a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

09/02/2016

Uma difícil dose de sono polivalente

- Dona Esmeralda, a batata hoje tem muita sopa.

Já eu estava sentada no meu lugar e tinha dado início ao degustar do almoço. A dona Esmeralda tinha-se abeirado de mim para me ouvir por cima do ruído infernal da cantina e não levou mais de dois segundos a interpretar o axioma ou, enfim, isto que eu disse. Olhou-me séria nos olhos através dos seus óculos de aros dourados e um pouco tortos demonstrando bem que não achou graça, porém quis mais, diga, menina?

- A batata hoje tem muita sopa, dona Esmeralda.

E não é que dá um murrinho sem ninguém ver no meu braço?! Depois encolhe os ombros e diz, esta menina é assim, enquanto regressa à linha; ela chama linha à instalação onde correm os tabuleiros enquanto são servidos os almoços.

Mas fui castigada a meio da tarde. Bateu-me uma difícil dose de sono polivalente que não me estava a deixar cumprir os deveres em condições, uma soneira que me obrigou a levantar da cadeira antes que sucumbisse para cima da mesa. E como não faço aquilo de ir à rua fumar um cigarro, foi preciso ter uma ideiazinha como por exemplo ir entregar à cantina o dinheiro da bebida extravagante que tomei a semana passada e de que só paguei uma parte devido a escassez de moedas.

- Dona Esmeralda, aqui tem o dinheiro que lhe devia, dez cêntimos.

Ela está de braços enfiados na cuba cheia de água com espuma, a dar tratamento de esfrega aos tabuleiros da cantina. O pequeno rádio está ligado, ouve-se fado.

- Não é preciso ser hoje, pode pagar depois.

- Posso, mas pago já, antes que continue a esquecer-me - e deixei as moedas junto à máquina registadora - faz bem em ouvir rádio.

- Ó filha, não consigo cantar e tenho de ouvir qualquer coisa, eu gosto muito de música, sabe (sei). Mas ando sem voz, ó: ahghamm ahghamm (uma espécie de aclarar a garganta). Não está muito alto, pois não, filha? Ouve-se lá fora?

- Não, dona Esmeralda, não se ouve nada, fique descansada.

Mas não lhe disse que quando ela canta ouve-se bem lá fora, ouve-se por vezes na minha sala. E nesses dias não me dá sono.

20 comentários:

  1. Deixa cantar a Dona Esmeralda. Como dizia a minha avó, quem canta seu mal espanta!
    Já agora, hoje era mesmo segunda feira. Não foste a única a quem o sono chegou a meio da tarde.
    Beijinhos Susana

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  2. Acho que a tua avó tinha razão, Mafy. Mas neste caso o efeito vai mais longe, ela espanta o seu mal e o de quem a ouve.
    Beijinhos retribuidos.

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  3. Está visto que a D. Esmeralda tem de voltar às suas cantorias. Ou isso ou menos sopa na batata. ;))

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    1. Eu prefiro que ela volte a cantar, mesmo que a batata continue cheia de sopa, Ava. :-)

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  4. eu chamo-lhe linha de montagem... que saudades dos almoços em tabuleiro!

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    1. Tu com saudades dos almoços em tabuleiro e eu a ficar um bocado farta. (no entanto, se estivesse aí tão longe, se calhar também tinha saudades)

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  5. Tenho para mim que "essa" Dona Esmeralda está a candidatar-se a uma ótima personagem de opereta. Já merece. Tem tudo para dar certo: humor, canta, pelo menos, assim-assim, podem entrar as batatas também, como adereço não é caro, tabuleiros já há, conchas e escumadeira não há de ser difícil. Personagens secundários, para além de figurantes, a cantina está aí para os fornecer. Mãos à obra. Bom dia, Susana

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    1. Mas isso é uma excelente ideia, Mia! Uma opereta de sucesso, ai isso havia de ser! (é que esta senhora canta bem, hã?)
      "Mãos à ópera, portanto" :-)
      Boa tarde, Mia.

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  6. Será que é verdade que a batata faz sono?
    Beijo, Susana.

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    1. Pensei exatamente isso, Isabel. Se calhar faz mesmo. :-)
      Outro beijo.

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  7. Isso não se faz à D. Esmeralda, Susana :)

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    1. Pois não, caro Observador, não se faz... por isso é que fui causada. Merecidamente, claro.
      :-)

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  8. Querida Susana, parece-me que a tua Dona Esmeralda quando não canta, canta para dentro. Há pessoas que cantam com o corpo. Eu imagino-a assim :)

    Um beijinho

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    1. Ela canta com o corpo todo e dança quando não canta (e fala), também com o corpo todo.
      Estás a imaginá-la muito bem, querida Miss Smile. :-)
      E daqui vai outro.

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  9. Cá para mim a D. Esmeralda também comeu da batata com sopa, deu-lhe o sono á voz :))

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    1. Foi isso de certeza, GM, amanhã já lhe digo... para ela se cuidar, e eu poder ouvi-la cantar todas as tardes (privilégios).
      :-))

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  10. Um fado por uns vinténs, como a lua por seis centavos.
    A Dona Esmeralda, é um esmero em calda.
    Impagável, querida Susana. :)
    Um beijo

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    1. Uma inspiração, querida Teresa, uma inspiração estes teus comentários. Caramba.
      Eu de beijos devolvo-te já dois, um em cada face. Toma lá.

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  11. tens sorte, se fosse eu a cantar.... aqui em casa dizem - mãe, por favor cala-te...
    talvez também te tirasse o sono...:)

    beijo :)

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    1. Então jogamos na mesmaequipa, ana :-) :-)
      Outro beijo, afinadinho.

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