a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

16/07/2016

A cigana

Acabo o meu trabalho já depois da uma hora da madrugada mas como amanhã é sábado, aliás hoje é sábado, e eu quero escrever, ponho-me a escrever. Não é sobre os temas medonhos da atualidade, é sobre coisas pequenas que escrevo. Desta vez foi um certo apaziguamento de alma que se me meteu hoje (ontem) no supermercado.

Geralmente eu tenho medo de ciganos. O medo é na sequência de uma oferta para uma tareia completa que me fizeram certa vez, eu uma, se não contarmos com a minha filha que era pequena, eles quatro e todos bem gordos (eu também já fui mais magra) e unânimes nas variantes que a tal oferta compreendia, declamadas em muito alto som enquanto me expunham alternativas, filha queres assim ou filha assado como é que preferes. Dessa vez safei-me, mas aconteceu perder o empenho que tinha em corrigi-los quando me passam à frente na fila do supermercado.

Hoje, quer dizer, ontem, estou eu admirando a cor dos pimentos e os folhos das alfaces mas decido-me pelo tomate com rama que me encanta com o seu cheiro verdinho, quando por mim passa isto assim, gritado ao telefone: aquilo é o melhor cigano que deus pôs ao mundo, ‘tá lá a trabalhar p’ra ela e dá aqui p’ra nós todos, ela diz que faz’a lembrar o mê pai que deus tem!

Agrada-me particularmente o faz’a lembrar e tento memorizar a frase (escrevo outra vez no presente do indicativo). Mas não preciso de me esforçar muito, que a pessoa do outro lado da linha não percebeu bem a mensagem e dá-me uma ajuda sem saber, de modo que a mulher deste lado repete, gritando, ela diz que faz’a lembrar o mê pai que deus tem!

Fala, orgulhosa, de um filho que faz boa figura num trabalho recente e ali, no supermercado, leva duas: uma de fralda que vai sentada no cesto do carrinho de compras, a outra de uns sete anos a saltitar em redor. Mas o filho, ainda a oiço repetir, é o melhor cigano que deus pôs ao mundo, aquele mê filho!

Quando termino a recolha de produtos e me aproximo da caixa, meto-me numa que é designada prioritária mas tem só uma pessoa e eu desejo que não venha ninguém prioritário e ponho, um a um, os produtos no tapete de compras até o encher. Enquanto faço isto estou a pensar numa outra coisa melhor e simultaneamente uma determinada gritaria tenta entrar-me nos ouvidos, mas a tal coisa melhor absorve-me completamente. Acabo a tarefa e endireito-me, esperando a minha vez de começar com a conversa do tem cartão de cliente, quer número de contribuinte, quer saco.

- E depois uma pessoa tem que esperar na caixa prioritáriaaa! – o aaa triplicado é para demonstrar a gritaria que finalmente me entrou nos ouvidos: temos a cigana aqui com as suas compras e as duas filhas, a que usa fralda está, entretanto, ao colo.

- E depois uma pessoa tem que esperar na caixa prioritáriaaa!

E isto é para mim.

- E depois uma pessoa tem que esperar na caixa prioritáriaaa!

- Está a dizer isso para mim, não está? – virei-me para trás.

- Eu estou a dizer isto para toda a genteee! Esta caixa é prioritáriaaa!

Por um lado esta cigana não me está a meter medo porque é só uma e tem duas filhas pequenas (embora o seu corpanzil faça dois ou três do meu), por outro lado ela tem razão. Tem direito a prioridade na caixa onde eu já pus os meus produtos todos e não estou grávida nem uso bengala e ainda por cima estava a pensar numa coisa melhor.

- Tem razão, pode passar – afastei-me, saí do corredor para trás, removi o meu carrinho já vazio deixando o caminho livre, que é de qualquer modo apertado e, como não sou tão boazinha como pareço e fiquei indignada por ela não se dirigir a mim com bons modos em vez de se pôr ali aos gritos para o ar, disse: pode passar, se conseguir.

Mas conseguiu. Conseguiu e gritou para a miúda mais velha: mas p’ra que te quero euuu? Só p’ra te dar de comeeeer? – incentivando-a assim a retirar as compras do seu carrinho e a colocá-las na nesga de tapete que estava livre, a miúda precisou do seu tempo para ir pescar ao fundo do carrinho as últimas coisas.

