Armanda Passos
- Mas porquê? Porque gostas do quadro? - quis ele saber.
- Sei lá, gosto. Gosto muito. É a cor e os pés, grandes. Os vestidos também, claro. Gosto muito. - disse eu.
Mas não disse tudo, nunca digo. Um quadro e eu, em gostando um do outro, temos segredos.
E deste gosto porque aquela mulher sou eu.
Sou a camponesa livre que galga o terreno com uns pés grandes, consistentes, e que não tem medo.
Sou esta mulher que vai à terra deitar-lhe as sementes que traz na dobra do avental colorido e regressa a casa com a certeza da colheita.
Sou a mulher que sabe esperar pela primavera e que, enquanto o inverno corre, coze o pão e recolhe a lenha, para acender o fogo que nunca lhe falta e enche a casa, que é o seu lar, de aromas quentes, inesquecíveis.
Sou a que conhece a chuva que vai cair amanhã e o cantar do vento que ainda não parou.
Sou a que leva o cântaro e o enche na fonte de água cristalina e fresca, só para a ouvir. E pelo caminho conta a história da velha que não sabia ler nem escrever à criança que imagina levar pela mão.
Sou a que, com assobios desafinados, imita os pássaros e com eles fala.
Aquela mulher sou eu. Sou a da direita e também a da esquerda. Sou as duas, que a solidão não me conhece.
É que naquela terra, em que semeando dá em colhendo, não houve lembrança de criar padrões de beleza. E eu, em segredo, sem medo, podia ser feia.
- Sim, gosto muito. Da cor, dos pés grandes e dos vestidos - repito, enquanto oiço o cão do andar de cima ladrar porque o vendedor dos quatrocentos e oitenta e nove canais de televisão com fibra tocou a todas as campainhas do prédio.
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