagens e eu daqui estico o braço com o meu bilhete uma vez mais no ar e digo que vou reclamar e pedir o dinheiro de volta, ai vou. Ele que faço muito bem, faço faço, mas o que interessa é chegar a casa, não é, diz ele, lá isso é, penso eu, e depois acrescenta que as pessoas nunca reclamam, encolhe os ombros e desaparece comboio fora.
O que ele não sabe é que eu não sou as pessoas. Se fosse, teria escrito coimbra com letra maiúscula, como deve ser. E oriente. Mas como vinha enjoada, o post ficou assim na versão alfa. Pendular.
Mas desta vez o comboio vinha em duas prestações, divorciou-se pelo caminho, chegou ao oriente desorientado, desorientou-me e eu perdi mesmo a minha metade, onde é que já se viu um comboio não alinhar nos carris, deixar-se dividir assim e não sei quê, gosto sempre de ler e não sei quê. Fazia tenções, eu, de me sentar no meu lugar, recostar a cabeça e fechar os olhos antes de desatar a fazer qualquer coisa, a semana acabou e a dor no braço esqueceu-se de voltar depois do efeito do comprimido que tomei de manhã cedo para poder pegar ao trabalho em forma total sem falta.
Na plataforma, é que ainda estamos na plataforma, olho o
relógio e vejo que o comboio se atrasou já dois minutos ou três, coisa inédita
sem chuva forte, cantoneiras caídas, um elefante espojado na linha ou nevões
incríveis, mas finalmente chega o alfa, há algo de másculo num comboio a chegar
que eu não sei descrever mas há, e traz carruagens com números, estranhos,
todos, ao da carruagem indicada no meu bilhete. Acaba o comboio e a minha carruagem nada, então que é
isto, corro à senhora fardada, senhora! senhora!, a minha carruagem não veio,
onde está a minha carruagem? (confirmo pela quinta vez o número do comboio, o
destino, a hora, os outros números, as referências, tudo tudo sem falhar nadinha). A
sua carruagem estava no desdobramento, minha senhora – a minha senhora sou eu nesta
cena - no quê?, no desdobramento, o que é isso? minha senhora não posso fazer
nada, o seu comboio já partiu, era aquele que parou na linha seis, esse? mas esse tinha outro número, ia para outro destino, vá falar com o revisor. E eu fui a correr,
bilhete no ar, antes que o comboio fuja, o revisor está rodeado de gente
indignada de bilhetes brandidos no ar, em aflição, cadê as carruagens,
mas isto mas aquilo, dois comboios com o mesmo número, toda a gente mas senhor
mas senhor, uma festa de bilhetes no ar, patético e autêntico, o revisor tem os
braços muitos grandes e tatuados e depois farta-se da malta toda de
repente porque já disse quatro vezes que somos todos da metade desdobramento e
não da metade normal, e a metade desdobramento já se foi embora, diz então, com um aceno tatuado no braço, vá, entrem,
arranjem lugar se puderem, que o comboio vai cheio, se não vão em pé! Corremos
todos às portas ainda abertas, ai jesus, entrei no resto de comboio (que não é a minha metade).
Eu, que não tenho jeito para arrancar pessoas dos seus
lugares nos comboios e depois me refastelar à vontade, isso não tenho, encosto-me à parede
ligeiramente côncava no extremo da carruagem em que estou, emprestada, e
depois deslizo por ali abaixo, em pé não dá, já trabalhei hoje doze horas muitas delas em pé, vou sentada no chão do alfa pendular até coimbra
e tenho muita sorte porque se me apetecer até sou capaz de ir deitada.
Portanto não posso contar nada do que se passa nas terras lusas que atravessamos, fazer um texto muito bonito, a lembrar as viagens na minha terra, à noite (já é de noite), mas mais moderno, claro, não posso.
Portanto não posso contar nada do que se passa nas terras lusas que atravessamos, fazer um texto muito bonito, a lembrar as viagens na minha terra, à noite (já é de noite), mas mais moderno, claro, não posso.
A meio deste post pendular um bocado enjoado (no chão o alfa enjoa mais) aparece o revisor das tatuagens e eu daqui estico o braço com o meu bilhete uma vez mais no ar e digo que vou reclamar e pedir o dinheiro de volta, ai vou. Ele que faço muito bem, faço faço, mas o que interessa é chegar a casa, não é, diz ele, lá isso é, penso eu, e depois acrescenta que as pessoas nunca reclamam, encolhe os ombros e desaparece comboio fora.