A cigana entreteve-se a discutir a promoção de um óleo, ou então era um sumo, ou não vi o que era, abanou o folheto que levava em frente da cara do rapaz da caixa, a bebé ainda ao colo, não nos esqueçamos da bebé, isto está em promoçãooo!, vira o folheto do outro lado, e isto tambééém! e eu espero.

Porém no fim, quando conseguiu terminar de arrumar as compras nos sacos e fazer o pagamento com todas aquelas notas que lhe saltaram da carteira, após ter passado a bebé para o colo da outra miúda, disse-me, sem gritar:

- Obrigada, minha senhora.


E é daqui que levo, assim, um certo apaziguamento na alma.

17 comentários:

  1. Tenho encontros imediatos com famílias ciganas quase todos os dias. Num computo geral, não posso dizer que são um praga, mas são barulhentos, indisciplinados e fazedores de lixo de primeira água. Bem conversados até entendem e aceitam as situações . Ó dônãããã...
    Tal e qual, Susanininha :) :) :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois ordeiros eles não são, não. Eu, apesar de preferir o supermercado sem eles, constato que têm uma coisa que em nós não se vê na mesma medida: são unidos.

      Um beijinho, querida M D :-)

      Eliminar
  2. Gosto de ciganos. Não é só por terem em comum com os piratas o fascínio pelas argolas de ouro nas orelhas e os lenços na cabeça. Uma parte de mim sonha com fogueiras ao luar e viagens em carroças de burro e a música, céus, como é bonita a música que fazem.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu também gosto muito das argolas e uso-as quase todos os dias, embora normalmente de prata, que de ouro custam-me muito dinheiro.
      Mas não lhes conheço a música, esse viver belo e livre... infelizmente conheço-lhes muito mais a agressividade.

      (mas foi tão bom o quadro que aqui pintaste, Cuca, obrigada)

      Eliminar
  3. Eu tenho um certo fascínio por ciganos, como a Cuca, mas as experiências não são lá grande coisa.:) Já vi algumas cenas feias, embora nenhuma se tenha passado comigo. Gosto de os ver acampados e em caravana pelas estradas, com carroças coloridas a sobressair na paisagem. Têm uma cultura muito diferente da nossa, são mais emotivos, alegres, aventureiros, astuciosos; e sabem ler a sina, o que eu acho delicioso... mas nunca li.

    Essa cigana foi bem tratada por ti e correspondeu. Às vezes é só isso, parece pouco, mas é o princípio de tudo.

    Um beijinho, querida Susana, e um bom Domingo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Foi precisamente pro isso que me senti apaziguada. Mesmo com as diferenças culturais e outras, podemos criar uma ponte entre seres humanos, se nos respeitarmos. Na maioria das vezes, pelo menos. Já tive uma cena difícil com ciganos e eu não os desrespeitei, apenas reclamei por eles não me terem respeitado a mim. Culturas muito diferentes encaixadas numa mesma sociedade é sempre um rastilho em potência, e não sei se será simples arrefecer ânimos que se levantam constantemente uns contra os outros, vejam-se os acontecimentos dos últimos tempos, os atentados. O que incomoda tanto os extremistas na nossa sociedade? se eles gostam de se matar para terem o céu ou lá o que é, porque não o fazem sem levar gente de outras culturas atrás? Em que medida é que os nossos valores os fazem sentir tão fracos que se querem fingir de fortes e tornam-se monstros?... Ah, e de repente esqueci-me que não estou na esplanada contigo a conversar sobre a vida.
      Um bom domingo também para ti e um beijinho, querida Teresa.

      Eliminar
  4. Não sei, eu nem desgosto deles. Desde umas garotas ciganas que se punham à porta da escola só para ver as minhas botas bicudas - e um tanto pirosas -, aos ciganos sempre muito penteadinhos a dar-me a novidade, "eu moro num prédio". Se me batem à porta sou incapaz de não dar esmola; mas, se as encontro pela rua ou na entrada do super, nego. E foi o que aconteceu um destes dias. Depois a cigana andava no interior do super e estendeu-me a mão com moedas para eu ver se chegavam para um frango que tinha na outra. Acenei que sim. Juntámo-nos na caixa e afinal ela e a filha tinham mais coisas e o dinheiro não chegava. Pus o resto (era muito pouco), tive pena de tanta coisa na mão e dei-lhe o meu saco das compras suplente. Era muda a cigana e mal sabia contar o dinheiro. Ainda hoje estou arrependida de não lhe ter dado esmola à entrada.
    Bom Domingo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Que linda história, bea. Muito obrigada por a teres contado.
      Não deste esmola à entrada mas deste à saída e deste-lhe o que ela precisava, incluindo o saco. Preencheste a falta à cigana e agora presenteaste-nos com este teu testemunho, que gosto tanto de ter aqui. Uma vez mais, obrigada.
      Um bom domingo também para ti e um beijinho.

