a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/06/2014

Renato

Na quarta feira combinei almoçar com a Marina no centro comercial do bairro perto do trabalho dela que, por coincidência, é aquele em que eu vivo.

Cheguei ao local do encontro e, em vez dela, encontrei uma mensagem no meu telefone, estou cinco minutos atrasada.

Fiquei contente por poder esperar. Enquanto espero deixo de decidir, deixo de contar o tempo, deixo de me apressar ou exigir resultados, suspendo-me no éter da atmosfera possível, que ali à porta do centro comercial tem pintado contra o azul do céu o lilás vibrante, ondulando ao vento, dos jacarandás.

Se por acaso um dia eu morrer, mas não acredito que isso aconteça, poderá continuar a colher-se nas flores destas árvores o reflexo dos meus olhos por muito tempo e por tantas vezes os ter lavado nelas.

Com o olhar suspenso de prazer cromático, detecto, no extremo do meu campo de visão, alguém que se aproxima.

Solto o olhar das cores inebriantes e enceto um sorriso de antecipação à minha amiga, mas quem vem lá é o rapaz magricela que passeia os cães. Vem sozinho e dirige-se à entrada do centro comercial, mas desvia a sua rota na minha direcção e remove da cara os óculos de sol. Eu faço o mesmo, ele dá-me dois beijinhos e encosta-se ao muro ao meu lado.

- Então, hoje vens sozinho.

- Sim, fui agora entregar dois ali à rua de cima, vou almoçar, mas estou cansado - ao dizer isto, o Renato esfrega os olhos.

- Cansado? Então? - este miúdo tem idade para ser meu filho mas é muito mais alto que eu.

- Comecei às seis da manhã, fui passear dois ali em baixo, depois até às oito faço outros dois, ao todo são dez por dia. Ainda me falta um às quatro horas, depois às sete e às oito outra vez.

O Renato tem no rosto marcas que contam histórias que eu não conheço, sei vagamente que não pôde continuar a estudar, que houve gritos e maus tratos na sua infância, que dormiu fora de casa porque não lhe abriam a porta. Sulcos de cicatrizes que cresceram com ele, arte obrigatória quando a vida é madrasta, agruras que lhe escureceram a pele.

- Dez cães? Todos os dias?

- Não, ao sábado não passeio.

Sei de uma família que lhe oferece jantar quando o Renato entrega o cão ao fim do dia. Pergunto-lhe mais sobre o seu trabalho para me manter espectadora deste brilho que lhe baila nos olhos e que ilumina o seu rosto de menino cujas marcas me doem a mim também. Ele dá-me detalhes.

- Este que vou buscar às quatro horas vê-me chegar, lá de cima da varanda, e vai logo a ladrar dizer à dona que eu cheguei.

Depois ri e acena com a cabeça, a reforçar a alegria do cão e a dele, quer que eu acredite. Eu acredito.

Acredito na história do Renato, na família que lhe dá jantar, nos jacarandás que pintam o céu assim, no almoço com a minha amiga. E só por isto acredito também que nunca morrerei.

E na sombra destes jacarandás, vejo a Marina aproximar-se a sorrir, apressada.

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