O que ele não sabe é que eu não sou as pessoas. Se fosse, teria escrito coimbra com letra maiúscula, como deve ser. E oriente. Mas como vinha enjoada, o post ficou assim na versão alfa. Pendular.
27/10/2015
Post para apreciar quem puder, tem música
- Ô doutora, 'inda taí? Não vai buzcar oz miúdoz, não?
Dona Rita entrou na minha sala com uma coisa à qual as senhoras da limpeza apreciam chamar o franjinhas e deve ter mais vontade de ver a sala vazia do que eu lá dentro.
- As minhas filhas já são grandes, dona Rita.
Dona Rita é brasileira, o sotaque está reproduzido da melhor forma que encontrei no teclado.
- Grandjizz? Como grandjizz, doutora? Olha essa foto aí!
Dona Rita aponta para uma foto pregada na parede na qual se veem duas meninas (e não miúdos, não sei onde ela foi buscar a ideia de miúdos), uma mais alta que a outra, estão de mão dada e a pequenina tem meia bolacha maria na mão, são as minhas filhas há uns catorze anos atrás, lindas.
- Olhe aqui dona Rita, venha ver.
Convido-os, à dona Rita e ao franjinhas, a dar a volta à secretária e porem-se ao meu lado; no ecrã do computador já se podem apreciar as minhas doces filhas, ambas sorridentes e em versão muito recente.
- Iiiii dotoura, qui grandjizz!
- E lindas, dona Rita.
- Sim, são lindazz az mininas, ólha só! Mas porque a doutora não muda a foto da paredji?
A dona Rita chama-me doutora.
- Não sei, gosto dela... (e gosto mesmo muito, aprecio-a imenso).
Entretanto já dona Rita começou a passear o tal franjinhas por todo o espaço, apanhando poeiras e - bolas, vou ter de dizer - cabelos.
- Ô doutora...
- Diga dona Rita...
- A siôra sabe como faiz para não cair o cabelo, não sabe?
- Não... (detesto estas conversas, eu prefiro ser perfeita e não me cair cabelo nenhum ou, se cair, que ninguém veja)
Agora o cabo do franjinhas fica por um pedaço metido debaixo do braço de dona Rita, que ela precisa das duas mãos para explicar o fenómeno.
- Doutora, a gentji lá no Brasiú faiz tudo assim, viu? A siôra pega numa daiz pílula, sabe aiz pílula para nóiz não ficá grávida?
- Sei... (agora já estou mesmo a detestar)
- Entâo, a siôra ismaga um comprimido dêssiz e miztura com o shampoo, viu? Depois aplica e vai vê! O cabelo fica fortjinho e bom, qui dói! E não cai! É qui essas coisa da Dercoz e táu, isso é tudo muito caro, viu? Ah, não dá! Vai, experimenta como nóiz faiz no Brasiú.
É claro que não vou experimentar nada disso, principalmente porque não preciso, viu, dona Rita? Não sou perfeita não, mas o meu cabelo chega-me muito bem e se cai é devido aos esforços intelectuais muito importantes durante os quais alguns fios se separam de mim de cansados que ficam os pobrezinhos.
Mas pronto, isto eu não disse à dona Rita, ela é mulher que eu aprecio (hoje é o dia de apreciar) e sai já porquê, uma, ela diz bom dia todas as manhãs cheia de uma alegria contagiante que eu às vezes absorvo mais do que penso precisar e, duas, porque adoro ouvi-la falar, o sotaque brasileiro é música, soa tão bem.
Mas e o meu cabelo? Pelo sim pelo não, fui ao cabeleireiro, dei uma ajeitada, coisa de nada, dona Rita não vai notar não (aperfeiçoo-me muito assim, às escondidas, aprecio isso).
Dona Rita entrou na minha sala com uma coisa à qual as senhoras da limpeza apreciam chamar o franjinhas e deve ter mais vontade de ver a sala vazia do que eu lá dentro.
- As minhas filhas já são grandes, dona Rita.
