a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

23/04/2014

A primeira vez

Francisco bate-me no vidro da porta do gabinete.

- Ainda ficas? Já não está ninguém!

- Fico um bocadinho. Até amanhã!

Estou a terminar um relatório que não faz as minhas delícias, tenho os olhos secos de fixar as células da folha de cálculo, o ecrã nunca é suficientemente grande. Mas como a hora do ginásio já passou, não há pressa.

Simultaneamente (a natureza tem destes desvios à perfeição a que nos habituou em muitas coisa, flores, por exemplo), simultaneamente, dizíamos, está o meu organismo a solicitar com muita veemência uma visita à casa de banho que por sorte se situa próxima, é só uns onze ou doze passos, espera aí um bocadinho, deixa cá escrever mais este parágrafo a explicar as coisas dos cálculos e já vamos, não sei se me estou a contorcer ligeiramente, se não estou devia.

Termino, envio o correio electrónico com as coisas que tenho de enviar a dar alegrias a toda a gente amanhã pela manhã se não ainda esta noite no aconchego do lar, para os mais empenhados, não eu, que trabalham em sessão contínua.

Ufa. Corro os onze passos alargados para a porta de salvação. Entro, fecho-a, estando sozinha não haveria necessidade, mas os automatismos que temos são assim e nunca se sabe se o Francisco ainda anda por aí.

Acto contínuo lanço a mão ao interruptor da luz. Que não responde. Estou às escuras a torcer-me, porta fechada por dentro, a fracção de segundo de atraso é nada mas a natureza nesta imperfeição que nos fez (à parte as flores, que são perfeitas) não contava com o interruptor cego, urge-me esta ansiedade, e agora, Francisco ainda estás aí?

Ele não responde, mas ainda assim. O quadro eléctrico.

O segurança já passou na ronda e, como faz sempre (grrr), e eu me esqueço sempre de lhe dizer para não fazer (grrr), desligou a merda da luz da casa de banho no quadro eléctrico.

Amanhã vou mais cedo para casa, vou vou.

(a aflição foi resolvida após um voo picado e orientado ao quadro eléctrico, situado não muito longe, a minha mão mergulha cirurgicamente no interruptor certo, alinhado no meio de alguns três mil oitocentos e trinta e nove outros interruptores uns para baixo outros para cima, mas já bem meus conhecidos, que isto não é a primeira vez, não é não)

Sem comentários:

Enviar um comentário