      Eliminar
  5. A mim , irrita-me sobremaneira a imposição dos direitos. irrita-me a filosofia que subjaz a todos aqueles que, em grupo, desafiam todos os outros, de modo a que não tenham quem lhes faça frente por medo das ameaças, são gregários, daí lhes vem a força. resguardam-se em diferenças, tradições e culturas;os deveres e as regras são para os outros. muitos, alimentam-se de subsídios que lhes caem no colo, sem nada fazerem de útil para a sociedade. não estou a falar de ciganos. mas também.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Susana, esqueci-me de dizer bom dia, e de desejar um ótimo domingo.
      beijinhos,
      Mia

      Eliminar
    2. De facto é essa parte da agressividade que a mim também incomoda e até ofende. Enquanto as culturas se mantiverem puras e quiserem conviver dentro da mesmo lei, há choques, creio que é inevitável. É aqui que entra a tolerância. A bem da paz. Apesar dessa questão dos subsídios que, se para uns são curtos, para outros são o estímulo para a parasitação na sociedade e tolerância para isto é que é mais difícil.

      Um ótimo resto de domingo, Mia, beijinhos de volta.

      Eliminar
  6. ja que o tom é de desabafo, assumo que gosto dos ciganos da Cuca. dos outros, já tive de tudo.

    o primeiro cigano que conheci, sentou-se na minha carteira (estava eu na terceira classe), durante o tempo que esteve na aldeia, porque - segundo palavras do professor - eu teria mão nele (era uma aluna "feroz", por aqueles tempos). lembro-me de um teste, em que ele tentou copiar por várias vezes e eu, irritada, não deixei (naquela altura, tal façanha, era para mim quase pecado). todos os miúdos tinham medo dele, era mais alto do que nós e mais velho, mas eu, talvez porque tinha irmãos mais velhos e sabia que a dor de uma chapada seria sempre menor à teimosia de uma atitude (muita chapada levei eu do meu irmão, jesus...), tratava o rapaz sem medo e possivelmente com mais respeito que o próprio esperava. passou a adorar-me, no seu jeito cigano bonito e eu a tratá-lo como a um irmão mais novo, que não tinha. a coisa correu bem e foi bonito.

    de tudo o que se possa dizer, bem ou mal, sobre os ciganos, para mim, o que não lhes aceito, mulher que sou, é o desvalor que continuam a dar à educação/formação, entenda-se/, especialmente das raparigas. e a condescendência de quem sabe e permite, enoja-me de igual maneira.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A questão da educação/formação cai dentro da intenção deles em manter a cultura pura mas quererem beneficiar da lei - a nossa - que os protege e os "insere". Não pode dar completamente certo. Isto em termos gerais.
      Pontualmente, há histórias bonitas como essa que te aconteceu, querida flor e que muito te agradeço por a teres contado. Mas a ti muita gente se há de chegar em busca de orientação. Cheira-me :-)

      Eliminar
  7. São diferentes e isso traz simultaneamente fascínio e temor. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Este teu comentário dá-me vontade de te pedir uma foto a ilustrar isso mesmo que escreveste. Mas se calhar é pedir muito. É?
      :-)

      Eliminar
    2. Estou aqui a pensar. Nada fácil mesmo. E além da dificuldade há também a questão da oportunidade. Mas começo a ficar com problemas de consciência de não corresponder aos teus desafios. :)

      Eliminar
    3. Querida luisa, problemas de consciência é que não :-)
      Sabes, eu adoro os teus trabalhos, todos. E acho brilhante aquela coleção dos ditados populares, é genial!
      Faz assim: se te surgir a ideia, se de repente ela vier, ótimo, se não vier ótimo na mesma, porque outras virão igualmente boas. :-)
      Que tal?
      Um beijinho, luisa, e parabéns pelo que fazes.

      Eliminar