Dona Rita é brasileira, o sotaque está reproduzido da melhor forma que encontrei no teclado.
- Grandjizz? Como grandjizz, doutora? Olha essa foto aí!
Dona Rita aponta para uma foto pregada na parede na qual se veem duas meninas (e não miúdos, não sei onde ela foi buscar a ideia de miúdos), uma mais alta que a outra, estão de mão dada e a pequenina tem meia bolacha maria na mão, são as minhas filhas há uns catorze anos atrás, lindas.
- Olhe aqui dona Rita, venha ver.
Convido-os, à dona Rita e ao franjinhas, a dar a volta à secretária e porem-se ao meu lado; no ecrã do computador já se podem apreciar as minhas doces filhas, ambas sorridentes e em versão muito recente.
- Iiiii dotoura, qui grandjizz!
- E lindas, dona Rita.
- Sim, são lindazz az mininas, ólha só! Mas porque a doutora não muda a foto da paredji?
A dona Rita chama-me doutora.
- Não sei, gosto dela... (e gosto mesmo muito, aprecio-a imenso).
Entretanto já dona Rita começou a passear o tal franjinhas por todo o espaço, apanhando poeiras e - bolas, vou ter de dizer - cabelos.
- Ô doutora...
- Diga dona Rita...
- A siôra sabe como faiz para não cair o cabelo, não sabe?
- Não... (detesto estas conversas, eu prefiro ser perfeita e não me cair cabelo nenhum ou, se cair, que ninguém veja)
Agora o cabo do franjinhas fica por um pedaço metido debaixo do braço de dona Rita, que ela precisa das duas mãos para explicar o fenómeno.
- Doutora, a gentji lá no Brasiú faiz tudo assim, viu? A siôra pega numa daiz pílula, sabe aiz pílula para nóiz não ficá grávida?
- Sei... (agora já estou mesmo a detestar)
- Entâo, a siôra ismaga um comprimido dêssiz e miztura com o shampoo, viu? Depois aplica e vai vê! O cabelo fica fortjinho e bom, qui dói! E não cai! É qui essas coisa da Dercoz e táu, isso é tudo muito caro, viu? Ah, não dá! Vai, experimenta como nóiz faiz no Brasiú.
É claro que não vou experimentar nada disso, principalmente porque não preciso, viu, dona Rita? Não sou perfeita não, mas o meu cabelo chega-me muito bem e se cai é devido aos esforços intelectuais muito importantes durante os quais alguns fios se separam de mim de cansados que ficam os pobrezinhos.
Mas pronto, isto eu não disse à dona Rita, ela é mulher que eu aprecio (hoje é o dia de apreciar) e sai já porquê, uma, ela diz bom dia todas as manhãs cheia de uma alegria contagiante que eu às vezes absorvo mais do que penso precisar e, duas, porque adoro ouvi-la falar, o sotaque brasileiro é música, soa tão bem.
Mas e o meu cabelo? Pelo sim pelo não, fui ao cabeleireiro, dei uma ajeitada, coisa de nada, dona Rita não vai notar não (aperfeiçoo-me muito assim, às escondidas, aprecio isso).
25/10/2015
O post está quente
Há quem diga que da saudade não se sofre mas eu nem pensar, ai sofre sofre. Da saudade e da vontade de escrever, que aperta ainda que mote não haja, haja o que houver.
Para me aquietar vou então buscar Satie. A música abre-se como uma flor oferecendo pólen, de onde se soltam, voando, pétalas de seda e eu fecho os olhos. As notas preenchem à vontade os cantos da cozinha, docemente, deixando-se depois derreter, libertando a tristeza que carregam, escorrendo tensões. Deixo-o roçar-me o cabelo, Satie, os movimentos também, sei que estás aí, são carícias tantas e depois quando os abro, os olhos, descubro que não tenho açúcar bastante para o bolo que entendi fazer à tarde. Pela janela distraio-me com as nuvens brancas; por entre a chuva vejo que fluidas preenchem o vale lá em baixo e depois abro os armários, as notas de Satie penetram os interstícios procurando a doçura que não tenho, gavetas também, não há. Beber café, ou chá, sem adoçar não pede visitas à caixa do açúcar que está quase vazia desde o último natal, desconfio. Encontro o pacote de passas na caixa das especiarias e tomo a decisão possível, passo-as para dentro da massa, adocem vocês o que eu não posso, continua a chover lá fora em cima das nuvens do vale e Satie cá dentro, de mim, borrifa-me a alma que não o corpo, tu e eu e já o calor do forno, afinal doçura temo-la nós e o bolo cresce, cresce.
