a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

25/04/2014

A verdade

- Tire-me a pele ao frango, tira?

- A pele ao franguinho. Com certeza, minha senhora. E quer que corte?

A mulher ao meu lado pediu ao talhante para lhe tirar a pele ao frango. E sim, corte lá se faz favor. Ele começou a operação solicitada e eu fui buscar limões que ainda faltavam cinco números para a minha vez no talho do supermercado.

Passo pelo bacalhau a pensar que ao balcão do talho há uma tendência visceral (penso que aqui visceral não podia estar mais em casa) para tratar as peças pelas variantes diminutivas. Franguinho. Entrecostozinho. Bifinhos.

Com os limões, a barra de chocolate e a garrafa de azeite na mão, regresso à área que hoje está mesmo apinhada. Os talhantes são dois e trabalham depressa para atender os pedidos. Um deles está agora de costas para a frente de atendimento, a tirar a pele a uma perna gorda, penso que de peru, apoiada na bancada marcada com golpes e ensanguentada, nada a fazer quanto a isto. E diz:

- Estará calor lá fora, ó Dinis?

- Não sei, à hora de almoço estava - o Dinis responde enquanto estica o saco com o entrecosto à cliente.

- Deve estar calor - continua o primeiro, ainda de costas para a clientela, a terminar de livrar a carne da pele - hoje toda a gente pede para tirar o casaco aos frangos.

O Dinis ri-se e pergunta à cliente do entrecosto se é mais alguma coisa, minha senhora. Não era mais nada e chega então a minha vez.

- Um peito de peru para assar, por favor - digo, enquanto ponho o ticket com o número exibido a vermelho no quadro de chamada, no pequeno recipiente de plástico em cima do balcão.

- Está bem este peitinho, está? - o Dinis ergue o pedaço acima do vidro a fim de que eu possa avaliar a peça e concluir sobre a sua adequação ao meu propósito.

- Está excelente, vai esse.

- E como vai o peruzinho, minha senhora?

- Vai assim, com o casaco vestido.

Ainda com o braço no ar segurando o pedaço de peru que vamos comer amanhã, vira a cabeça para o colega, ó João a senhora ouviu-te.

- Pois ouvi. Ouvi e gostei.

E estive vai não vai para lhe comunicar que ia usar isto para o meu blogue.

O que eu nunca lhe diria é que não faço ideia do que tinha ele em mente ao perguntar-me como vai o peru.

Se não tivesse tido a deixa do casaco vestido, teria de lhe dizer a verdade.

Vai de carro.

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