O pequeno carro vermelho tem riscos de um lado e do outro e uma amolgadela só de um lado. É o carro da família triste que vive no prédio. O
condutor é invariavelmente o pai. O filho, já homem, nunca sorri. Tem a pele muito
pálida, usa óculos e caminha devagar, um pouco curvado, como se um peso imenso
lhe assentasse nos ombros. Quando o encontro no átrio ou no elevador, digo-lhe
bom dia ou, conforme a hora, boa tarde, e ele olha-me através dos óculos, olhos
muito abertos, como se me tentasse encaixar no seu mundo alheado, ao qual não
pertenço, talvez ninguém pertença. A vizinha do terceiro disse-me uma vez que aquele rapaz tem um atraso. A mãe da família triste sorri constantemente. Vira a cabeça para um lado e
para o outro, como se cumprimentasse o mundo em redor, mundo do qual já talvez
não saiba que ainda faz parte, porém caminha desenvolta. Nunca anda sozinha e vai sempre
de mão dada com o marido ou o filho, como se fosse uma menininha. Tanto
ela como ele, o condutor do pequeno carro vermelho, têm o cabelo todo branco e,
no caso dele, rareando. Tal como o filho, mas por razões diferentes, ele também
pouco sorri. Fico sempre triste quando os vejo. Lembro-me de, há muitos anos,
quando me mudei para o prédio, ter sido ela a primeira vizinha que conheci. Encontrei-a
na entrada, no dia da mudança. Sorriu-me francamente e deu-me as boas-vindas.
Disse-me, então, em que andar morava e que estaria lá se eu precisasse de
alguma coisa, que não me esquecesse. E, antes de se afastar: se aquelas meninas
pequenas eram minhas, que lindas meninas. Há dias, encontrei-os exatamente no
mesmo lugar na entrada do prédio. Estavam os dois, ela sorrindo para o ar, ele segurando-lhe a mão. Perguntou ao marido quem sou, quando os cumprimentei. Respondi
eu. E depois acrescentei, mesmo sabendo ser talvez inútil, um resumo do nosso
encontro no dia da minha mudança, lembra-se, eram as minhas filhas pequenas. Ele
avisou-me então, cordial, de que ela não se lembra de nada, que já cá não está. Mas
lembro-me eu, respondi, lembro-me eu.
Talvez ela tenha finalmente aprendido a melhor maneira de 'cá' estar. Será isso o Alzheimer, uma doença afirmativa? E tu, com a tua boa memória, de a ajudares a estar. Um abraço horroroso... lembro-me bem, querida Susana.
ResponderEliminarSim, talvez ela tenha até decidido "cá" estar daquela forma... A verdade é que agora é ela a única da família que sorri.
EliminarHá quem "cá" esteja de formas muito - como dizer, egoístas, mas egoístas parece pouco - como aquela "tua" "boa pessoa" que atropelou o cão e me fez ler o teu post 3 vezes para ter a certeza de que tinha lido bem... é uma tristeza encontrar pessoas que estão "cá" assim.
Retribuo esse horroroso, que bem lembrado, querida Teresa :-)
Uma questão de princípios. Eu dou, e tu, responsável, também dás. Assim é justo, compreensível. O trabalho não é fútil, como ir pintar as unhas dos pés. Nós continuamos cá.
Eliminar"Responsável". Aquilo que devíamos todos ser. Mas não somos, de facto. Mesmo continuando cá.
EliminarUma boa semana, Teresa :-)
Responsáveis somos nós todos ou ainda menos, apetece dizer.
EliminarResto de boa semana. :)
Ou ainda menos, de facto.
EliminarBom fim-de-semana, Teresa :-)
Eu acho-a uma doença mesmo muito triste pois a trave mestra de cada um é a consciência de si. Mas a Ciência está a avançar nesse campo...e talvez daqui a um tempo não haja tantos sorrisos ausentes.
ResponderEliminar~CC~
É muito triste, sim. Mas uma vez mergulhadas na doença, as pessoas deixam de saber que a têm. E isso consola-me um pouco, enquanto a Ciência não vem.
EliminarUma boa semana, CC. :-)
Essa é das coisas mais terríveis a que alguém pode assistir, ver uma pessoa que se ama profundamente a ficar, aos poucos, vazia de si própria, a deixar de ser. Sim, deixar de saber que se está doente, deixar de saber seja o que for, deixar de estar cá, é uma espécie de anestesia geral, uma espécie de caridade que essa coisa terrível concede. É uma coisa verdadeiramente triste, das coisas mais tristes.
ResponderEliminarA resposta que tenho para este teu comentário, querida Cláudia, é deixar-te um abraço apertado.
EliminarQue injusto sermos tão impotentes. Nem mesmo amando profundamente conseguimos salvar.
Triste que isto suceda.
ResponderEliminarMuito, Gábi.
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