Mesmo sem mote o post está quente, queima-me de saudade sofrida sim, que a vontade de escrever ainda não passou.
21/10/2015
Café com leite e este é capaz de ser o pior post de todos
Os meus colegas de trabalho, com quem almoço quase todos os dias desde há muito muito tempo, imenso tempo, são ainda mais antigos que eu e falam com frequência de como eram as coisas dantes, os terrenos, as ruas, as casas, as azinhagas, havia o senhor Manuel e todos menos eu se lembram do senhor Manuel, e o senhor Joaquim também, com o boné, e o senhor António que tinha uma vaca e tudo ali, mesmo ali, tão diferentes eram os caminhos, quem os viu e quem os vê e isso assim (aborreço-me). Normalmente um destes senhores do antigamente também cantava fado, é perfeitamente normal isso. Admiro muito as pessoas que cantam, principalmente as que cantam ópera. Mas eu prefiro falar de assuntos do tipo livros ou então ciência (aborrecem-se). De política nem pensar, é uma asneira, que eles estão todos do mesmo lado e eu de outro lado e desconfio que gostam de estar contra mim porque puxam muito o assunto, enquanto o governo vai e não vai está-se mesmo a ver como são aqueles almoços. Mas eu sou pacífica e pacífica morrerei daqui a imenso tempo, portanto não há problema.
Mas noto que se desenvolve em mim um lado rural, isso noto. Comecei há atrasado a sonhar em ter uma vaca (como o senhor António), que eu gosto muito de vacas, uma vaca para dar leite até ser velhinha e neste ponto falta-me saber com que idade fica uma vaca velhinha. Vou afeiçoar-me a ela como sei lá o quê (uma vez, há muito tempo, numa ação de estímulo de equipas, coisa intensiva e esgotante, eu era jovem, já não se faz disso, perguntaram-me qual é o meu animal preferido e eu ouvi a minha própria voz soltar-se no ar entoando vaca, portanto já se vê que não é de hoje) ou seja, claro que não a vou comer. Retiro-lhe o leite e apreciarei a casta que dali vier. Se ela morrer antes de mim, tratarei de fazer um buraco gigante na terra para a enterrar. Depois, junto da campa, plantarei um pé de magnólia que vai florir em abril e em branco. Como o leite. Como? Bebo, o leite bebo. Normalmente com café.
Bom dia.
20/10/2015
Canteiro de flores mortas
Já tinha passado um tempo depois da hora em que as luzes ainda se acendem no corredor de acesso à cave, quando o atravessei. Apalpei o chão com os pés onde sabia estarem os degraus, não queria cair. Encontrei-os e a seguir a eles a porta corta fogo, que se abriu com um estalido. O silêncio na cave é frio e está morto, um fruto seco, bolorento, de muitas estações iguais de tantos anos tristes. Entrei; o paralelepípedo de plástico com a sinalética da segurança ilumina o ar o suficiente para mim; com as costas direitas corto o abraço surdo que me ecoa os passos e atravesso a cave até ao fim, onde o fio de luz se fina.
Felizmente tinha deixado a alma lá fora, escondida no canteiro das flores já mortas, a ler Clarice Lispector. Quando cheguei à bancada de trabalho, no canto mais fundo da cave, tentei imaginar o texto e acendi a luz do candeeiro metálico de braço extensível que alguém pendurou na prateleira de cima e que fica sempre a oscilar quando lhe toco. Não olhei para trás, nunca olho para trás. Pus os óculos na cara, inclinei-me e liguei os fios sem tremer as mãos. Quando terminei devolvi os óculos ao bolso, apaguei o candeeiro que ainda oscilava, voltei-me e vi-me caminhar na luz ténue, esverdeada, a minha bata branca que se afastava como um fantasma, o meu cabelo a cair pelas costas como se fosse real, subi os degraus para dentro do corredor que vi engolir-me num trago. Esgueirei-me então pela frincha da outra porta, a que dá acesso à rua, e regressei ao canteiro das flores mortas onde me esperava o livro aberto na página do texto que tentei imaginar.
