a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/10/2013

Barriga do peixe

Há muito tempo que não te escrevo.

Ainda tenho as palavras sujas e custa-me mandar-tas assim.

Aqui os dias já se estão a vestir de cinzento e as lágrimas do céu começaram a cair e molharam tudo. Mas eu não me importo.

A roupa lavada que estendo para secar enquanto penso em ti, não seca, mas descobri que se a lavar a sessenta graus fica com menos mau cheiro, é o que agora faço.

Este mau cheiro, este, que se veio colar às minhas palavras maculadas, desculpa.

O correr dos dias aqui é constante, a monotonia só a quebro porque oiço música diferente a cada hora. De resto é o que sabes, não te conto nada de novo, não lavei as palavras.

É o trabalho, a ilusão de prosperidade, a hora da saída, o anoitecer, o supermercado quase sempre, as limpezas domésticas às vezes.

Esforço-me, tu sabes disso. O detergente da máquina da loiça acabou, mas na loja só havia pastilhas de lavagem completas, daquelas que eu não uso, cinco em um ou coisa assim. Mas trouxe-as, são boas, modificam-me os dias e têm três cores.

Vês como as minhas palavras não prestam?

Encontrei uma maçã velha no fundo da cesta da fruta e descasquei-a a pensar em ti, porque penso em ti o tempo todo, estava tão seca, deitei-a fora.

E enquanto estendo estas palavras moles, pegajosas, mofentas, e as estico, as tento endireitar para ti, ordenar, arrumar em caixas com laços azuis e lilases, oiço uma voz chorosa que vem de outro apartamento. É a vizinha que não sai à rua há meses, que vê televisão e que ouve as histórias de amor com mentiras. Mas amor com mentiras não é amor.

O ar está a arrefecer e em breve vou ter frio de noite por causa do vazio que deixaste ficar. É por isso que calço as meias grossas que te fazem rir, são coloridas ao menos.

Já chegou a foto que me mandaste pelo correio. Colo-a aqui no fim das minhas palavras ímpias que não as pude sagrar. Gosto do azul que ostenta e da agonia que me firma na alma porque me mostra quão longe estás, me autoriza a dor e me rega as lágrimas. Aqui os homens ainda usam calças.

Queria enviar-te chá de tomilho, a erva que meto na barriga do peixe antes de ir ao forno, mas tu não gostas de chá.

Daqui a dias, quando chegares, mostro-te como o meu sorriso voltou.

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