a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/08/2015

Conversas como as amoras

Se as conversas forem como as cerejas, não vejo razão para não começar por dizer que um dos oito geradores eólicos que se vêem no alto do monte, para lá do vale, está em reparação: as pás foram-lhe retiradas. E que os outros sete, esta manhã, não se movem. A massa de ar que se encaixa na forma do grande vale que se interpõe ensaia uma opacidade quente, branca, muito estática. Estranho, contudo, a indiferença das pás giratórias à propagação das incolores ondas sonoras que se estendem em força, provenientes da maquinaria pesada dos madeireiros que andam perto: a mim trabalham-me tanto os tímpanos que nem sei se me aguento muito tempo aqui.

Mas creio que o simples facto de eu continuar a ler livros (e revistas, caramba, revistas!) impressos em papel numa época em que podia poupar árvores e fazê-lo num dispositivo electrónico, tira-me o direito de protestar contra o barulho detestável destes motores que cortam eucaliptos até à hora do almoço e depois continuam, e me fazem querer tanto inventar um engenho cujas rotações emitam ondas que já não sejam sonoras e portanto se instalem agradavelmente num espectro não audível. Se eu fosse rica mesmo rica, ah!, havia de inventar uma forma (eu merecia ser mesmo rica); mas não sou e há sempre ou roupa para tratar ou loiça para lavar, tarefas assim.

Mas se fosse como as cerejas, podia a conversa continuar para o facto de ontem termos sido tantos a comer cá em casa, que de certeza lavei a loiça toda de que disponho e no caso dos garfos, das facas e de alguns copos, bisei. O melão tivemos sorte era bom e o vinho da região, que ganhou prémios e tudo (um orgulho), foi muito apreciado de forma que incentivou sestas em quase todos os homens presentes, em nós não.

Nós fomos às amoras com os miúdos e toda a gente se picou menos eu. 

Rodrigo toma estas, vai pôr no saco – pus três amoras pretas e gordas nas minúsculas mãos que consegui ensinar a fazer uma concha, uma concha em duas metades ligeiramente desligadas, mas uma das três foi engolida de imediato - então, amor? Essas são para o saco! 

- É xó uma, tia! – a indignação estampada no pequeno rosto faz-me morder o lábio para não rir, este miúdo parece querer sorver a vida inteira a cada segundo, tanto que em toda a pequena remessa que eu lhe entrego para ir pôr no saco – pequena para lhe caber nas mãos - é sempre xó uma, tia!

E uma a uma comeu o petiz uma valente barrigada de amoras, as mãos e a boca a delatar o sucedido, de tal forma que às tantas foi tia quero lavar as mãos e é enquanto me mostra o estado das palmas bem viradas para mim que anuncia isto; ali na fonte, querido, vamos lá e depois

- Podemos lavar aqui as mãos mas não podemos beber, ouviste?


Começámos a conversa a caminho das cerejas e acabámos nas amoras. É de ser verão e estar calor, de andarem a cortar árvores, de haver mais gafanhotos hoje que quando chove, de eu não ter jeito nenhum para isto mas precisar muito de escrever coisas à solta ou então de a jovem cerejeira do pomar ainda não ter dado conversas a ninguém.

(apesar de não parecer, eu gosto de lavar a loiça e ainda mais de ter a casa cheia de gente para abraçar e dar de comer e partilhar histórias e miudagem pequena para ver crescer; aliás o travão implícito na falta de tempo para inventar motores silenciosos também evita que eu me sente no terraço a escrever a história de ficção científica que vive na minha cabeça desde que li Carl Sagan, há duas décadas e meia; um alívio para todos e uma poupança de recursos naturais que compensa um pedaço esta coisa de eu continuar a ler em papel, acho eu)

10 comentários:

  1. Eu, fico assim zonza, enquanto te acompanho a correr, nunca te disse, pois não? acho que não, pois Susana, leio-te a correr e antes que penses, pois, lá está, eu bem digo que não tenho jeito para isto e as pessoas despacham-se para chegar ao fim, não é nada disso, é precisamente pela expectativa de quem já sabe, que a conversa aqui pode começar em cerejas e acabar em amoras e isso ser muito bom, corre-te veloz o pensamento, salta-te a velocidade para os dedos e uma pessoa começa também a correr para que não lhe escape nada, das curvas e contracurvas da conversa que começa em cerejas e acaba em amoras, e agora estou a escrever este comentário assim sem pontos finais e poucas vírgulas para ver se também consigo fazer-te correr, coisa que me deixaria muito orgulhosa e aproveito para dizer-te, que também gosto de abraçar gente e talvez por isso, também não consiga abdicar do prazer de ler em papel, porque manusear, cheirar, apalpar fazem parte do prazer de ler para lá do prazer que é saber ordenar letras e extrair-lhes um significado.

    Beijinhos, Susana, de quem eu tanto gosto, mesmo assim à distância, bem, mas é à distância de um clique.

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  2. E à distância de um clique te digo, querida Cláudia, que sim, que me fizeste correr contigo e que se pudesse continuava, porque ler os teus comentários é beber o prazer das palavras, ainda mais quando me enchem assim, de carinho. Palavras que nem sempre pedem vírgulas ou pontos finais, por vezes tratam elas sozinhas do ritmo necessário à dança desta corrida e agora mesmo repito que gosto muito dos teus comentários, sejam escritos no meu ou noutro blogue, aliás é impossível aqui, à distância deste clique, não gostar de ti.
    Beijinhos de volta, Cláudia, e obrigada, muito.

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  3. E tiveste muita sorte em não ouvir um "tenho um dói-dói na baliga" que te obrigasse a improvisar papel higiénico ali mesmo, "au naturel"! :P :P
    Os meninos axim xão doxes, tão doxes cumás amoras.

    Beijocas, Susana, das repenicadas. :)

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    1. Muito muito doxes, mesmo. :-)

      Não me lembro de ter comido alguma vez amoras tão doces como as deste ano, de facto.

      Beijos, querida Maria, repenicados também.

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  4. Assim que li o título, pensei: pronto, ela já descobriu!
    É que, no espaço de poucos dias, um amigo presenteou-me duas vezes com umas valentes caixas de amoras. Preparadas, lavadas, prontinhas a comer! E eu também não fui na conversa que quiseste impingir ao teu sobrinho. Foram muitas de cada vez!
    Percebe-se que andas deliciada pelo campo, mesmo com tanta tarefa para cumprir.
    De certa forma invejo - inveja boa, claro - as pessoas que gostam de ter a casa cheia de gente, para alimentar, contar histórias e assim. É que, com facilidade, fico cansada com o ruído normal de muita gente à volta. Mesmo com os meus mais próximos, os encontros são calmos e intimistas.
    Afinal, ainda não sou a única a gostar mais de ler livros em papel. E fico curiosa com essa história de ficção científica. Até aposto que terá nanopartículas. ;)
    E é difícil acompanhar-te na correria deste bonito texto. ;)
    Beijo, Susana.

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    1. Ah, Isabel, eu também não sou de muita socialização, sou mais de recato e sossego, mas quando se trata dos meus sobrinhos, que são muitos muitos, é bom demais. Quem diz sobrinhos diz irmãs, cunhados, enfim, toda uma colecção. :-)
      Nanopartículas terá... ou talvez as filhas, que são as picopartículas... :-)
      Muito obrigada, Isabel. E um beijo de volta.

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  5. Estas tuas 'conversas' à solta que começam nas cerejas e terminam sabe-se lá onde são deliciosas como as amoras, Susana.
    Um abraço. :)

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    1. Muito obrigada, Maria! (é que eu gosto muito de fruta, muito)

      Um abraço de volta e uma boa quinta feira. :-)

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