(se não fosse chorar sempre que oiço Ave Maria de Schubert, não tinha a certeza absoluta de existir)
19/10/2015
Post desta vez com erros nenhuns (os posts com post no título é que são bons)
Irritam-me as bolachas oreo e os derivados das bolachas oreo, os gelados, as mousses, os cupcakes, principalmente os cupcakes. As bolachas oreo não deviam existir porque não passam de uma versão patética e embalada do maravilhoso branco e negro ou quente e frio que tão bem nos pode fazer no inverno ou no verão, o quente e frio que aquece e dá arrepio, claro que a rima foi de propósito. Quem pode comer um quente e frio não quer uma oreo à temperatura ambiente nem que seja a do seu lar, detesto aquilo. E posso gabar-me com propriedade pois nunca eu avancei a comer uma coisa derivada de bolacha oreo, muito menos se for feita na bimby, também detesto a bimby, mas toda a gente que tem bimby é feliz com ela e eu está bem ok (isto era da canção). Desconfio do interior que viu branqueamento forçado, do exterior muito mais preto que chocolate preto, voltámos à oreo, uma concentração de cento e vinte por cento de açúcar, um nojo, desculpem lá, muito menos produzir derivados daquilo e não sei quê. E os cupcakes, falta dizer isto, parecem bonecas barbie em versão bolo queque de plástico com pepitas de acrílico e enfeites de natal a fingir que escorrem mas não, estarão presos com alfinetes de ama, ganchos para o cabelo ou sei lá eu. Uma perda de tempo quase tão inútil como os museus de cera, os autocolantes na fruta ou os insuportáveis cartazes outdoor com anúncios ou, ainda pior, a implorar anúncios que ninguém nunca lê se faz favor.
Mas.
Hoje fui fazer um brunch pela primeira vez na minha muito longa vida. O brunch teve lugar num local sem nenhumas luzes brancas led do tipo centro de saúde de moscavide que nos fazem a cara verde com sombras cinzentas, não, o sítio do brunch tem candeeiros com luzes amarelas muito bonitas, lustres kitsch e vintage ou coisa assim que eu de moda e decoração percebo menos que de pintar unhas, e dos estrangeirismos gosto muito mas só quando os traduzo para português corrente, no entanto kitsch nem escrever sei quanto mais traduzir. Mas não era isto, era que nesse lugar muito acolhedor onde hoje fiz o brunch com uma amiga de longa data, uma espécie de alma gémea, a Luísa, que me desenterrou de casa e me fez ir ao local que estava pejado de cupcakes em massa esquisita, passámos sei lá quanto tempo mais de duas horas a conversar como eu adoro conversar, e o local era lindo, tinha música que se ouvia tão bem, e cadeiras de várias cores, e muitos bules de chá que me lembram a minha avó querida, mesmo giro aquilo, e também estava cheio de cupcakes, já disse, e depois no fim ela levou cupcakes para casa dela (um deles de bolacha oreo, por isso é que eu sei) e eu detesto cupcakes e pena foi ter-me esquecido de lhe perguntar em que partido ela votou, mas que bem me sinto assim neste mundo em que todos diferentes e todos iguais e as amizades quando são, são mesmo e o que não interessa, não interessa, estou aqui estou a fazer poesia. Aliás, não fossem os cupcakes da Luísa e eu estaria já a dormir em vez de me entreter como ninguém a escrever um post extremamente pertinente altamente adequado e desta vez com erros nenhuns.
16/10/2015
Poesia demais para mim
Até há pouco tempo, cada um dos meus posts demorava em média uma hora e meia a produzir, mas agora tem sido um ver se te avias, devido a coisas novas que me ocupam as mãos muito mais tempo que dantes e eu preciso delas para escrever posts, e está visto que voltei aos posts, pois postes ficava tão mal. Aliás vendo bem, se nas canções não nos importamos de ouvir that's me in the corner, that's me in the spotlight losing my religion - e isto é apenas um exemplo muito suave - eu cá arrumava a um canto uma canção que dissesse olha eu ali na esquina, olha eu ali no foco de luz a perder a minha religião (ou então isto é poesia demais para mim).
