a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

07/11/2019

O dois-em-um

A vizinha inglesa do botox pintou o cabelo de uma nova cor. Tenho-a visto de manhã, quando chega a carrinha do correio. O condutor e carteiro, um dois-em-um com pouca vontade de se levantar do carro, para a carrinha vermelha com o símbolo da corneta dos CTT entre a nossa casa e a destes vizinhos ingleses e toca a buzina com um fervor que não denuncia uma grande alegria pelo seu trabalho. Ao que consta, a vizinha faz muitas compras pela Internet, que este dois-em-um carteiro-condutor vem entregar. Tem sido todos os dias e as buzinadelas insistentes e impacientes também. Ela demora a aparecer. Quando surge, arrasta-se pela rampa abaixo até à rua, nas suas roupas meio pijama meio fato-de-treino, e fala com ele num português engraçado, porém possivelmente carregado de nuvens negras dependendo dos dias. Ouvi-lhe o português engraçado quando, há dias, abri a minha porta a ver se estava ali alguém a morrer devido às insistentes buzinadelas tremendas. Mas não estava, era só o carteiro-condutor e a vizinha do botox abeirando-se do carro. Eu disse-lhe bom dia vizinha, mas ela não respondeu, ou não ouviu ou está-se a borrifar, o que também pode ser o caso. Todavia hoje, pela hora da carrinha passar, e parar, as buzinadelas foram de tal modo prolongadas, que eu achei que agora sim, havia mesmo alguém a morrer e fui de novo à porta. Desta vez não estava ela, mas sim o vizinho seu companheiro que hoje, suponho, veio fazer a recolha da encomenda em sua vez. O carteiro estava só com metade do corpo dentro do carro, para variar, à procura de algo que terá caído entre os bancos – isto explicou-me o vizinho muito civilizadamente ao ver-me surgir alarmada detrás da minha porta, mas que raio (what the hell…) – e o carteiro dois-em-um, ao procurar o cartucho ou lá o que seria a coisa, apoiava-se nas costas do banco inclinadas para a frente sobre o volante, não sei se dá para ver, quer dizer, imaginar. O banco a encostar com força na buzina, esta julgando ser a sério respondia direitinho, tocando em modo contínuo, enchendo a ex-pacata aldeia de uma inquietação trazida em pacotes e que é consequência, afinal, de uma vida muito muito infeliz.

6 comentários:

  1. Olá
    Escrito perfeito.Dá para ver e até para ouvir.

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    1. Ai deve ter dado para ouvir, deve! Aquilo foi mesmo a valer de barulhento!
      Olá, ana, e bom fim-de-semana com os seus gatos!

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  2. lembrei-me agora de um filme muito bonito que conta a história de um carteiro que, ao fim de longos anos, transfere para o filho essa incumbência. o pai acompanha o filho na primeira viagem de entrega de correspondência, que será a sua última. durante a caminhada, acompanhados pelo cão da família, que conhece perfeitamente o caminho e que ladra para avisar os aldeões da chegada do carteiro, pai e filho intensificam a sua relação. e é assim que o filho descobre que ser carteiro não se resume a entregar cartas, mas que contempla também estreitar laços e cultivar afetos.
    podes espreitar aqui:

    https://www.youtube.com/watch?v=I-5jtrc3vvo

    um beijinho, Susana, e um bom fim de semana. :)

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    1. Ai vou espreitar, vou. Muito obrigada, Paula! :-)

      Eu lembro-me de um personagem do José Rentes de Carvalho, acho que n'"A Amante Holandesa", em que havia um carteiro da província que era analfabeto, mas tinha o sonho de ir trabalhar para Lisboa. Achei isso de uma beleza tão grande, comoveu-me!
      Como também deve ser belo esse "teu" filme.
      Obrigada, um beijinho e um bom fim-de-semana para ti (com os teus gatinhos também!) :-)

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  3. Bom dia, já não sei como aqui cheguei, mas não deve ser de maneira diferente dos demais; passa-se na rua, vê-se a porta aberta, entra-se e depois fica-se ou sai-se sem ruído. Do que vi gostei (apetece-me dizer muito mas talvez cheire a lisonja; fica, quem sabe, lá mais para a frente) e se não se importar, amanhã voltarei.
    Gostei que tivesse referido Amadeu, o Gato, esse personagem do excelente A Amante Holandesa.
    E sabe, também me lembrou do Carteiro de Pablo Neruda.
    Bom domingo.

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    1. Olá Joaquim, bem-vindo!
      Ainda bem que veio e que entrou. Espero que, voltando, se sinta sempre bem aqui. :-)
      O carteiro de Pablo Neruda! Oh, mas esse está a anos-luz daquele que protagoniza este post!
      Espero que tenha uma boa semana.

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