Mas venho há pouco a fazer a autoestrada de volta a casa e apanho, àquela velocidade, um post pelo caminho (bem se vê o jeito que dá chamar as coisas pelos seus habituais nomes), vem do passado, este post, voa direito a mim, colidimos, olha ele.
Estou com as minhas filhas no pequeno centro comercial do bairro de então, as mãozinhas delas a desaparecer nas minhas, caminhamos em modo de compras, temos, eu não digo, mas elas quatro e seis anos de idade e a de quatro comunica-me de repente, ai mãe 'tou aflitinha. Entramos nos sanitários femininos, a mais pequena mete-se dentro de um cubículo e eu com ela, a mais velha fica à espera do lado de fora, não saias daí, querida. A minha filha caçula aqui à minha frente, os seus caracóis a brilhar debaixo do foco de luz (aproveito muito as ideias) e põe-se a olhar para o teto, como quem veio para ficar. Eu, que nem sempre sou maravilhosa, começo a impacientar-me, estou apertada e está calor.
- Filha, despacha-te, anda.
- Ó mãe tu és tão linda.
- Tu também, amor, mas agora despacha-te.
A impaciência contagia-se, a outra filha, do lado de fora, diz vamos embora muito alto, 'tou farta de esperar, e eu espera, não saias daí e, para a pequenina, à minha frente
- Vá, querida, falta muito?
A miúda, que sempre ensaiou ensaboar-me em situações do seu interesse, insiste
- Ó mãe, és mesmo linda.
E continua, semicerrando os olhos para mim, conferindo a convicção necessária à declaração.
- Olha, és tão linda, mãe, tão linda... É que és ainda mais linda que...
E de novo fitando o teto, procurando a palavra que lhe fugia, que me poderia entreter a paciência uma vez catapultada a minha beleza para o seu devido lugar, para que não houvesse dúvidas, a irmã do lado de fora continua a fazer-se ouvir, eu cheia de calor debaixo do foco de luz do cubículo, pode dizer-se que sou capaz de perder a minha religião ali de repente, praticamente, e eis que a miss caçula a encontra, à palavra, e conclui, triunfante
- Que as bruxas, mãe! Tu és mais linda que as bruxas!
(muitos anos depois: lembras-te disto, filha? lembro perfeitamente, mãe, eu tinha pensado em dizer princesas, mas depois achei que não era preciso exagerar)
(muitos anos depois: lembras-te disto, filha? lembro perfeitamente, mãe, eu tinha pensado em dizer princesas, mas depois achei que não era preciso exagerar)
12/10/2015
Tonight she comes
Há muito tempo que é
nesta época que mais se fundem lâmpadas mas nisso não se fala. O processo costuma
manter-se até depois do natal, mesmo que ande toda a gente em modo jingle bells. A fileira comprida de
focos luminosos perfeitamente design no teto do meu corredor já tem duas baixas e
ainda outubro não chegou ao meio, ora isto habitualmente contagia as vizinhas da
fileira se eu não urgir escadote acima para a troca. No fim de semana dei dois saltos
à rua, e a rua deu-me um outono tão bom. Composto à chuva pela tarde, o que eu
adoro o outono não sei medir mas contar, contei. Duas lâmpadas em semáforos e
três em automóveis que circulavam no mesmo piso molhado que eu, e em poucos
metros foi o que se arranjou para poder sustentar este meu primeiro poste.
De modo que é nesta
altura que mais me vejo o carro ao espelho, na minha vida há por acaso espelhos
muito bons para ver carros ao espelho (atividade pós-laboral): enquanto aciono
as luminárias da viatura, com a mão, com o pé, à frente, atrás, à esquerda, à
direita, autoteste que nem sempre acaba passado, mas que de honesto tem tudo, o
meu teste, é uma verdade, podemos estar descansados quanto a isso não tem
problema nenhum.
Com esta conversa assaz eletromecânica,
nem parece que tenho um novo amor e tenho. Com ele viajo sem carro pelo ambiente
do janelas dez da microsuave e depois dentro de um escritório dois mil e
dezasseis há toda uma possibilidade de coisas que podemos fazer, ainda nos
estamos a descobrir, é tão belo isto, não o largo nem ele a mim, a Cristina
disse-me hoje ao almoço que tenho os olhos mortiços, a parva, desculpei-me com ai é do tempo, mas claro que não é, continuando,
íamos aqui, o equipamento macio dentro do equipamento duro*, o meu amor novo, e
por causa dele escrevo este primeiro poste em português moderno, que do antigo ele
não gosta, põe-se vermelho por baixo, de maneira que comecei pelo teto, as
lâmpadas foi tipo motor de arranque ao tema, para não cair em seco (chovia), e
acabei a traduzir tudo, limpámos os estrangeirismos, o meu amor novo e eu,
ai tenho os olhos mortiços, tenho?... sabe lá ela do que fala, a Cristina.
(e agora, precisamente após o meu primeiro poste em português moderno quase todo isento de estrangeirismos e imediatamente antes de ir buscar o escadote para subir ao teto, apeteceu-me ouvi-los, aos carros, ahhh...)
* e não o contrário
08/10/2015
Fica para a próxima
As fatias de bolo de chocolate que estão deitadas em pratos de cerâmica branca decorados a maior parte deles com uma linha circular azul impressa a meio do seu bordo, bem me tentaram. Só a palavra chocolate, aliás, já me predispõe e isto não tem piada nenhuma. Pode mesmo tornar-se um aborrecimento, por exemplo, ao balcão de bombons esculturais do café Portela no centro comercial Vasco da Gama, quando não posso evitar lá ir ou de repente num desses aeroportos que não ficam longe de Bruxelas. Em vez de uma fatia de bolo de chocolate, suspiro e recolho para o meu tabuleiro uma raquítica maçã assada enfiada numa taça transparente um nada maior que ela, dona Esmeralda hoje é o prato de carne se faz favor.
Uma barulheira na cantina, a televisão aos gritos, comi num instante. Saio logo a seguir à maçã assada, raquítica mas boa, ela e eu atravessadas agora pelos mesmos neutrinos (tem de ser, tem mesmo de ser), entro no carro que está quentinho e me avisa pela quarta vez, para aí, que precisa de combustível. Ignoro e ao parar no semáforo vejo pelo canto do olho uma coisa que me faz virar a cabeça e que é uma fotografia gigante da Mariana Mortágua ao lado da Catarina Martins. Fiquei a olhar para a Mariana Mortágua e pensei que ela tem um rosto bonito, tem mesmo. Mas podia ser mais bonito o seu rosto, aposto, se deixasse as sobrancelhas inteiras. Parece-me que as mulheres em geral deviam deixar as sobrancelhas inteiras (poupa-se um tempão que se pode usar a escrever posts muito bons). Não tive tempo de reparar nas da Catarina Martins, fica para a próxima, o sinal pôs-se verde de repente e eu arranquei, eu e os nossos neutrinos. Meus e da maçã assada.
(este texto tem um erro; se alguém o descobrir, ganha)
Actualização do post-desafio a 13.10.2015, para a eventualidade remota de alguém ainda cá voltar:
O erro está aqui:
"...o sinal pôs-se verde de repente e eu arranquei, eu e os nossos neutrinos."
Os nossos neutrinos, meus e da maçã, os que supostamente nos estavam a atravessar imediatamente antes de eu arrancar com o carro, não arrancam connosco: somos transparentes aos neutrinos, nós avançamos e os neutrinos continuam a trajectória deles sem se incomodarem com o trânsito ou com maçãs assadas, com blogues ou com posts tolos como este. (tolo, mas é o terceiro no ranking de visitas desde sempre deste blogue.... são um verdadeiro sucesso, os neutrinozinhos)
Actualização do post-desafio a 13.10.2015, para a eventualidade remota de alguém ainda cá voltar:
O erro está aqui:
"...o sinal pôs-se verde de repente e eu arranquei, eu e os nossos neutrinos."
Os nossos neutrinos, meus e da maçã, os que supostamente nos estavam a atravessar imediatamente antes de eu arrancar com o carro, não arrancam connosco: somos transparentes aos neutrinos, nós avançamos e os neutrinos continuam a trajectória deles sem se incomodarem com o trânsito ou com maçãs assadas, com blogues ou com posts tolos como este. (tolo, mas é o terceiro no ranking de visitas desde sempre deste blogue.... são um verdadeiro sucesso, os neutrinozinhos)